"Sou uma sobrevivente do suicídio, que é como costumam ser chamadas as pessoas que perderam alguém para o suicídio. Só que no meu caso, sou duplamente uma sobrevivente. Isso porque, além de ter perdido alguém, também sobrevivi a uma tentativa de suicídio. E não tem um dia sequer que uma dessas marcas não reviva dentro de mim. Seja por uma notícia, uma música, um filme, uma 'piadinha', um comentário. Todo dia uma dessas feridas arde, feito um machucado que não cicatriza direito e dói quando algo encosta nele." O depoimento é da jornalista Annie Castro, em sua rede social, onde chama atenção para a prevenção ao suicídio.
De acordo com a pesquisa Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), Porto Alegre é a capital com maior índice de depressão do Brasil. Segundo análise do GZH sobre dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), em 2021, Porto Alegre registrou a maior taxa de suicídio entre todas as capitais brasileiras. Foram 9,65 suicídios a cada 100 mil habitantes. Em segundo lugar está Campo Grande (MS) e na sequência Teresina (PI).
Com o advento da pandemia, segundo o Relatório Global sobre Saúde Mental, divulgado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) no dia 17 de junho deste ano, os casos de depressão e ansiedade aumentaram 25% no primeiro ano após o surgimento do novo coronavírus. De acordo com a organização, estima-se que mais de 300 milhões de pessoas sofram com depressão em todo mundo.
Conforme o relatório, mesmo antes da pandemia, apenas uma pequena fração das pessoas necessitadas tinha acesso a cuidados de saúde mental eficazes, acessíveis e de qualidade. O documento aponta que 71% das pessoas com psicose em todo o mundo não acessam serviços de saúde mental e que, enquanto 70% das pessoas com psicose são tratadas em países de alta renda, apenas 12% das pessoas com essa condição recebem cuidados de saúde mental em países de baixa renda.
"Para a depressão, as lacunas na cobertura dos serviços são amplas em todos os países: mesmo em países de alta renda, apenas um terço das pessoas com depressão recebe cuidados formais de saúde mental e estima-se que o tratamento minimamente adequado para depressão varie de 23% em países de baixa renda para 3% em países de baixa e média-baixa renda”, expõe o relatório.
Ainda segundo a organização, em 2019, quase um bilhão de pessoas – incluindo 14% dos adolescentes do mundo – viviam com um transtorno mental. O suicídio foi responsável por mais de uma em cada 100 mortes e 58% dos suicídios ocorreram antes dos 50 anos de idade. A entidade pede mais investimentos em saúde mental em todo o mundo. De acordo com a OMS, penas 2% dos orçamentos nacionais de saúde – e menos de 1% da ajuda internacional de saúde – são dedicados a essas enfermidades.
No Setembro Amarelo, mês dedicado à prevenção do suicídio, o Brasil de Fato RS conversou com a psicóloga Fabiane Konowaluk Santos Machado, conselheira do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul (CRPRS). Para ela os altos índices de depressão e suicídio na capital gaúcha, é o resultado de um desmonte das políticas públicas e principalmente o desinteresse dos gestores públicos pela questão da saúde mental.
“Hoje nós temos muita dificuldade de tratar esse tema, de lidar com essas pessoas quando elas nos procuram, ou com intenção suicida, ou até depois que elas tentam o suicídio e não conseguem efetivá-lo, na relação à assistência deste tipo de caso”, aponta, enfatizando que é preciso política pública para que a população tenha acesso garantido a um serviço de qualidade no âmbito da saúde mental.
Segundo ela, o cuidado com saúde mental tem que ser diário e rotineiro. "Todos nós precisamos nos conhecer, olhar para dentro e entender quando a gente está mal, quando estamos bem, quando a gente acha que está com uma ansiedade um pouco mais elevada e essa ansiedade começa a prejudicar a nossa vida.”
Annie Catro, em seu relato, chama a atenção para quem estiver precisando conversar com alguém, o Centro de Valorização da Vida disponibiliza ajuda 24h pelo número 188 ou no site cvv.org.br.
Abaixo a entrevista completa:
Brasil de Fato RS - Neste mês de Setembro Amarelo ocorre a campanha nacional de conscientização sobre a prevenção ao suicídio. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), são registrados anualmente 12 mil suicídios no país. Além disso há muito tabu e preconceito em relação ao suicídio. Isso dificulta que o tema seja abordado de maneira mais clara e objetiva?
