No final de novembro será lançado em um evento híbrido na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) o livro "Juvenicídio, Território e Políticas Públicas: Rastros de Sangue na cidade de Porto Alegre". Ele é fruto de mais de três anos de pesquisa realizada pelo Grupo de Estudos em Juventudes e Políticas Públicas - Gejup, vinculado ao Programa de Pós-graduação em Política Social e Serviço da UFRGS em parceria com a Frente de Enfrentamento à Mortalidade Juvenil (FEMJUV RS).
A pesquisa foi realizada de forma interdisciplinar com pesquisadores das áreas de Serviço Social, Sociologia, Psicologia, Educação, Direito e Antropologia. Soma em sua equipe 22 pesquisadores entre professores universitários, alunos de mestrado, doutorado, graduação e militantes da FEMJUV RS. Reúne uma série de reflexões, fundamentadas em dados científicos, para demonstrar as manifestações da mais perversa forma de violações de direitos: o juvenicídio. Também conta com uma entrevista inédita com José Manuel Valenzuela Arce, um dos maiores especialistas no tema e criador do termo Juvenicídio.
O livro é financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa no RS – Fapergs e chegará nas mãos do público de forma gratuita, pela editora Cirkula.
Para falar da pesquisa e da situação vivida no estado e na Capital, conversamos com o organizador do livro e coordenador do Grupo de Estudos em Juventudes e Políticas Públicas - Gejup/UFRGS, professor Giovane Scherer.
Confira a entrevista.
Brasil de Fato RS - Como surgiu a ideia da pesquisa?
Giovane Scherer - Em 2016 foi criada a Frente de Enfrentamento à Mortalidade Juvenil, um movimento social articulado por vários profissionais que atuam em políticas públicas, junto com um grupo de jovens. Esse foi um ano muito marcante e emblemático, porque é o ano que a gente tem um aumento substancial dos índices de mortalidade juvenil. Os militantes da frente estavam muito preocupados, principalmente porque esses dados de mortalidade não estavam aparecendo na mídia.
Então essa frente se articulou para poder discutir a política de Porto Alegre. Mas sentiam a necessidade de ter dados para poder fundamentar suas propostas e suas ações. Eu coordeno um grupo de estudos chamado Gejup, que pesquisa juventudes e políticas públicas, vinculado ao programa de pós-graduação em Política Social e o Serviço Social da UFRGS. E foi a partir desse encontro entre grupo de pesquisa e movimento social que a gente constrói esse projeto de investigação.
A construção foi coletiva, desde a definição do problema, objetivos, metodologia. Foi um processo bem complexo, longo, pensar um projeto de pesquisa já é difícil, imagina um projeto de pesquisa pensado a tantas mãos. Buscamos ao longo do tempo captar alguns recursos para poder dar conta da sua execução. Conseguimos aprovar um edital da Fapergs em 2019. Realizamos a investigação ao longo de 3 anos, 2019, 20 e 21, e encerramos esse ano. Foi um longo período, principalmente porque a gente pegou a pandemia no meio.
Utilizamos uma categoria teórica chamada juvenicídio, que é mortalidade juvenil de formas violentas, provocada pela precarização de vidas
BdF RS - Quais foram os dados pesquisados pelo projeto?
Giovane - Analisamos como vem se constituindo a mortalidade juvenil no Rio Grande do Sul, de modo especial em Porto Alegre, relacionando com as políticas públicas. Buscamos pensar como as políticas públicas podem contribuir para o enfrentamento da mortalidade. Utilizamos uma categoria teórica chamada juvenicídio, que é mortalidade juvenil de formas violentas, provocada pela precarização de vidas. Esse é um conceito de um autor mexicano, o José Manuel Valenzuela Arce. Ele diz que o juvenicídio não é simplesmente a mortalidade juvenil, mas provocada pela impossibilidade de construção de projetos de vida e futuro.
BdF RS - Como que vem se constituindo essa dinâmica na cidade de Porto Alegre?
