Rio Grande do Sul

Entrevista

Pesquisadora fala sobre o uso político do passado e da memória da Independência do Brasil

Estudante de história na UFRGS, Luiza Moraes reflete sobre o bicentenário da Independência e sua relação com o presente

Brasil de Fato | Porto Alegre |
O Grito dos Excluídos e das Excluídas propõe a reflexão sobre as contradições da independência brasileira e as tarefas inconclusas na construção da soberania nacional e popular - Foto: Igor Carvalho

O próximo 7 de setembro, nesta quarta-feira, vai marcar os 200 anos da Independência do Brasil. A interpretação desse acontecimento e de seus reflexos para a história recente está em permanente disputa e releitura pela sociedade.

O embate pelo sentido que se imprime à história fica nítido, por exemplo, quando da notícia de que a data será marcada novamente por manifestações antagônicas. De um lado, o tradicional Grito dos Excluídos e das Excluídas, realizado há 28 anos pelos movimentos sociais e populares. Por outro lado, manifestações de apoio ao atual presidente Jair Bolsonaro (PL).

:: Grito dos Excluídos e das Excluídas volta às ruas de Porto Alegre, no bairro Partenon ::

Outro grande acontecimento que gerou debate sobre a interpretação do Bicentenário da Independência é a visita ao Brasil do coração de D. Pedro I. É nesse contexto que a estudante da Licenciatura em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Luiza Ribeiro Moraes publicou um artigo no Brasil de Fato RS, intitulado "O dia da (In)dependência do Brasil". 

Luiza é pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre os Usos Políticos do Passado (Luppa), estudando as formas de uso do passado nas representações da Independência do Brasil, no contexto contemporâneo. O artigo publicado propôs o debate sobre as visões possíveis acerca desse momento histórico, levantando também questionamentos sobre a identidade nacional.

Por isso, o Brasil de Fato RS propôs uma entrevista, para destrinchar o tema e o ponto de vista da pesquisadora. Confira

Brasil de Fato RS - Gostaríamos que tu, como pesquisadora da história, começasse falando sobre o que seria o “uso do passado”.

Luiza Moraes - “Uso do passado” ocorre quando evocamos um acontecimento, símbolo, personagem do passado para cumprir uma demanda do presente. Talvez fique mais claro através de exemplos: novelas de época, que evocam acontecimentos e personagens do passado, servem para entreter a audiência no presente, ou seja, se utilizam do passado para uma demanda do presente.

Mas não é só isso - e aí entra a questão do uso político sobre o passado. Pensando especificamente nas novelas "Novo Mundo" e "Nos Tempos do Imperador" da Globo, ambientadas na época da Independência do Brasil, seu núcleo cômico estava na população de baixa renda, enquanto os monarcas receberam cenas mais sublimes, tensas e emotivas. Isso tem valor simbólico-político, traz uma mensagem de respeito a certos setores da sociedade e desrespeito a outros, tanto para as figuras do passado como para as que convivemos no presente. 

Os usos políticos do passado vão além de novelas, claro. Nomes de ruas e de praças, monumentos, museus, datas comemorativas, aulas na escola, músicas, palavras de ordem de times de futebol, manifestações culturais e tantos outros espaços e ações utilizam-se do passado para as necessidades do presente.

BdF RS - A tua pesquisa é sobre o uso político do passado da independência do Brasil. Nos fala sobre ela.

Luiza - Um tema muito recorrente na História Pública, essa área que estuda os usos políticos do passado, é a análise sobre as evocações da ditadura civil-militar brasileira no contexto contemporâneo. Contudo, a Independência, apesar de por vezes esquecida, também me parece um tempo histórico importante de pesquisa, mesmo que mais distante dos dias atuais e não tão evidentemente traumática como as consequências do Golpe de 1964. 

A Independência simboliza de forma hegemônica a gênese do Brasil, simboliza o heroísmo de governadores, ou seja, dá liga naquilo que chamamos de nossa Pátria e orienta quais são seus representantes mais importantes. 

Minha pesquisa se insere na análise do discurso conservador sobre a Independência do Brasil no tempo presente. Faço essa busca a partir de produções documentais de empresas ligadas direta ou indiretamente ao bolsonarismo, monarquismo e outras expressões ideológicas que defendem a criação do Brasil através dos grandes feitos de poucos homens, com o marco no 7 de setembro.

Ignorar todas essas movimentações é perder a oportunidade de pautarmos o que desejamos para o Brasil

BdF RS - Recentemente o BdF RS publicou um artigo de opinião teu em que tu tratas sobre este tema, e levanta algumas questões sobre a identidade nacional relacionada com o tema da independência. Perguntamos, a partir deste debate, o que podemos comemorar nestes 200 anos da Independência?

Luiza - Marcos territoriais, como nomes de praças e avenidas, e marcos temporais, como as datas comemorativas, são usos políticos do passado encabeçados pelo Estado.

Por isso tem amplo alcance: o dia 7 de setembro será feriado em todo o país, nas ruas terão passeatas e marchas celebrativas, nas escolas o hino nacional será cantado durante a semana, na TV reportagens já vêm sendo veiculadas. Ignorar todas essas movimentações é perder a oportunidade de pautarmos o que desejamos para o Brasil e quais nossos símbolos do passado merecem ser celebrados. 

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Se tomarmos em nossas mãos essa data conseguiremos ampliar a discussão sobre como poderemos nos tornar verdadeiramente soberanos da nossa Pátria. Devemos denunciar: não foi através do Grito do Ipiranga de 1822 que nos tornamos independentes, se pensarmos no acesso universal a direitos básicos como um requisito à soberania nacional, os quais não foram garantidos através desse acontecimento.  

Brasil de Fato RS - Ainda dentro deste debate sobre as várias formas de se enxergar a nossa história, teremos, neste 7 de setembro, manifestações antagônicas. De um lado, temos manifestações favoráveis ao atual presidente, que carregam um ideário. Por outro lado, temos o tradicional Grito dos Excluídos e da Excluídas. O que se pode comentar sobre essa dualidade?

Luiza Moraes - Essa dualidade é resultado do Brasil ser o país com uma das maiores desigualdades econômicas e sociais do mundo. No 7 de setembro veremos vários significados sobre esse dia sendo disputados na arena pública.

Acredito que o Grito dos Excluídos e das Excluídas e as manifestações favoráveis ao Bolsonaro representam de forma clara dois projetos de nação muitos diferentes: um que agrega, outro que exclui; um que acredita no poder popular, outro que deseja tutelar o povo; um que defende o acesso universal a direitos básicos, outro que defende “direitos humanos para humanos direitos” - e nós sabemos quais são os critérios de “humanos direitos” que esse discurso possui.  

:: Grito dos Excluídos e das Excluídas completa 28 anos de luta por justiça social ::

Por isso, reforço a importância de nesse dia estarmos atentos e atentas às consequências de discursos restritivos da identidade nacional, ancorados por uma narrativa de criação do país que exclui a maioria daqueles que vivem nesse território. Existe nesse marco espaço para pautarmos outros projetos e uma outra identidade nacional mais inclusiva. 


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Edição: Marcelo Ferreira