Em 2018, o Quilombo dos Alpes, localizado no bairro Cascata, em Porto Alegre, tornou-se o primeiro quilombo do Brasil a formalizar uma parceria com a Caixa Econômica Federal para a construção autogestionada de 50 residências do programa Minha Casa, Minha Vida Entidades. As obras foram iniciadas, mas interrompidas durante a pandemia. Quando estavam prestes a serem reiniciadas, nove casas parcialmente construídas foram invadidas no último domingo (28) por famílias de fora da comunidade, em uma operação que pode ter sido comandada por traficantes de drogas ou controlada por uma organização que se aproxima de uma milícia.
Após a intervenção da Brigada Militar, a invasão foi dispersada, mas a comunidade segue temendo novas ações, o que motivou o estabelecimento de uma vigília permanente junto às casas. A reportagem do Sul21 esteve no Morro dos Alpes nesta terça-feira (30) para conhecer o local onde as casas estão sendo construídas, com vista privilegiada para toda a cidade de Porto Alegre, e conversar com os moradores, que, por medo de represálias, solicitaram que não fossem identificados.
“A situação lá é muito muito grave”, diz o advogado Onir Araújo, assessor jurídico da comunidade.
Ele explica que ameaças e pressões sobre o Quilombo dos Alpes vêm de anos. Parte do território quilombola, cuja área total é de 58 hectares, foi invadida e a ocupação atualmente é comandada, segundo o advogado, por um sargento da Brigada Militar. Além disso, a área também é visada por traficantes.
Onir conta que a pressão sobre o quilombo vem aumentando desde o final de julho e início de agosto, até que, na semana passada, lideranças da comunidade foram ameaçadas dentro do do prédio da Associação Quilombo dos Alpes, que fica próximo ao local onde estão sendo construídas as novas casas. A situação foi denunciada ao Ministério Público Federal, mas as ameaças continuaram.
“No sábado (27), quando estava tendo uma atividade combinada ali no posto de saúde dos Alpes, apareceram uns caras e marcaram nove casas, justamente aquelas que estavam mais avançadas, já com laje, etc. Marcaram com tinta”, diz o advogado. A reportagem verificou que as casas em construção, mas ainda longe de estarem concluídas, estavam marcadas com um X, o que identificava quais deveriam ser ocupadas.
O advogado conta que a comunidade esperava que uma invasão ocorresse na madrugada de domingo, o que não aconteceu. “Deu aquele temporal e a coisa de certa forma não ocorreu na madrugada. A gente informando a Brigada e pedindo para que eles fizessem pelo menos uma ronda lá, porque estava tensa a coisa. Aí no domingo, às 10h da manhã, eles vieram, invadiram com um número razoável de pessoas e com uma contenção de um carro com quatro caras fortemente armados, alguns com balaclava”, conta.
Após ser notificado da invasão, o 19º Batalhão da Brigada Militar compareceu ao local. “Ainda bem que eles foram rápidos, porque não tinha como a comunidade desempenhar qualquer esboço de enfrentar os caras, que aí seria risco de vida total. A BM foi lá e repeliu, identificou as pessoas, que são pessoas humildes, com criança, mas por trás tinha esses caras”, diz Onir.
O advogado conta ainda que os homens armados não foram identificados, apenas que estavam em um carro de passeio de cor prata, que não teve a placa identificada. Segundo ele, o mesmo carro já foi visto circulando em diversos momentos pela região, inclusive após o domingo. Em geral, é visto na região da ocupação que seria comandada pelo sargento da BM. Contudo, o advogado diz que também há suspeitas de que esses homens poderiam estar ligados a traficantes. “Podem ter ligação com facções que estão disputando, que estão nessa guerra em Porto Alegre, porque o objetivo ali, pela pressão que a liderança sofreu, é dominar. Porque é uma área estratégica para instalar um ponto de tráfico. Ela não está aceitando isso, se recusa a ficar refém dos caras”, diz.
Lideranças da comunidade pontuam que o fato da área ser aberta e de difícil acesso faz com que a tensão e o temor de receberem novas ameaças seja constante. Além disso, lembram que duas lideranças do quilombo já foram assassinadas em 2008.
O procurador Pedro Nicolau Moura Sacco, do Ministério Público Federal, foi ao local nesta terça-feira para participar de uma reunião com a comunidade e coletar depoimentos de moradores. “É uma maneira de tentar prevenir que volte a acontecer e também de instruir uma investigação, formalizar o ocorrido para tentar prevenir novas tentativas de esbulho possessório, de invasão”, diz.
Sacco afirma que os líderes da invasão ainda não foram identificados, mas confirma que as suspeitas são de relação com traficantes. “A comunidade aqui do Quilombo dos Alpes está no meio de uma área periférica da cidade, que normalmente é controlada pelo tráfico de entorpecentes. Então, digamos assim, fazer um movimento desses de organizar, vir aqui previamente marcar casas, ameaçar as lideranças, depois vir novamente para ocupar. Isso aí não é um movimento espontâneo, normalmente tem uma organização por trás do poder que existe na área, que é o narcotráfico”, afirma.
O procurador da República Pedro Sacco também avalia que a retomada das obras é importante para garantir a proteção da comunidade, mas acredita que as ameaças devem continuar. Ele diz que o MPF deve encaminhar um pedido de abertura de investigação à Polícia Federal, que é responsável por investigar crimes em áreas quilombolas, mas avalia que será necessária a manutenção de rondas ostensivas da Brigada Militar no local. Uma hipótese aventada na reunião de terça-feira foi a possibilidade da Força Nacional de Segurança ser acionada para reforçar o policiamento da área.
A comunidade acredita que tanto a vigília dos moradores, quanto a ronda policial, é necessária ao menos até a madrugada de domingo (4) para a segunda-feira (5), quando está prevista a retomada das obras. “A minha avaliação é que a reunião foi positiva. A gente vai monitorar o compromisso firmado para abertura do inquérito”, diz Onir Araújo.
Retomada das obras e proteção
O Quilombo dos Alpes, segundo a associação de moradores, é composto por 150 famílias que descendem ou tem vínculos com Edwirges Francisca Garcia, considerada a moradora mais antiga do bairro e em torno de quem o quilombo se organizou há mais de 100 anos.
O projeto para a construção das 50 casas foi elaborado pela associação Quilombo dos Alpes, que contou com o apoio técnico de professores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e de um coletivo de engenheiros. A associação também ficou responsável inicialmente pela contratação dos trabalhadores, a maioria moradores da própria comunidade, com os recursos garantidos pela Caixa. O repasse de recursos, no entanto, foi interrompido durante a pandemia. Agora, as obras serão retomadas com a contratação de uma cooperativa de São Leopoldo.
Cláudia Luiza Pires, professora do Departamento de Geografia da UFRGS e integrante da equipe que prestou apoio técnico ao projeto Minha Casa, Minha Vida, explica que a comunidade teve que reorganizar o projeto e contratar a cooperativa também em razão do aumento de custos dos materiais, o que inviabilizaria a construção totalmente autogestionada. A garantia de retomada das obras, por ironia, ocorreu na segunda-feira (29), um dia após a invasão.
“A Caixa Econômica, que é o órgão operador que viabiliza todos os recursos, aceitou a viabilidade técnica da participação da cooperativa e aí nós temos um cronograma de 10 meses para finalizar as obras. Nesta semana, a gente já teve a liberação dos recursos, que justamente aconteceu frente a todo esse movimento, frente à invasão que ocorreu. Nós tivemos que pressionar então a Caixa para que liberasse os recursos para que as família não ficassem refém dessa situação de uma invasão no território por conta do não repasse dos recursos para conclusão das casas”, diz a professora.
Durante a visita ao local, a reportagem identificou resíduos animais e alguns itens deixados nas casas, como colchonetes. No entanto, as estruturas das casas não aparentam ter sido comprometidas pela paralisação. Boa parte das casas estão, no momento, com a estrutura de tijolos estabelecida para residências de três peças e um banheiro, com uma área externa adjacente. Excetuando uma, que já foi pintada e teve janelas e portas colocadas, nenhuma delas tem qualquer trabalho no piso. Outras ainda estão em estágio bastante inicial ou sequer tiveram as obras iniciadas.
Nesta quarta-feira (31), trabalhadores da cooperativa compareceram ao local para iniciar a limpeza do canteiro de obras e organizar o terreno. Para a próxima semana, está prevista a retomada das obras de fato, com o serviço de terraplanagem.
Uma das casas está em estágio mais avançado de construção | Foto: Luiza Castro/Sul21
A comunidade destaca, contudo, que os recursos garantidos pela Caixa não foram ajustados pela inflação, o que deve prejudicar a finalização do projeto. Neste sentido, cobram do poder público municipal e estadual obras complementares de saneamento básico e iluminação pública.
“O recurso permaneceu o mesmo e nós sofremos um impacto muito grande de desvalorização financeira. Tudo subiu, então nós necessitamos que o DMAE contribua com o projeto de água e saneamento na comunidade. E também agilidade da CEEE Equatorial em implementar a iluminação pública. Isso também é um grande problema na comunidade, a gente não tem iluminação lá em cima. A gente tem os postes de luz, mas existe a necessidade que seja emergencialmente atendida a questão da iluminação pública. Eles estão cientes de toda essa situação, mas a gente reforça que nesse momento isso se torne uma prioridade, haja visto todo esse enfrentamento e que é uma comunidade que já sofreu uma violência muito grande”, diz a professora Cláudia Pires.
Edição: Sul 21