Fabiane Konowaluk Santos Machado - Com certeza. Tem dois pontos de vista, primeiro a sociedade ocidental não está acostumada a falar sobre a morte. A morte de forma geral é um grande tabu para nós, diferente de outras culturas, como a oriental, que compreende a morte como uma passagem para uma vida melhor, para um momento melhor. Eles até confraternizam durante um velório. É totalmente diferente da nossa cultura onde a gente vela quem fez a passagem, com muita tristeza, sofrimento, normalmente
Nós, aqui no Brasil, além de ser um tabu como toda cultura ocidental, nós ainda temos uma dificuldade maior de fazer essa abordagem porque normalmente quando a pessoa comete suicídio tem uma gama muito grande de culpabilização e sofrimento para aquelas pessoas que ficam e que tinham convivência direta com a pessoa que cometeu suicídio. Isso é um dificultador também da gente conversar sobre isso. Se torna uma conversa penosa, sofrida, já somada ao sofrimento de quem fica.
BdF RS - Como tu descreverias o quadro atual da saúde mental gaúcha e também em relação ao suicídio?
Fabiane - Infelizmente no estado do RS e especificamente em Porto Alegre, a capital do suicídio (dados da pesquisa Vigitel demonstram que a capital dos gaúchos lidera os índices de depressão e suicídio no país), nós temos o resultado de um desmonte das políticas públicas e principalmente o desinteresse dos gestores públicos pela questão da saúde mental. Hoje nós temos muita dificuldade de tratar esse tema, de lidar com essas pessoas quando elas nos procuram ou com intenção suicida, ou até depois que elas tentam o suicídio e não conseguem efetivá-lo, na relação a assistência deste tipo de caso.
A rede não está preparada e os serviços de saúde mental que dispúnhamos até então foram desmontados. Houve a terceirização desses serviços. A prefeitura não tem mais serviços próprios de saúde mental para fazer esse atendimento. E houve, o que é pior, a redução dos locais de pronto atendimento para as questões de saúde mental. Isso é um grande problema, visto que Porto Alegre é reconhecidamente a capital do suicídio no pais.
Esse é um problema que vamos ter que enfrentar, e poder cobrar dos nossos gestores públicos políticas de acesso para que se consiga fazer um encaminhamento. Quando uma pessoa, por exemplo, está no serviço e está com uma intenção suicida, ou até mesmo quando ela já tentou, onde a gente leva essas pessoas, qual é o serviço, quem atende, como é este encaminhamento? Hoje nós não temos uma política direcionada para isso.
BdF RS - Como a pandemia afetou a saúde mental (os quadros de depressão, ansiedade)? Que impactos ela trouxe para a vida cotidiana? O Quanto ela agravou o quadro de saúde mental?
Fabiane - É importante compreendermos que a pandemia afetou a saúde mental de todo mundo. Tivemos aquela primeira fase em que por força da contingência da própria doença tivemos que ir para casa, muitos serviços foram fechados, daqueles trabalhadores que puderam se afastar e ficar em casa.
Nós temos esse aspecto das pessoas que ficaram em casa e todo efeito rebote dessa situação contingencial na saúde mental de todos nós. Quadros de ansiedade agravados, a migração do trabalho presencial para o ritmo do trabalho em casa. Todo mundo sabe que em casa há uma outra rotina, outro ritmo e aí tivemos que agregar o trabalho junto ao cuidado com as crianças, com os idosos, do nosso cuidado. Isso trouxe uma elevação muito grande dos quadros de ansiedade.
Por outro lado tivemos os trabalhadores da linha de frente, esses não puderam ir para casa, continuaram trabalhando, tanto no Sistema Único de Saúde (SUS) quanto no Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Os trabalhadores da saúde, os assistentes sociais, os psicólogos que trabalham na rede do SUAS também continuaram com o serviço aberto, sendo porta de entrada para as questões da população. E esses trabalhadores em especifico agora estão num roll de adoecimento e afastamento do trabalho muito grande. Tiveram também um efeito rebote de tudo que eles viveram, presenciaram, que sabemos foram situações limítrofes, situações muito difíceis.
Eu tenho notado um aumento muito grande do que chamamos de TEPT (Transtorno do estresse pós-traumático), principalmente nos trabalhadores da saúde que ficaram dentro dos serviços fazendo atendimento à população e que passaram por traumas. E esses traumas agora começam a impactar na saúde mental desses trabalhadores, com a diminuição da demanda no serviço. E é agora que eles conseguem ter tempo para se olhar e se perceber enquanto pessoas e que também tem questões de saúde mental.