Giovane - Para investigar esse fenômeno criamos vários objetivos e um processo metodológico bem longo. Num primeiro momento, a gente fez uma análise dos dados do sistema de informação de mortalidades, o SIM. Esses dados são da Secretaria de Saúde, parte deles estão públicos, mas lógico, os dados mais sensíveis com nome, residência, dados mais concretos de quem morreu em Porto Alegre etc., são dados que não são públicos. Buscamos então fazer um mapeamento desses dados, pensando quem é o perfil de jovem que é assassinado em Porto Alegre.
Paralelamente a isso, a gente fez toda uma análise de dados nacionais e dados do estado do Rio Grande do Sul, para entender como que a gente tá diante dessa lógica de entender Brasil, Rio Grande do Sul e Porto Alegre. Então a gente fez uma análise para saber principalmente quem é o jovem que é assassinado, o seu perfil, e onde esse jovem é assassinado. Nos interessava saber também a construção de uma cartografia das mortalidades juvenis em Porto Alegre, quais são os bairros que esses jovens são assassinados? Como se estruturam esses bairros? Para isso, evidentemente, essa pesquisa passou por dois comitês de ética, o comitê de ética aqui da universidade, do Instituto de Psicologia da UFRGS, e também o comitê de ética da Secretaria de Saúde do RS. Essa foi a primeira etapa da pesquisa.
BdFRS - Com a análise desses dados, qual foi a segunda etapa da pesquisa?
Giovane - Na segunda etapa, considerando esses dados, a gente tentou mapear a cartografia da mortalidade juvenil em Porto Alegre. Para isso, buscamos quais foram os bairros que esses jovens foram assassinados, qual a trajetória histórica desses bairros, como se dá a estrutura de políticas públicas desses bairros.
Nós selecionamos intencionalmente seis jovens, sorteamos mesmo, que foram assassinados no ano de 2018, nesses três bairros, então somando uma amostra de 18 jovens. Com o nome, o CPF, o dado da mãe. Com esses dados mais pessoais desses jovens, a gente procurou bater nas políticas públicas, para entender qual a trajetória desses jovens nas políticas públicas. Ele estudou? Que ano que ele parou de estudar? Ele teve passagem nas medidas socioeducativas? Ele teve algum expediente no conselho tutelar?
Mapeamos a trajetória desses jovens nas políticas públicas, buscando pensar como foi a vida deles a partir da proteção social, partindo do pressuposto que a mortalidade juvenil na minha concepção é a expressão trágica de uma trajetória de violações de direitos. Então vamos olhar como que essa política pública se estrutura para atender essa conjuntura de violações de garantias de direitos desse jovem.
A mortalidade juvenil na minha concepção é a expressão trágica de uma trajetória de violações de direitos
E por fim, essa pesquisa tinha perspectiva de ir até o território, fazer grupos focais com jovens, discutindo o tema da mortalidade juvenil, para entender a percepção desses jovens, bem como entrevistas com seus familiares e trabalhadores de políticas públicas que atuam nesses territórios. Também pensamos algumas entrevistas com pessoas que pensam a gestão da política pública em Porto Alegre em áreas específicas.
Só que no meio do caminho a gente teve a pandemia, que ninguém esperava, o que foi um fator bastante complicador, principalmente na parte empírica, porque grande parte dos registros estão dentro do equipamento de política pública. A gente tem que ir pessoalmente no lugar, pegar o registro, manipular, etc. A própria universidade estava sob regime do ensino remoto emergencial. As atividades de pesquisa, extensão eram aconselhadas a não serem realizadas presencialmente, porque estávamos bem no pico da pandemia.
Então a gente pediu prorrogação, principalmente na Fapergs, para a pesquisa ser realizada nos territórios. E com relação ao grupo focal, a gente achou que não seria seguro a realização, e aí fizemos entrevistas com os jovens. Foram 10 jovens ao total nos três territórios, um representante familiar de cada um dos territórios, e também os trabalhadores de políticas públicas. Nessa última etapa mais qualitativa, a gente entrevistou 24 pessoas ao total, que tem um vínculo com esse território, podendo entender um pouco mais a dinâmica da mortalidade juvenil.
BdF RS - Quais foram os territórios estudados?
Giovane - Daí começa alguns achados interessantes: o primeiro achado é que o território onde a gente consegue encontrar maior índice de moradia desses jovens é o território não identificado. Então aí a gente já conta uma lacuna no sistema de informação de mortalidade juvenil, ou não identificado, ou ignorado. Esses dados, eles não são preenchidos, não são qualificados, embora a Secretaria de Saúde faz todo um trabalho muito interessante, muito importante de qualificação desses dados, nem sempre a gente consegue ter, por exemplo, o dado de moradia desses jovens, que é o que nos interessava, esse jovem ele reside onde? Muitas vezes o endereço de residência não estava disponível dentro das informações dos dados.
Dos que a gente conseguiu mapear, os territórios que mais concentram os índices de mortalidade juvenil são Restinga, Lomba do Pinheiro e Sarandi, nos anos de 2015 até 2019, que foi o período que a gente conseguiu pesquisar. Por que até 2019? Porque os dados necessitam serem qualificados, por exemplo, todo o dado que está hoje disponível no sistema de informação de mortalidade, no SIM de 2022, ele ainda precisa passar por um processo de qualificação e ele pode sofrer alterações. Por isso que a gente escolheu metodologicamente trabalhar até o ano de 2019, pra ter esse aprofundamento.
Em Porto Alegre, os territórios onde os jovens são mais assassinados são Restinga, Lomba do Pinheiro e Sarandi
Um detalhe importante, num primeiro momento a gente pensava em analisar dados com a faixa etária dos 15 até os 29 anos, segundo a atual Política Nacional de Juventude. O estatuto da juventude considera jovem toda a pessoa de 15 a 29 anos. Mas nas discussões com a Frente de Enfrentamento da Mortalidade Juvenil, a gente decidiu diminuir essa faixa etária, incluindo também a faixa etária de 12 até 29 anos.
Em Porto Alegre, os territórios onde os jovens são mais assassinados são Restinga, Lomba do Pinheiro e Sarandi. E fomos buscar entender todo o processo de construção histórica desses territórios. Para isso usamos uma categoria teórica da Ruth Glass, o termo gentrificação, que é tentar tornar nobre algum lugar. Porto Alegre é marcada por isso, e está vivenciando isso agora também. Mas como a gente costuma dizer, todo o processo de gentrificação gera também um processo de favelização. Então todos esses territórios sofreram em algum momento processos de remoção das populações sem nenhum cuidado, sem nenhum contexto de política pública. Por isso, esses territórios não são violentos, historicamente, a gente tem estigma de considerar esses territórios violentos, mas eu sempre costumo dizer que esses territórios são violentados.
BdF RS - Como assim violentados? Pode nos explicar melhor?
Giovane - Historicamente, essas populações foram jogadas nesses lugares sem acesso à política pública, sem acesso a pavimentação, saneamento básico... E aí a gente tem toda uma construção histórica desses lugares que marcam esses altos índices de mortalidade juvenil. O que mais uma vez confirma a hipótese que a mortalidade juvenil é uma expressão trágica de uma série de necessidades não atendidas, de uma estrutura de política pública. E a pesquisa demonstra isso, que esses territórios têm sim uma insuficiência de aparelhos públicos, como na área da educação, na área da saúde, na área da assistência social, que sofre muito com a dinâmica da ausência estatal.
Esses bairros foram violentados ao longo do processo histórico, e continuam sofrendo várias violências, violência estrutural, violência estatal, pela ausência de políticas públicas. Não é novidade, mas coincidentemente entre aspas, esses bairros concentram maior índice de população negra, menor IDH da cidade, e logo uma grande densidade da lógica da mortalidade juvenil.
BdF RS - E onde isso acontece se estabelece o crime organizado?
Giovane - Exatamente. Hoje escutamos na campanha eleitoral muitos discursos em defesa de um Estado mínimo. Assim como nas conversas cotidianas, mas esse é o resultado desse Estado mínimo, a insegurança. Mas a gente precisa avançar enquanto sociedade brasileira, de entender a segurança também em um prisma ampliado, de interestruturalidade de políticas públicas. A gente não vai ter segurança pública enquanto não tiver a política de assistência social fortalecida, a gente não vai ter segurança pública enquanto a gente não tiver uma política voltada para infância e ao adolescente fortalecida. E aí é importante a gente pensar que em Porto Alegre hoje, a faixa etária de jovens que são mais assassinados é aos 18 anos de idade.
Quais políticas públicas nós temos para essa juventude? O que a gente tem de políticas públicas de proteção social? São poucas, precárias, porque a gente ainda tem uma ideia equivocada de que a juventude não precisa de proteção social porque vai trabalhar, vai se virar, mas que mundo do trabalho a gente tem para essa juventude? O mundo do trabalho oferecido é, principalmente nesses territórios violentados, a inserção no mercado não legal do tráfico de drogas, que é outra categoria que aparece muito fortemente nas entrevistas. O tráfico de drogas como um fator catalisador da mortalidade juvenil, e entendendo esse tráfico de drogas como um mercado, um mercado de trabalho sim, ilegal, não formal, violento, que gera processo de violência.
Nas entrevistas, muitos jovens falam da falta de oportunidade, da falta de inserção, de conseguir sobreviver, e o tráfico de drogas aparecendo como a única possibilidade de se inserir nesse mundo, que vai conseguir dar conta de demandas da reprodução da vida social, de comer, mas também a lógica de poder se legitimar, de ser visto, de poder ter visibilidade a partir do tráfico de drogas. E daí eu acho que é muito importante a gente poder marcar isso, muitas vezes em muitos discursos o tráfico de drogas aparece como uma opção para a juventude. E eu sempre brinco com isso, eu uso uma metáfora, opção é o que a gente faz de manhã ao escolher uma roupa... A opção, ela se dá dentre um leque de possibilidades. Quando a gente não possibilita um leque de possibilidades para a pessoa, ou pro conjunto da sociedade, a gente não pode falar em opção. O tráfico de drogas muitas vezes aparece como um caminho marcado pra grande parte, uma massa dessas juventudes.
O mundo do trabalho oferecido é, principalmente nesses territórios violentados, a inserção no mercado não legal do tráfico de drogas
É claro que eu não estou dizendo que não existe uma resistência, uma persistência, que a juventude resiste, é óbvio que sim. Grande parte da juventude não tem vinculação com o tráfico de drogas, mas é importante a gente poder entender que esse tráfico de drogas aparece como um mercado ilegal não formal pra essa juventude, que é por sua vez mais criminalizada. E também vamos perceber de que forma se estruturam nossas políticas de Segurança Pública, que focam nesses bairros de maior pobreza as suas ações de uma violência significativa.
Mas as drogas não estão somente nesses territórios, elas circulam de diversas formas, mas uma abordagem policial numa festa rave, onde as pessoas utilizam êxtase, vai ser totalmente diferente de que alguma festa que as pessoas estão fumando maconha na comunidade. Então é importante a gente pensar que existem diferentes formas de abordagem, inclusive policial, porque a gente está sob desígnio de uma ideia que é a chamada guerra às drogas, e também isso tem um impacto muito forte em Porto Alegre, e muito forte para os aparelhos de Segurança Pública.
BdF RS - Segundo os dados do Anuário de Segurança Pública, a polícia brasileira é a que mais morre e também a que mais mata...
Giovane - Pois é, esse paradigma da guerra às drogas, que é um paradigma importado de uma política americana da década de 1970, só tem trazido malefícios, na verdade só tem ampliado o índice de violência letal, porque a guerra pressupõe o inimigo, e quem é o inimigo? É uma pessoa, e quem é essa pessoa? De modo geral uma juventude pobre e negra.
Nós somos o terceiro estado com menor índice de pessoas negras no Brasil segundo os dados censitários, mas a gente tem seguido a mesma tendência de mortalidade da juventude negra do que em outros estados do país. Então, proporcionalmente, a gente continua assassinando numa lógica, seguindo uma tendência do genocídio da juventude negra, e é muito importante a gente falar isso.
A ideia do racismo estrutural, e eu falo estrutural não por acaso, quando a gente fala em algo estrutural que estrutura as relações, não é algo pontual de um jogo de futebol x ou y, que alguém faz um xingamento, não é isso. É algo que estrutura todas as nossas relações sociais da sociedade brasileira. Atingiu um racismo que estrutura todas as relações, e isso aparece muito fortemente nos índices de mortalidade juvenil. Tanto nos índices como também nos relatos orais das juventudes, da comunidade.
Os relatos de racismo sofridos por esses jovens ou esses familiares foram muito presentes, tanto no que diz respeito a uma violência policial sofrida por essa juventude, tanto no que diz respeito a forma que esse racismo se espraia nas relações de trabalho que eles estabelecem, nas suas formas de resistência, nas suas formas de viver. Esses corpos negros, eles estão a todo momento em perigo, eles falam isso nas entrevistas. Teve um jovem que falou: “eu sou um sobrevivente, eu tenho 16 anos e tô vivo”. Então para um jovem de 16 anos falar isso e ter essa percepção, o racismo estrutural é muito presente, marcante, e marca a subjetividade dele.
BdF RS - O crescimento da mortalidade juvenil no Rio Grande do Sul foi maior do que no Rio de Janeiro e São Paulo?
Giovane - Há panoramas que mostram que o Rio Grande do Sul, nos últimos 10 anos, foi o estado do país que mais aumentou os índices de mortalidade juvenil, inclusive teve um aumento maior nos seus índices de mortalidade do que o Rio de Janeiro e São Paulo. Porque Rio e São Paulo já é um absurdo há muito tempo. Mas considerando o panorama de 2006 até 2016, Rio e São Paulo tem uma diminuição e o estado do Rio Grande do Sul tem um aumento.
A gente ainda está entre os estados que tem taxas medianas de índices de mortalidade juvenil, ele não está nem entre os estados que mais se mata, com uma violência letal extremamente acelerada, nem o menor, a gente tem Ceará numa ponta, concentrando altos índices, e Santa Catarina na outra, concentrando os menores índices. Fortaleza e Santa Catarina, e o Rio Grande do Sul se estabelece enquanto o meio do caminho.
BdF RS - E quem mata?
Giovane - Principalmente, a disputa do tráfico de drogas. Porque o tráfico de drogas se constitui num mercado ilegal, informal, e suas ações são baseadas numa violência, principalmente quando a gente tá falando desses territórios, onde se escala uma juventude muito cedo, e as suas relações são calcadas sim na morte. Mas também a gente tem uma incidência muito grande, segundo dados também nacionais de outras pesquisas, de uma violência policial bastante acelerada.
É importante a gente pensar sobre isso, porque o que os aparelhos de Segurança Pública buscam enfrentar é, principalmente, o tráfico de drogas varejista. Esse tráfico de drogas está vendendo ali com poucos investimentos ainda, inteligência para poder pensar o tráfico de drogas de forma mais ampliada, e quais drogas são criminalizadas. Então, essa morte tem como fator catalisador o mercado do tráfico de drogas e a forma que a gente enquanto sociedade enfrenta esse tráfico de drogas. Essas relações estabelecem uma morte muito grande.
Porém, essa tua pergunta também traz um pressuposto importante, porque também mata a ausência de políticas públicas, a ausência estatal. E o Estado, mesmo quando ele opta em ser ausente, ele está presente, porque as políticas de encarceramento, de ditas seguranças públicas, elas estão presentes. E isso a gente vê muito nitidamente na análise das trajetórias dos jovens nas políticas públicas.
BdF RS - É Estado mínimo nas políticas sociais e máximo na repressão...
Giovane - Exatamente, o Loïc Wacquant ajuda a entender muito bem isso, um autor que mostra que quando esse Estado social se retrai o Estado penal entra muito forte. Vemos isso nitidamente quando avaliamos as trajetórias dos jovens nas políticas públicas. E aí a gente tem um problema muito sério e enfrentou esse problema enquanto pesquisa, temos uma precariedade de dados de monitoramento de políticas públicas em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul e no Brasil. Os dados ainda são muitas vezes registros manuais, com pouco processo de informatização para entender esse sistema de garantias de direitos. A gente teve que buscar em política por política, e muitas vezes buscando, evidentemente com todas as autorizações institucionais, os dados físicos, em caixas, em registros de políticas públicas, um trabalho muito grande.
Mas o que demonstra isso? Isso eu acho que é um achado importante. Quando a gente vai analisar as políticas públicas percebemos duas tendências. Primeiro: a política de educação enquanto uma política que emerge, por ser uma política pública obrigatória. Então o acesso à política de educação marca a trajetória desses jovens. Muitos jovens não têm acesso à política pública alguma em toda a sua trajetória de vida, mas em algum momento eles tiveram passagem pela escola. O que demonstra essa passagem pela escola, em todas as trajetórias praticamente? Uma enorme distorção idade série, um histórico muito grande de repetência e de abandono escolar muito cedo. Todos os jovens que foram assassinados, a média de escolaridade deles é extremamente baixa, principalmente ali pela quarta série, e essa fragmentação dessa escola, abandono escolar desde muito cedo.
A gente tem índices de infrequência escolar nas trajetórias desde a primeira série, então muito cedo esse jovem tem uma fragmentação da política de educação. E aí eu acho que aqui pisca um alerta importante, de uma política pública estratégica, e de uma política pública cada vez mais precarizada, que é a educação pública. Nesse ponto, a gente pode analisar dados de estudos do mundo todo, o que que está sendo feito no mundo para reduzir os índices de mortalidade?
Em média, a gente tem a morte desses jovens 6 meses depois da passagem do sistema socioeducativo
Principalmente investimento em política de educação, mas não investimento em uma política de educação que coloque o professor na linha de frente de tudo e de todos, como vem se constituindo. Entender a política de educação enquanto uma política que pode ser intersetorial e articulada à rede de proteção, com investimentos públicos. Todos os países que investiram pesadamente nas políticas de educação pública e de qualidade, têm visto a redução dos índices de mortalidade. Isso é, ao contrário do que se fala muitas vezes de forma eleitoreira que o acesso à arma de fogo reduz índice de mortalidade, o que as pesquisas num contexto internacional dizem é o contrário, que o acesso à arma de fogo tem aumentado significativamente a questão da mortalidade.
Por um outro lado, a gente tem uma presença muito constante desses jovens numa perspectiva da criminalização. Se a gente tem por exemplo pouquíssimos acessos à política de assistência social na trajetória de vida desses jovens, a gente conseguiu achar pouquíssimos registros desses 18 jovens analisados, e daí a gente não sabe se não foram registrados, ou se realmente não tiveram acesso, eles e suas famílias, a gente tem uma presença massiva na lógica da criminalização. Dos 18 jovens, 10 deles passaram por medidas de internação. O que corrobora também com outros dados de pesquisa, que demonstram que um alto índice de mortalidade juvenil nos jovens com passagem do sistema socioeducativo.
E daí acende um outro alerta importante para poder qualificar a política pública, como que a gente qualifica o atendimento à proteção social desses jovens pós passagem pelo sistema socioeducativo? E isso é um dado muito sério, o índice de mortalidade de jovens com passagem no sistema socioeducativo, o que corrobora com outras pesquisas. Em média, a gente tem a morte desses jovens 6 meses depois da passagem do sistema socioeducativo. Essa é a média de tempo que eles são assassinados depois da passagem no sistema socioeducativo, desses 10 jovens analisados dessa amostra de 2018.
BdF RS - De alguma forma isso explicaria os baixos índices no sistema socioeducativo em Porto Alegre?
Giovane - Pode ser uma hipótese da dificuldade, da não crença da suficiência da punição do sistema socioeducativo, que é algo muito recorrente nos discursos presentes na sociedade como um todo. Isso é uma lógica de um discurso punitivista, que tem fomentado essa visão de não usar os meios legais e formais para poder pensar o processo de responsabilização dos adolescentes com envolvimento em atividades ilícitas.
