Segundo a mídia corporativa vem destacando há algum tempo, existiria no Brasil um “voto evangélico” que – a menos de 30 dias das eleições de 2 de outubro – poderia reverter milhões de votos para o atual presidente. Será isto verdadeiro ou plausível?
Primeiro, como analistas do campo religioso vêm enfatizando, a realidade do voto no Brasil não é tão simples. Não existe um “voto evangélico”! Mais: esse voto não pode ser manipulado a bel prazer desse ou daquele candidato.
A propaganda de que o voto assim dito “evangélico” tem dono como se fosse voto de cabresto é equivocada. É o que informam a pesquisadora das tradições religiosas, jornalista Magali do Nascimento Cunha e a cientista política Ana Carolina Evangelista, doutoranda da FGV, ambas pesquisadoras do ISER – Instituto de Estudos da Religião, do Rio de Janeiro.
Um pouco de história
O que é preciso considerar nesse sentido? Existe uma diversidade de igrejas e orientações religiosas no campo assim dito “evangélico”. Na verdade, o termo hoje é equívoco porque ele esconde uma realidade histórica de mais de 200 anos, com uma história complexa e cheia de percalços.
As primeiras denominações protestantes evangélicas chegaram ao Brasil nas duas primeiras décadas do século 19, como evangélico-luteranos, reformados. Mais tarde, anglicanos, batistas, presbiterianos, metodistas, menonitas, e outros grupos menores.
Na segunda metade do século 19, missões norte-americanas incrementaram o envio de missionários/as ao Brasil, constituindo uma rede de pequenas comunidades e de escolas, algumas das quais existem até hoje.
Esta presença, no entanto, não foi capaz de diminuir a hegemonia secular da Igreja Católica, que no século 19 também realizara sua Reforma e passara a vincular a igreja brasileira cada vez mais às orientações do Vaticano.
Mas a virada mais significativa nesse sentido veio com a chegada ao Brasil de missionários evangélicos que deram início aqui ao que mais tarde ficou conhecido como pentecostalismo. A partir de 1910 surgem, primeiro em Belém, a igreja Assembleia de Deus, criada pela ação de missionários suecos que haviam passado pelos EUA; em São Paulo, missionários italianos evangélicos fundaram a Congregação Cristã do Brasil, as duas primeiras denominações pentecostais entre nós.
Mais tarde surgem de dissidências dessas igrejas outras duas denominações importantes como a Igreja Pentecostal Deus é Amor e O Brasil para Cristo. Somente a partir dos anos de 1970 as igrejas de corte pentecostal passaram a ganhar maior projeção. Antes, elas foram pioneiras no uso massivo do rádio e da TV para seus programas de cunho religioso e proselitista. Esta característica não passou em branco para a Igreja Católica que reforçou sua presença nesses meios midiáticos.
O impulso neopentecostal
O que temos, então, a partir do final dos anos de 1990 é a explosão neopentecostal oriunda da influência explícita do tele-evangelismo dos EUA. Exemplos mais influentes foram a Igreja Universal do Reino de Deus, sob a liderança do auto instituído bispo Edir Macedo, e suas dissidências, a Igreja Internacional da Graça de Deus, do bispo R. R. Soares, e a Igreja Mundial do Poder de Deus, do pastor Valdemiro Santiago. A partir dessas, muitas outras vão se formando como Sara Nossa Terra, Renascer em Cristo, e uma miríade de pequenas igrejas neopentecostais, dirigidas por pastores carismáticos.
Nessas igrejas passa a vigorar o forte personalismo das lideranças e a gestão privada dos recursos reunidos com a oferta dos dízimos da membresia. Se as primeiras igrejas neopentecostais focaram sua membresia nas classes médias, as outras atuam capilarmente nas periferias e direcionam sua ação entre as camadas mais pobres da sociedade, aliás, característica dos inícios do pentecostalismo no Brasil.
Esta breve síntese incompleta de uma história complexa e pouco conhecida do amplo público ajuda a afirmar que não existe um bloco homogêneo que se possa chamar de “evangélico”. Existem sim, muitas igrejas e denominações que se entendem filiadas a uma tradição antiga da Reforma Protestante que ficou conhecida como “evangélica”, mas que com o passar do tempo e as vicissitudes históricas foi se diversificando e divergindo a tal ponto que hoje, em muitos casos, seja difícil caracterizar este ou aquele grupo como “evangélico” na acepção clássica. Devagar com o andor, portanto.
Mas algumas constatações são importantes destacar, a bem da verdade.
A chamada “bancada evangélica” no Congresso
A pesquisadora Ana Carolina Evangelista, em artigo recente, cita pesquisas que vêm sendo realizadas pelo ISER/RJ desde meados dos anos de 1990 (Piauí, agosto 2022). Nessas se pode constatar a crescente presença de denominações pentecostais e neopentecostais no cenário político brasileiro, com a eleição de vereadores, deputados, senadores, prefeitos, governadores. Uma tendência que se acentuou nas últimas décadas, dando surgimento até mesmo ao que hoje se chama de “bancada evangélica” no Congresso, com cerca de 100 parlamentares, algo como um quinto daquelas duas casas legislativas.
O que se pode constatar também é que uma parcela significativa desses segmentos “evangélicos” no Brasil é formada pelos chamados “sem denominação” ou “desigrejados”. O que significa que já temos uma presença significativa de pessoas descontentes com os rumos de suas congregações.
Por outro lado, mesmo que o pastor não consiga convencer os fiéis e haja uma diversidade de pastores e hoje também de pastoras com variáveis identificações teológicas e políticas, é importante reconhecer que cada vez mais espaços entre essas igrejas têm buscado influenciar politicamente seus fiéis de múltiplas maneiras.
Daí a se falar, porém, de um bloco homogêneo e cativo vai uma distância que a realidade pode nos surpreender. Alguns dados nos ajudam a calibrar a observação. Apesar de toda a força midiática dos canais dessas denominações e a propaganda partidária, a identificação religiosa explícita não tem sido, sozinha, fator de êxito numa disputa eleitoral. Basta ver nomes como o do pastor Everaldo D. Pereira (PSC), nas eleições presidenciais em 2014, aquele mesmo que rebatizou o atual presidente do país nas águas do rio Jordão, ser derrotado; ou mais recentemente, o bispo Marcelo Crivella, da todo-poderosa IURD do bispo Macedo (TV Record), ser também derrotado nas eleições municipais do Rio de Janeiro em 2020. Isto significa que não se pode, de forma superficial, afirmar que o voto das pessoas que frequentam ou se identificam com essas igrejas e comunidades – milhões nos dias de hoje –, se tornam votos cativos.
Como explica Ana Carolina, “há um peso crescente dessa parcela significativa do eleitorado, especialmente depois do crescimento da população evangélica no país e, consequentemente, sua reivindicação de representação e registro de seus anseios nas urnas. No entanto, é equivocado sugerir um ‘voto evangélico’, como se as pessoas evangélicas seguissem em bloco rumo a uma mesma direção política”. Não por acaso, surgiu nos últimos anos uma Frente Evangélica pelo Estado de Direito que tem como lideranças os pastores Ariovaldo Ramos, Ed Kivitz e Henrique Vieira, todos batistas. E também Adventistas de Esquerda, Cristãos contra a Fascismo ou ainda a PPL – Pastoral Popular Luterana, entre outros.
Os múltiplos fatores do voto
Assim, é preciso considerar que o voto das pessoas no Brasil crescentemente está vinculado a múltiplos fatores que devem ser analisados e ponderados pelos partidos e as pessoas que postulam cargos políticos nas esferas municipais, estaduais e federal. Ana Carolina adverte, por exemplo, que ninguém é apenas evangélico ou católico. As pessoas tampouco são apenas mãe, mulher, trabalhador/a, líderes comunitários, pessoas vinculadas a outras circunstâncias concretas.
Em relação à diversidade desse campo assim chamado “evangélico” numa sociedade de maioria católica, existem diferenças sociais, de cunho ideológico-político, de renda e escolaridade, de práticas religiosas. Magali do Nascimento Cunha também pondera que se trata de pessoas religiosas, mas também trabalhadoras, desempregadas, mães e pais de família, pessoas solteiras (algumas com filhos, filhas), jovens, idosos, maioria mulheres, maioria negra e de periferia. São muitas as identidades que determinam as escolhas, conclui a pesquisadora, e não só o fator religioso de forma isolada.