Então vemos essa emergência subindo, e seria de fundamental importância podermos pensar em políticas públicas de saúde mental para também dar conta desta população que sofreu tanto durante a pandemia.
É muito importante que a população consiga entender que saúde mental não é problema de uma ou de outra, todos nós somos afetos por ela
BdF RS - Como tu avalias as políticas adotadas quando falamos em suicídio e saúde mental. E a importância de cuidar da saúde mental?
Fabiane - O cuidado com saúde mental tem que ser diário e rotineiro. Todos nós precisamos nos conhecer, olhar para dentro e entender quando a gente está mal, quando estamos bem, quando a gente acha que está com uma ansiedade um pouco mais elevada e essa ansiedade começa a prejudicar a nossa vida.
Eu costumo dizer que o primeiro sinalizador de que algo não está bem internamente, no tocante à saúde mental, é a qualidade do sono. Quando perdemos a qualidade do sono é porque algo não está bem. Então sempre é importante procurar ajuda, quando mais cedo procuramos, mais cedo o profissional vai conseguir trabalhar essa situação, dar um tratamento adequado.
E principalmente prevenir que esses quadros se transformem em grandes patologias e, em situações do próprio andamento, da própria evolução da doença, consigamos atacar isso de forma mais preventiva, imediata, para que possamos prevenir que esses quadros acabem se aglutinando, piorando e sendo mais difíceis de tratar. Ou seja, tendo que ter outros recursos e até mesmo tratamentos mais alongados.
É muito importante que a população consiga entender que saúde mental não é problema de uma ou de outra, todos nós somos afetos por ela, a quadros de ansiedade, a própria depressão. A própria OMS trata a depressão como a doença do século e efetivamente ela é, mas temos que estar olhando também para esses outros quadros, como, por exemplo, a ansiedade. Todos nós aumentamos a nossa ansiedade durante a pandemia.
O esperado agora, na retomada das nossas rotinas, é que essas ansiedades vão diminuindo e que consigamos ter condições de voltar às nossas rotinas normais. Se não estamos conseguindo, é um grande sinalizador que precisamos procurar ajuda.
Está na hora da gestão pública poder olhar para a saúde mental e poder compreender que saúde mental não é frescura
BdF RS - Na sua opinião, quais ações preventivas institucionais podem contribuir para evitar o suicídio e também ajudar a identificar e tratar sintomas de adoecimento mental?
Fabiane - Precisamos de política pública, precisamos que a população tenha acesso garantido a um serviço de qualidade no âmbito da saúde mental. Hoje temos os Centros de Atenção Psicossocial, os CAPS, que estão nas cidades prontos para isso. Temos os pronto atendimentos. Mas vemos uma diminuição destes serviços em função do desmonte e da falta de investimento da gestão pública para esses programas. É preciso retomar.
A pandemia está resultando em uma gama de pessoas adoecidas e, consequentemente, com o afastamento do trabalho. Isso gera um impacto muito grande, não só na questão epidemiológica do acompanhamento das doenças, mas também na nossa capacidade de produção laboral.
O que eu vejo hoje é uma grande gama de trabalhadores que estão gravemente adoecidos, que estão afastados do trabalho, estão deixando de produzir para a sociedade, e que não tem, muitas vezes, o local adequado para poder fazer o seu tratamento, para buscar sua ajuda. Acabam recorrendo a serviços privados e que muitas vezes não tem condições de arcar com esse tratamento.
É muito importante que os gestores públicos possam olhar com carinho porque o pós-pandemia vai ser uma grande massa de pessoas adoecidas, fora aquelas pessoas que estão em luto. Hoje nós temos um grande luto social que é geral, porque nós tivemos mais de 600 mil mortes nesse país repentinamente.
Está na hora da gestão pública poder olhar para a saúde mental e poder compreender que saúde mental não é frescura, não é xilique, ela é uma patologia como outra qualquer. E quanto mais grave ela fica, mais demorado é o resultado, mais demora para consigamos fazer a pessoa se estabilizar e retomar sua vida novamente. É muito importante que possamos ter ações preventivas, mas também ter uma rede de cuidado que seja adequada e que garanta o acesso da população que dela necessita.
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Edição: Marcelo Ferreira