A gente teve recentemente vários avanços que são significativos, que temos que reconhecer, de uma formação em direitos humanos, mas o que várias pesquisas do Brasil têm demonstrado, é que é uma instituição que reproduz muito uma dinâmica punitivista, e que muitas vezes o agente de segurança pública ao ser embalado por essa lógica punitivista da culpabilização, pode encontrar outros meios que não o meio legal, com aplicação da medida, que já seria uma punição bastante significativa para o adolescente.
Se a gente for pensar, de modo geral a gente tem uma ideia de que a socioeducação não pune o suficiente, mas a socioeducação ela tem um caráter extremamente punitivo sim, e não protetivo somente, e aí é uma faca de dois gumes que a gente tem que cuidar com relação a isso. Muitas vezes a gente tem um discurso de entender a socioeducação como algo protetivo, não é, ela se constitui também como algo punitivo, ela tem essa dupla dimensão, e muitas vezes por não acreditar na socioeducação, pode, é uma hipótese, estar levando a esse tipo de conduta.
O que tá por detrás, e o que várias pesquisas têm demonstrado, é essa corrente forte que consiste, persiste, não só no aparelho de Segurança Pública, mas na sociedade como um todo, mas especialmente se reproduz nos aparelhos de segurança pública a lógica punitivista de culpabilização, e que toda e qualquer forma retributiva, que é não punitiva do sofrimento, mas que possa realmente compreender e pensar a partir da ação com envolvimento na lógica retributiva, ela se coloca como algo questionado, não efetivo, não necessário, e aí a gente tem uma onda muito forte…
BdF RS - Direitos humanos defende bandido...
Giovane - Exatamente, direitos humanos para humanos direitos. Então ainda tem essa tendência muito forte nos discursos do aparelho de Segurança Pública, e na sociedade como um todo. Eu acho que a gente tem um desafio muito grande, que é poder construir a ideia de direitos humanos de uma forma que as pessoas realmente compreendam o que são direitos humanos. Porque a gente tem hoje uma campanha, e essas campanhas elas não são por acaso, de poder tornar a ideia dos direitos humanos enquanto uma ideia de direitos humanos para bandidos, que não é pra todas as pessoas, perdendo de vista a dimensão civilizatória que é posta nos direitos humanos.
A violência é um produto de uma sociedade que é calcada na desigualdade social que gera cada vez mais violência, e a gente acaba construindo a ideia de mocinhos e vilões
A gente tem esse desafio de construir um discurso, uma política de direitos humanos que possa realmente dialogar e fazer sentido com as pessoas, contrapondo esses discursos desses programas que vendem sangue enquanto uma mercadoria, que criam a ideia de mocinhos e vilões, sem entender a complexidade que estabelece com relação a isso. E eu gosto muito de uma frase do Vazquez que diz que quando a gente perde a dimensão de entender que a violência é um produto da sociedade, a gente individualiza e culpabiliza essas pessoas por situações de violência. E isso é muito importante a gente pensar, que a violência é um produto de uma sociedade que é calcada na desigualdade social que gera cada vez mais violência, e a gente acaba construindo a ideia de mocinhos e vilões, e isso é nefasto para poder entender e enfrentar as raízes dessa violência que é a raiz da violência estrutural.
BdF RS - No dia 28 de novembro a pesquisa será lançada em forma de livro com um nome impactante: Rastros de sangue em Porto Alegre. Por que essa escolha?
Giovane - O título do livro é "Juvenicídio, Território e Políticas Públicas: Rastros de Sangue na cidade de Porto Alegre". Exatamente pela questão de a gente poder marcar essa ideia de investigar as mortes. Todo esse rastro de sangue que muitas vezes é invisível para a sociedade como um todo. Nós temos um olhar seletivo pra nossa dor, quando morre um jovem no Moinhos de Vento, no Parcão, que tava com tênis Nike, fazendo cooper de noite, toda a sociedade chora, faz vigília, clama pelos aparelhos de Segurança Pública. Quando um jovem negro da Restinga é assassinado, a sociedade vira as costas pra isso, ela não enxerga isso, isso nem é noticiado, nem sabe. Ou quando é noticiado, eu sempre costumo dizer, que é utilizado uma vírgula perversa, que a pessoa diz: morreu um jovem na Restinga, vírgula, há alguma possibilidade de relação com o tráfico de drogas, e isso já retira toda a possibilidade de poder entender e humanizar essa pessoa, humanizar essa morte.
Então, o primeiro objetivo para colocar Rastros de sangue seria para dizer que a gente está olhando sim pra morte, a gente está olhando pra esses rastros de sangue. São invisíveis, mas a gente está percorrendo a partir da morte, para entender a vida. Então esse é um primeiro pressuposto, para também chamar atenção, dizer que está acontecendo hoje um genocídio da juventude, um genocídio da juventude porto-alegrense.
A gente tem um bairrismo que acaba ocultando isso. Achamos que o estado do Rio Grande do Sul tem índices maravilhosos, mas não tem, estamos sim assassinando nossos jovens de forma sistemática e precisamos discutir isso. No livro falamos de morte a todo momento, porque queremos falar de vida. Denunciamos a morte para pensar instrumentos e chamar a atenção de toda a sociedade para falar sobre vida. E hoje, quando a gente destrói políticas públicas, quando tem um discurso de redução de gasto estatal, quando na verdade deveria ser investimento estatal, a gente tá contribuindo para a questão da mortalidade juvenil.
Toda a sociedade quando clama por um Estado mínimo, e esse Estado mínimo corrobora com menos educação, menos investimento em políticas públicas, a sociedade tem marcas de sangue nas mãos. Quando o poder público destrói política pública, ele também contribui com a mortalidade, não é só o tráfico de drogas. O tráfico de drogas é uma expressão perversa de uma ausência estatal. O Estado mínimo mata, e isso que a gente quer mostrar na pesquisa com dados, e não simplesmente com discursos.
Uma Universidade federal se une ao movimento social para poder denunciar a mortalidade que tá acontecendo em Porto Alegre, e no estado do Rio Grande do Sul como um todo. E o que queremos com isso no final das contas, é que se transforme em políticas públicas. A gente não tem hoje um plano de enfrentamento à mortalidade juvenil em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul e em nível nacional. Tivemos alguns ensaios nacionalmente, em gestões anteriores, mas as ideias foram totalmente abandonadas, e precisamos principalmente pensar pra faixa etária juvenil.
Toda a sociedade quando clama por um Estado mínimo, e esse Estado mínimo corrobora com menos educação, menos investimento em políticas públicas, a sociedade tem marcas de sangue nas mãos
É óbvio que, e isso a gente demonstra na pesquisa, o índice de mortalidade, a trajetória da mortalidade começa desde o berçário, desde os primeiros anos de vida de uma pessoa. Porém a gente tem os índices mais alarmantes na faixa etária dos 18 anos, e é importante que a gente possa pensar políticas públicas para essa população. É fundamental entender que o estatuto da juventude não é uma carta recomendatória bonitinha, que no final das contas é isso. O que a gente tem de políticas públicas para faixa etária dos 15 até os 18 anos não é nada se a gente comparar de políticas efetivas, acessíveis para essa juventude, a gente tem uma precariedade enorme. E o mais curioso é que a pessoa dos 15 até os 18 anos, é o único segmento social protegido por dois estatutos, que é o ECA e o EJUVE, e ao mesmo tempo tem uma ausência total de políticas públicas.
A legislação é muito importante, fundamental, mas de que forma que essa legislação se transforma em política pública, e é essa a nossa luta, e a nossa luta como universidade, enquanto um grupo de estudos vinculado à universidade, que se articula a um movimento social para tentar fazer coro pra pressionar o Estado para o desenvolvimento de políticas públicas. A gente não quer que esse livro seja publicado para enfeitar a biblioteca da UFRGS, por exemplo, a gente quer que esse livro possa ser instrumento de luta, e isso que vamos oferecer para a sociedade.
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Edição: Marcelo Ferreira