Nesse sentido, é forçoso afirmar que esse voto não é uníssono. O que, de fato, chama a atenção é outro fator relevante: o crescente alinhamento de parte desse eleitorado com pautas conservadoras e simbologias que sintetizem ameaças morais.
Não por acaso, os setores da direita e da extrema-direita que alçou o poder maior nos últimos anos batem firme nas pautas morais, nas questões dos diferentes relacionamentos em termos de sexo, na questão pública do aborto, uma calamidade nacional justamente por não garantir os cuidados que milhões de mulheres merecem por parte do Estado, entre outras demandas (tipos de família, relações de gênero, igualdade entre homens e mulheres).
Esse moralismo exacerbado faz pender o voto para candidatos de direita, ainda que não de forma geral e irrestrita, uma vez que nos últimos anos a deterioração das condições de vida das maiorias – a fome em primeiro lugar – vem gerando uma insatisfação social que faz balançar aquele discurso.
Quais são as prioridades na eleição desse ano?
As eleições de 2022 demonstram que existe, sim, uma disputa eleitoral por conquistar votos em vastos segmentos para os quais as questões de afiliação religiosa e aspectos morais da vida pessoal e familiar são prioridade. Não por acaso, temos visto uma verdadeira avalanche de notícias falsas veiculadas por setores conservadores e de extrema direita procurando colar nas candidaturas de esquerda e de corte socialista propostas políticas que ferem suas concepções de moralidade e vida familiar.
Nesses setores, há uma enorme dificuldade em aceitar a legislação brasileira como definida pela Constituição de 1988, que defende um Estado laico e que garante a todas as pessoas, teoricamente, direitos e deveres iguais. Assim, por exemplo, casais homoafetivos têm os mesmos direitos que casais heterossexuais, direitos que abrangem o cuidado das crianças próprias ou adotadas por essas famílias.
Nestas eleições, portanto, há que se ter o cuidado para não generalizar e difundir notícias e conteúdos falsos que violam os dados da realidade complexa em que vivemos. Temos de lutar por fazer prevalecer em nosso país a democracia como valor maior, o respeito às pessoas em todas as circunstâncias, a prevalência da paz e do amor mútuo como conquistas de uma vida social pacífica e construtora de um futuro digno para todo o povo.
O que não se pode aceitar – de maneira alguma – é o ódio como retórica e como atitude política. Este ódio, muitas vezes reafirmado por altas autoridades, tem sido motivo de crimes os mais hediondos nos últimos anos.
Penso, por exemplo, nos mais de 170 assassinatos de lideranças indígenas em 2021, por defenderem seu sagrado direito aos territórios em que vivem, sem esquecer os quase 150 suicídios de jovens entre 15 e 29 anos, motivados em parte pela invasão e destruição das terras indígenas e a consequente expulsão deles (Relatório sobre Violência contra os Povos Indígenas, CIMI, 2021).
Não vamos construir um país livre e democrático, nem vamos superar os diferentes tipos de racismo estrutural sem o debate político franco e aberto. O outro, aquele ou aquela que pensa diferente de mim, não é meu inimigo, mas sim alguém com quem tenho divergências que precisam ser objeto de controvérsia, sim, porém jamais de violência e eliminação física. Eis o que as eleições de 2022 nos desafiam a realizar.
Contra a retórica do ódio, apostemos na ética do diálogo, como escreveu o professor João Cezar de Castro Rocha, da UERJ, no livro Guerra cultural e retórica do ódio (Goiânia, 2021). Pois o ódio nos conduz a um analfabetismo político fatal e infantil, revelando no fundo que a sociedade brasileira ainda precisa caminhar muito para se tornar uma democracia para valer!
* Doutor em Teologia, professor associado de Faculdades EST de São Leopoldo, RS; membro do Grupo de Pesquisa do PPG “Identidade Étnica e Interculturalidade”, pastor emérito da IECLB.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira