Os tempos são tempos de cuidado, solidariedade, compromisso com a vida
Cheguei em Santa Emília, casa da família, perto do meio dia de sábado, 23 de julho, véspera do fim de semana do Dia do Colono, celebrado em 25 de julho, com festa para tudo que é lado em Venâncio Aires e Vales do Rio Pardo e Taquari, Rio Grande do Sul. Telefonei, como sempre, para a cunhada e professora Rejane na sexta de noite, avisando da chegada e perguntando se tinha almoço na sua casa e do mano Bruno, já que o mano Marino, o mais novo dos nove da família, está de manhã na Feira do Produtor na cidade. Almoçamos sempre todos juntos, antes uma boa caipirinha e alguma ceva no final, em muito boa companhia.
Rejane informou que eles não estariam em casa neste sábado, 23 de julho. Cheguei, como avisado, próximo do meio dia na casa da família. Estou sozinho. Procuro algo para comer. Tudo vazio: geladeira, fogão com panelas sem nada dentro, nenhuma sobra de comida do dia anterior. Mais tarde, o mano Marino, que não sabia que eu viria, informou que as sobras da sexta foram para o Max, o cachorro da casa, Max que me acolhe muito bem toda vez que apareço. E ele, Marino, a mana Elma e o cunhado Ione, que participam da Feira, resolveram, na ausência da Rejane e Bruno, almoçar num restaurante na cidade.
Achei uma linguiça congelada, cozinhei umas batatas, fiz uns preparados de verduras e legumes, tudo produtos da propriedade, tomei uns tragos para ajudar. E almocei tri bem, mesmo sozinho. Mas ficou todo mundo preocupado comigo. Imagina o Selvino tendo que se virar! Sendo que moro sólito em Porto Alegre, onde faço minhas comidas quase todos os dias.
Mas elas e eles, os manos e a família, cuidam de mim, sempre. Nunca me deixam sem nada quando retorno a Porto Alegre. Rejane e Bruno me presenteiam com parte das sobras do almoço de sábado: maionese, pedaços de carne, aipim, arroz, alguma verdura pronta, sucos e licores de todos os tipos e sabores e morangos orgânicos. Elma, Marino, com pleno apoio do sobrinho Gabriel e da sua Júlia, providenciam conservas de cenoura, rabanete, beterraba, cebola, mais as frutas e verduras e outros alimentos que eventualmente sobraram da Feira, e que produzem há décadas, saudáveis, frescas, tri gostosas, mais pedaços de linguiça, morcilha, rapaduras e outros preparados gostosos de uma família da agricultura familiar e das boas comidas da cultura alimentar alemã. A mana Ivone, religiosa, e boa cozinheira, quando está por casa no mesmo fim de semana que eu, nunca esquece de separar algo para eu levar e comer durante a semana.
Iniciativa e presente mais recente da família, no dia do papai: presentearam-me um pisante novo e reluzente, porque eu vivia usando o tênis velho que ganhei na Vila Santo Operário no último Grito das-s Excluídas-os, porque o que eu estava usando estourou de velho no meio da caminhada. E ai de mim se eu não usar o presente dado! (Quem quiser conhecer ou relembrar esta história, procurar no Google meu artigo ´PISANTE NOVO´, de 20.09.2019).
Não recuso nada, por óbvio. Como quase todo mundo sabe, sou um pão-duro e sovina total desde sempre, herança da família de 9 filhos, eu o mais velho, mais os tempos de Seminário em Taquari, RS, de frade na Vila Franciscana e na vila São Pedro na Lomba do Pinheiro. Vou comendo o que me doam generosamente aos poucos, durante as semanas seguintes, um pedaço de cada coisa a cada dia, para tudo durar o maior tempo possível.
Da mesma forma, outras elas e outros eles, lutadoras-es, sonhadoras-es, militantes das boas causas cuidam do povo das periferias e comunidades pobres, em tempos de pobreza, miséria, desemprego e, principalmente, muita fome. São os Comitês Populares contra a Fome, as Cozinhas Solidárias e Comunitárias, nas vilas da Lomba do Pinheiro, nas vilas da Grande Cruzeiro, e em diferentes comunidades de muitas cidades, mais as ações do CONSEA/RS, de movimentos sociais, do movimento sindical, de pastorais de diferentes igrejas, na ausência quase total ou fim de políticas públicas de soberania, segurança alimentar e nutricional, procuram prover o que Estado e governos não providenciam ou garantem.
Elas e eles, Marias e Josés da minha família e das comunidades, fraternas-os e solidárias-os, cuidam, não só de mim, mas cuidam do povo brasileiro. Cuidam do Brasil. E não dão só o pão. Dão também sabedoria, saciam a beleza, com cuidado, solidariedade, formação na ação, com esperançar.
Os tempos são tempos de cuidado, solidariedade, compromisso com a vida, em meio ao ódio e intolerância reinantes, da violência e assassinatos quase em série.
No meu caso, o cuidado de papai Léo, um alemão meio turrão como eu, era me desejar boa viagem em alemão quando eu partia para o mundo, e dizer para voltar logo que possível. E ficava me acompanhando com o olhar. Mamãe Lúcia ficava toda triste quando eu ia embora, coisa que faço desde os 11 anos de idade. E garantia o ´meu´ quarto, como ela certa vez disse para alguém: ´Das ist dem Selvino sein Zimmer – este é o quarto do Selvino´. Dito e feito. Palavra de mamãe é sagrada!
Cuidado com as outras e os outros, cuidado com quem sofre. Cuidado com comida no prato, a Casa Comum, a ecologia integral, tudo o que precisamos, mais que nunca. Viva a vida!
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko