Em setembro afirmamos: vivas, livres e desendividadas nos queremos. Y nos tenemos
Este é o quinto texto de uma série de escritos a partir do encontro entre uma escutadora e uma sobrevivente de feminicídio, cujos vínculos se deram a partir do programa de extensão Clínica Feminista na Perspectiva da Interseccionalidade da UFRGS.
Este texto foi escrito entre incertezas e reconhecimentos, entre choros de crianças, abcessos dentários, goteiras no telhado avariado pelas chuvas de granizo, campanhas eleitorais e escândalos políticos. Entre benefícios sociais negados, dores musculares, consultas médicas em espera. Em meio às lembranças de puerpérios negligenciados, depressões pós-parto e estresse pós-traumático. Em meio ao pior governo já experimentado neste país, onde nunca se matou tanto, e nunca se morreu tanto. Em meio a sigilos de 100 anos, na tentativa de ocultar os crimes de lesa pátria e lesa humanidade. Em meio às notícias e imagens de um brasileiro neonazista que apontou e atirou na cara da vice-presidenta argentina, na porta de sua residência.
Esse texto foi escrito no mês em que se propõe a campanha nacional de prevenção do suicídio, e nenhuma das suas autoras pode dizer que não sabe o que é ter tido pensamentos dessa natureza. Todavia, também não podemos dizer que não sabemos os efeitos que a escuta produz, e que nos salva, diariamente. Uma escuta feminista, implicada e respeitosa. Felizmente, pudemos experimentar formas de cuidado surpreendentes, para além dos itinerários institucionais precários destinados às vítimas de violência. E por estarmos vivas é que esse encontro se torna possível.
Uma imagem ou alegoria que tem sido presente nesses diálogos é o paradoxo do céu escuro e um campo de girassóis: essas flores, em algum momento de seu ciclo vital, quando já não estão mais crescendo, voltam-se umas às outras para a troca de calor e energia nos dias escuros e nublados. Fosse uma metáfora, já seria poética o suficiente, mas a natureza tem sempre uma maneira profunda de nos ensinar e nos mostrar pistas sobre como sobreviver, assim como de denunciar quando as coisas não estão indo bem. É a matéria da qual somos feitas.
Uma vez experimentados os estados depressivos, as sensações corpóreas, ritmo e qualidade do sono, já ficamos em alerta em relação à piora dos sintomas, mas algo precisa ser dito: embora não seja novidade que os fatores ligados ao gênero, raça/cor e orientação sexual incidem desde a ideação suicida até o ato, constituindo-se como determinantes sociais em relação ao suicídio, poucos são os países que reconhecem a indução ao suicídio como uma variação do feminicídio.
Através de dados epidemiológicos, sabemos que a letalidade das tentativas de suicídio entre homens é maior, mas entre mulheres e identidades subalterizadas na cultura patriarcal o número de tentativas é expressivamente maior, denunciando a violência e o sofrimento psíquico vivenciados por quem atenta contra a sua própria existência.
Falar de prevenção ao suicídio sem considerar que machismo, sexismo, racismo, LGBTfobia, capacitismo e xenofobia são fatores que incidem diretamente sobre as vítimas é seguir revitimizando-as através de narrativas de culpabilização individual, sem apontar a responsabilidade do Estado para com as condições de vida e os marcos de direitos humanos. Quando, em verdade, precisamos nomear que a precarização, o abandono e a violência são o que atenta contra a dignidade humana, torturando pessoas até o fim das suas vidas, na descrença no laço social. A distopia de mulheres se matando para não serem ainda mais torturadas e mortas por seus algozes é uma dívida ainda não reconhecida pelo Estado brasileiro em sua legislação e práticas institucionais.
“Independência ou morte” não é uma escolha, é uma sentença. Mais patriarcal do que nacionalista, inclusive. Em clave feminista, reconhecemos a interdependência como essencial para a sustentação de redes de apoio, redes vitais. Das consignas com que o feminismo nos interpela, em setembro afirmamos: vivas, livres e desendividadas nos queremos. Y nos tenemos.
* Thaís Hipólito, em diálogo com Lara Werner.
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko