Rio Grande do Sul

Quilombos Urbanos

“Temos que preservar as raízes dos nossos bisavós, avós e falar sobre o que eles sofreram”

Bisneto de ex-escravizada, Tarcísio Damasceno é um dos descendentes que compõem o Quilombo da Família Fidélix 

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Atualmente, 32 famílias vivem no Quilombo da Família Fidélix, localizado entre os bairros Azenha e Cidade Baixa, em Porto Alegre - Foto: Clara Aguiar

“É tempo de formar novos quilombos, em qualquer lugar que estejamos, e que venham os dias futuros. A mística quilombola persiste afirmando: ‘a liberdade é uma luta constante’.”
Conceição Evaristo.

O Quilombo da Família Fidélix foi a quarta comunidade quilombola de Porto Alegre a se autorreconhecer. Sua origem remonta à década de 1980, quando diferentes núcleos familiares formados por descendentes de escravizados migraram do município de Santana do Livramento para a Capital. Localizado entre os bairros Azenha e Cidade Baixa, na zona central da cidade, o território se formou em memória de três matriarcas: Felicidade (da Família Fidélix), Basília (dos Maciel) e Belisária (dos Damasceno). Ele está localizado na “região da antiga "Ilhota", reduto de ocupação negra na capital gaúcha, e próximo ao Boteko do Caninha, reduto das rodas de samba e pagode, e do Bar da Clara, espaço onde acontecem atividades culturais e políticas para as questões da comunidade negra.

Embora receba apenas o nome dos “Fidélix”, o Quilombo reafirma sua identidade por meio dos laços de solidariedade, coletivismo e compadrio. Tarcísio Damasceno, 44 anos, trineto de Belisária, é um dos atuais representantes da comunidade. “A gente veio para esse território já tem mais de 25 anos. Viemos de lá para conquistarmos o nosso espaço e formar o nosso quilombo urbano”, conta. A trisavó de Tarcísio passou grande parte de sua vida na fazenda pertencente ao capitão João Alberto Carneiro, situada na região fronteiriça com o Uruguai, onde viveu como uma mulher escravizada.

Em 14 de janeiro de 1881, por meio de um pecúlio, Belisária comprou sua liberdade. Na época, pecúlio era uma quantia em dinheiro acumulado pelos escravizados a partir de doações, heranças e trabalho próprio, na qual usavam para obter a Carta de Alforria - desde que com o consentimento de seus “senhores”. A trajetória de Belisária, resgatada e documentada pela historiadora Jane Rocha de Mattos no artigo “Basília, Felicidade e Belisária: fragmentos da escravidão em Santana do livramento/RS”, é uma das ramificações da raiz ancestral do Quilombo da Família Fidélix. 


A Certidão de Autorreconhecimento do Quilombo da Família Fidélix foi expedida pela Fundação Cultural Palmares no ano de 2003 / Foto: Clara Aguiar

Damasceno carrega com orgulho a documentação da sua família. “Até hoje eu tenho a cópia de uma carta que dizia que ela podia ir em fazendas para colher, para vender e se autossustentar, que ela trabalhava de escrava”, conta Damasceno. 

A liderança segue narrando a trajetória da família, do fim da escravidão, da vinda até à Capital até os dias atuais. Ele cita o caso do seu tio, de 62 anos, que serviu o exército e fez concurso para a Brigada Militar. “Aí já começou outro ciclo de vida, mas nunca perdendo a origem lá de trás”, comenta, aludindo a lembranças contadas pela sua avó. Hoje falecida, ela, quando era criança, em Santana do Livramento, tinha que ir para a beira da sanga lavar roupa e depois engomar para estender, fazer fogo para botar dentro do ferro para esquentar, passar e levar para as fazendas.


Tarcisio Damasceno, trineto de Belisária / Foto: Clara Aguiar

Em busca do reconhecimento 

Pela primeira vez, o questionário ampliado do Censo Demográfico 2022, iniciado no dia 1º de agosto pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), fez a seguinte pergunta: “Você se considera quilombola? Em caso afirmativo, uma segunda questão deve ser respondida pelo indivíduo, identificando a qual comunidade pertence. De acordo com Janete Benck, vice-presidente da Associação Comunitária e Cultural Remanescentes de Quilombo Família Fidélix, a inclusão de um levantamento específico sobre quilombolas poderá resultar em um maior reconhecimento e melhorias para as comunidades. 

Moradora do Quilombo da Família Fidelix há 22 anos, ela recorda casos de perseguição sofridos pelo quilombo e ilustra com um exemplo. “Após o autorreconhecimento aprovado pela Fundação Cultural Palmares, só faltava o reconhecimento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para a titularização do Quilombo da Família Fidélix. Contudo, como estava no período de três meses para alguém recorrer, uma vizinha o fez. Segundo Janete, a justificativa da vizinha - moradora do território, mas não autodeclarada quilombola - foi a de que é mentira quando afirmam que a comunidade é um quilombo. 

“Porque o interesse [dela] é regularizar o território via Departamento Municipal de Habitação (DEMHAB) para poder usufruir das casas depois. Essa é a situação que estamos no momento, de não conseguir regularizar. Por isso eu acho muito corajoso ser quilombola”, denuncia Janete.

Tal conflito se dá, pois, ao serem titulados, os territórios quilombolas não podem ser vendidos e devem ser reservados exclusivamente para as futuras gerações, conforme exigência contida no Relatório Técnico de Identificação e Delimitação Territorial (RTID). Parte do território da família Fidelix é formado por terras do patrimônio do município de Porto Alegre.

O não reconhecimento como quilombola por parte de pessoas que estão no território é um dos conflitos existentes no local. A comunidade fica marcada por famílias que se autodeclaram quilombolas e por famílias que reivindicam somente o usucapião da terra.   

O edital com as informações do RTID do quilombo foi publicado no dia 2 de outubro de 2015, no Diário Oficial da União. O RTID é uma etapa obrigatória do processo de titulação de terras quilombolas. Desenvolvido por uma equipe multidisciplinar do Incra, o documento afirma em um de seus critérios legais que “o título coletivo é gratuito, inalienável (não pode ser vendido), indivisível e por prazo indeterminado”. O processo de autorrecimento do Quilombo da Família Fidelix teve início em 2003. Desde então, os descendentes aguardam o prosseguimento do processo de titulação do território por parte dos órgãos responsáveis. 

Juventude quilombola 

Para Tarcísio, pai de três filhos e padrasto de um enteado, os jovens desempenham papel crucial na manutenção e na continuidade dos processos de territorialidade e etnicidade. Na comunidade, ele promove rodas de conversa com o objetivo de orientar adolescentes sobre a necessidade de salvaguardar os saberes quilombolas.

"Porque daqui uns anos eu vou falecer, a minha esposa vai, mas vai ficar a nossa origem com os nossos filhos. Então eu sempre falo: 'Nunca esqueça do pai, da avó, da bisavó, pois é de lá que vocês saíram, nunca abandone o teu espaço, as tuas raízes'", narra. 

Colocando em prática os ensinamentos de seu pai, Maria Eduarda, de 18 anos, fortalece sua identidade negra e quilombola por meio do Empoderadas, um projeto que visa levar a educação antirracista para estudantes de escola pública. “Faltava um empoderamento na escola, as meninas sempre de cabelo preso, alisado ou encharcado de creme e de água, não se sentindo bem, então ocorria muito caso de racismo, de bullying, falta de amor próprio”, conta Maria sobre as motivações para a criação do projeto. No Instagram, o perfil do Empoderadas já soma mais de 2 mil seguidores. 


Maria Eduarda, 18 anos, filha de Tarcísio Damasceno / Foto: Clara Aguiar

“Todos os meus filhos, graças a Deus, estão caminhando juntos e nunca perderam as origens, principalmente aquela ali”, destaca Tarcísio, apontando para sua filha Maria. Sobre levar adiante a história de seus ancestrais, ele comenta emocionado: “Eu sou muito apegado a isso, em mostrar o que aconteceu lá atrás, em falar sobre a cultura negra. Temos que preservar as raízes dos nossos bisavós, avós e falar sobre o que eles sofreram”. 

Além do trabalho realizado com a juventude local,o quilombo Fidelix conta com uma horta comunitária compartilhada com o Centro Diaconal Evangélico Luterano (CEDEL). Neste espaço as crianças do quilombo participam de atividades no contraturno da escola. 

Nos projetos futuros está a instalação da futura sede da Associação Quilombola, onde se prevê a criação de um telecentro com o objetivo de ofertar oficinas profissionalizantes e projetos culturais para as famílias da comunidade. Também há planos da construção de um posto de saúde para comunidade, que depende de verba para se concretizar. “Todo mundo que vai lá colabora, porque a luta é difícil pra todo mundo, todo mundo quer trabalhar, todo mundo quer construir. A união de todos é que transforma um quilombo”, ressalta Damasceno. 

Quilombo como sinônimo de acolher

Com origens que remontam as matriarcas Felicidade, Basília e Belisária, o quilombo, que atualmente tem em torno de 30 famílias autodeclaradas, acolhe diversas raças e etnias. Apesar dos conflitos em relação ao reconhecimento como comunidade quilombola, e das tentativas de avanço sobre seu território, o Quilombo Fidelix é marcado pelo acolhimento e articulação comunitária.

Quando perguntado sobre a definição de “quilombo”, Tarcísio diz que é “o lugar onde as pessoas que foram ignoradas se reúnem para seguir a sua trajetória e que ao longo do tempo se transformam e agregam outros povos”. Ele acrescenta: “Quilombo não é só preto, no quilombo pode entrar preto, branco, indígena… todos vão ser acolhidos naquele território, não tem discriminação”.  

Para Maria Eduarda, o quilombo é uma sociedade onde todos se ajudam, onde todos de alguma forma já passaram por alguma necessidade. E reforça a fala de seu pai ao dizer que o quilombo é “um espaço de acolhida de todos os povos, de visibilidade, onde todos sabem seus direitos, deveres, e lutam por isso. E se não sabem, começam a aprender”. 

Na percepção de Janete, de origem italiana, quilombo é um lugar onde pessoas que tem a mesmas ideias, ideologias e maneira de pensar, e se integram. “Pessoas que têm a mesma cultura, ritos religiosos. Uma afinidade que nos torna familiares mesmo não sendo do mesmo sangue. Temos uma afinidade entre todos que vivem ali, somos uma grande família. Fidelix são famílias que vieram de algum lugar e quando o Fidelix morava ali, ele foi trazendo essas famílias, que eram todos da mesma cidade, com as mesmas histórias”, destaca.

Para Janete, ser quilombola é ser resistência marcada por uma história de perseguição, uma perseguição moral, uma perseguição velada. “Há o preconceito, o racismo. Contudo o quilombola transmite coragem, força e resistência, porque por mais que as coisas venham contra nós, estamos sempre unidos, nos apoiando. Onde tem bastante dificuldade é onde o quilombola se apoia, se reúne para lutar”, conclui. 


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Edição: Marcelo Ferreira