Rio Grande do Sul

Coluna

Carta ao futuro presidente

Imagem de perfil do Colunistaesd
"Quando as convenções internacionais de proteção aos direitos das crianças, meninas e mulheres farão realmente efeito? Quando, senhor presidente, quando?" - Arte: Cristiano Siqueira
Quando será considerado crime a imposição de gestação indesejada a crianças violadas sexualmente?

Escrevo esta carta na compreensão de que talvez nunca chegue, mas que, ainda assim, precisa ser escrita. Ou na esperança que chegue através das milhões de vozes de mulheres e identidades subalternizadas pelo patriarcado, cada qual com sua própria voz e agência.

Após sobrevivermos a um genocídio planificado por quem se apoderou das estruturas institucionais após décadas de atuação parasitária e sub-reptícia, podemos afirmar que, tão nítida quanto a condescendência dos poderes Legislativo e Judiciário para a configuração do atual cenário político, é a necessidade da construção de uma democracia outra, alerta e preparada para que os erros do passado não se repitam, até mesmo porque eles se apresentam a nós cotidianamente. 

Tais vozes não podem mais ser representadas, elas precisam ser escutadas, pois trazem em si a denúncia de tudo aquilo que, de maneira tão complexa, não pode ser superado pela promessa do progresso. Nós precisamos poder existir e fazer parte dessa reconstrução da política institucional tão ativamente quanto estamos presentes em nossos territórios, sustentando a vida através dos cuidados invisibilizados, quando não criminalizados pelo próprio Estado onde o mesmo não alcança em direitos.

Nós, senhor presidente, somos especialistas em micropolíticas do afeto que tem sido demandado para esperançar. A nossa esperança também é desesperada e, por isso, precisamos recordar quem somos para ir em direção ao que queremos. 

Verdade, memória e justiça é a dívida que o Estado brasileiro tem com seu povo há tempos desde a colonização, mas negociada na transição dos terríveis anos da ditadura cívico militar.

Nossa democracia é um gigante de pés de barro à medida em que torturadores (todos homens cis) foram equiparados às pessoas torturadas (estas, muito diversas em identidade de gênero, sexualidade, raça, cor e etnia), na negociação que culminou a Lei da Anistia, e talvez essa seja a grande diferença entre nossos irmãos e irmãs argentinas: lá, a sociedade escutou as mães, as avós.


"Talvez a grande diferença entre nossos irmãos e irmãs argentinas seja que lá a sociedade escutou as mães e as avós" / Foto: Cena do filme "Marea Verde", de Angel Giovanni Hoyos (2021)

As mães e avós do Brasil, que respondem por mais da metade dos lares e famílias, são também as que registram anualmente as milhares de crianças sem o nome do pai, número que aumentou consideravelmente durante a pandemia. Quantas dessas vidas foram originadas através do estupro ou da prostituição forçada em tempos de tanta miséria? Ainda assim, as mães seguem: mães de maio de 2006, mães de Acary, mães da Gamboa, mães do Jacarezinho, são tantas as chacinas promovidas pelo próprio Estado que não caberiam nos 4 mil caracteres dessa coluna. O Estado precisa escutar as mães, senhor presidente.

E verdade seja dita, as esquerdas precisam extirpar o vício de negociar com os poderes oligárquicos através dos nossos corpos. Precisam parar de negociar os nossos corpos, as nossas vidas. Não são poucos os relatos da seleção de temas, nos diretórios, das pautas feministas que podem ou não ser discutidas em campanhas e propostas de candidaturas. 

Assim como os efeitos da Lei da Anistia, padecemos coletivamente dos efeitos da lei da mordaça sobre temas que determinam os resultados de uma eleição. Sim, senhor presidente, estamos falando de aborto. Pois enquanto milhões de brasileiras, brasileiros e brasileires tomam as ruas, as vielas, os bairros em campanha contra a reeleição da barbárie, a vida da menina de 11 anos estuprada no Piauí por um familiar foi novamente exposta nos meios de comunicação, em repetição da tragédia: novamente estuprada, novamente grávida e mais uma vez o Estado foi omisso, usando como prerrogativa a não autorização da mãe para acessar o aborto legal, uma vez que a compreensão desta é se tratar de um crime. O pai, todavia, compreende que a interrupção é o que deveria ser feito.

Quando, senhor presidente, será considerado um crime a imposição de uma gestação indesejada a crianças violadas sexualmente? Quando as leis já existentes no país serão lidas e interpretadas corretamente? Quando as convenções internacionais de proteção aos direitos das crianças, meninas e mulheres farão realmente efeito? Quando, senhor presidente, quando? 

* Benke Yelene é ativista por direitos humanos.

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko