Afinal, que sociedade queremos legar às gerações futuras?
Resgatar nosso horizonte de sonhos, eis um desafio para quem vive hoje no Brasil e está minimamente conectado à realidade. Muita gente não está, é verdade. As redes sociais têm desempenhado esse triste papel. Encapsulam sujeitos em espaços virtuais, nos quais apenas suas próprias convicções são reforçadas. E os alienam, de tal modo que não é incomum conversarmos com pessoas que não estão sequer acompanhando a cena política.
Essa é uma constatação, não serve criticar quem desistiu de viver e agir politicamente. São muitos os fatores - inclusive o sofrimento diante da violência institucional cotidiana - que interferem em escolhas como essa.
O que precisamos é promover o encontro, de pessoas e de ideias.
Retomar o diálogo.
Para que isso faça sentido, porém, precisamos ter em mente não apenas o que não é mais suportável, mas também o que queremos. É preciso (re)construir perspectivas concretas de mudanças, que possam incidir sobre a vida das pessoas que hoje estão com fome, com frio, sem trabalho.
A campanha “Tributar os Super-ricos” é um exemplo disso. Há ali um conjunto de propostas, que nos convidam a repensar a função do Estado. Esse Estado social nunca realizado ainda tem alguma função, caso se comprometa a arrecadar e investir de modo a promover a redução das desigualdades sociais. Algo que não experimentamos até agora. Utopia, dizem alguns. Afinal, nenhum dos governos democráticos que se sucederam a partir de 1988 ousaram alterar o sistema perverso de tributação que mantém uma lógica quase feudal de repartição de riqueza e proteção à propriedade das mesmas famílias milionárias - que são poucas - no país. Ainda assim, uma utopia possível. Algo que outros países já fazem. Um ponto de partida, apenas. Mas de extrema importância.
E não é a única proposta que precisamos recolocar no campo do discurso político, a fim de que possamos avançar. Sonhar com o retorno ao passado, é algo impossível, simplesmente porque esse passado democrático não existiu. A Constituição de 1988 nunca foi realizada no Brasil. Há, portanto, muito a exigir de uma sociedade que se pretende fraterna, solidária, democrática e justa.
A redução da jornada é outra utopia concreta, possível e urgente. Países como Portugal e Espanha já experimentam a chamada semana de quatro dias. Reduzir jornada não implica apenas reconhecer que o dia de trabalho não pode ter mais do que 4h ou 6h e proibir a extensão do tempo de trabalho ou a realização de horas extras. É também reconhecer a inconstitucionalidade do artigo 62 da CLT ou a necessidade de exigência de mecanismos que impeçam o acesso aos ambientes virtuais de trabalho fora do tempo que lhe deve ser dedicado. Impedir que períodos de descanso, como intervalo para repouso e alimentação sejam “indenizados”, que dias de férias sejam “vendidos”.
Em nosso caso, a redução da jornada de 8h, a eliminação da possibilidade de horas extras ou de realização de jornadas de 12h é a única forma de aumentar, de modo imediato, o número de empregos disponíveis. Essa, porém, talvez seja a menor de suas vantagens. Diminuir a jornada significa reduzir potencialmente o número de acidentes e doenças relacionadas ao trabalho. Especialmente aquelas de ordem psicossocial, que têm sido um verdadeiro flagelo para a classe trabalhadora, em especial para as mulheres. Significa, também, aumentar o tempo de convívio familiar, de possibilidade para a realização de estudos e esportes. Viabilizar a vivência política, a preocupação e o engajamento com as questões sociais que hoje tornam a vida tão difícil. Quem trabalha 12h sem intervalo, especialmente se computarmos aí o período de deslocamento até o(s) local(is) de trabalho, não tem tempo para mais nada. Não tem condições físicas, emocionais e mentais de pensar outras formas de convívio social que não nos conduzam à ausência de futuro. O mundo está sendo destruído. Não apenas a natureza, também os laços sociais. Mas a maioria não tem tempo para perceber essa corrida para o abismo.
A questão trabalhista revela-se central, ao lado de outras igualmente urgentes como a ambiental ou a penal, para a reconstrução do Estado, a fim de que exista efetivamente um convívio que possamos denominar democrático.
Chamo de utopia algo tão possível e até mesmo pequeno, em termos de transformação social, como a redução efetiva da jornada, porque sabemos bem o que tem ocorrido nas relações de trabalho no Brasil. É difícil hoje encontrar alguém que trabalhe “apenas” 8h. A jornada de 12 horas, flagrantemente contrária à literalidade da Constituição, foi normalizada, assim como a necessidade de disposição para o trabalho, 24h por dia, 7 dias por semana, especialmente de quem realiza atividade remota ou trabalha sem a proteção social mínima. Tudo caminha para que haja um aprofundamento cada vez maior do comprometimento do tempo de vida com o trabalho obrigatório. Até nossos sonhos são capturados. Como é possível, diante das alterações promovidas pela “reforma” trabalhista e de decisões que normalizam jornadas abusivas, realizar o debate sobre a redução do tempo de trabalho?
Pois lhes digo que é possível e urgente. Estou convencida de que vivemos hoje, mais do que antes, a necessidade de enfrentamento de nossos traumas sociais. Cada vez mais, conseguimos debater a profunda incidência da racionalidade escravista sobre as relações de trabalho, mas a verdade é que nunca fizemos um acerto de contas coletivo acerca do horror da barbárie implicada na compra e venda e tortura e morte de seres humanos. Gritamos tortura nunca mais, mas coletivamente ainda não houve o reconhecimento do absurdo da institucionalização da interjeição do debate, da tortura, da perseguição e da morte de quem não concordava com o regime militar. Ao contrário, as pessoas que com ele contribuíram, que admiram ou comungam práticas autoritárias, seguiram na cena pública. E hoje definem o rumo da nação.
O terror da pandemia, que provocou uma espécie de suspensão do tempo no mundo, tornando ainda mais pungente o medo da morte, somou-se, por aqui, à gestão pública que propositadamente nos desamparou. Tudo isso constitui traumas que nos convidam a aceitar o mínimo. Aceitar um discurso que pelo menos não nos violente, não diga abertamente que nossa morte não importa. Porque estamos traumatizadas, é difícil pensar em uma realidade diversa. Então, mobilizar as energias para que a violência não prossiga, para que de algum modo seja possível afastar quem hoje insiste em nos agredir, de forma concreta ou simbólica, torna-se o horizonte. Mas é preciso ir além. Nosso problema não se resume a garantir a observância da institucionalidade posta. É muito mais profundo.
O desafio é reconhecer a existência de uma subjetividade colonial e escravista, que naturaliza a miséria, a promulgação de decisões judiciais que destroem direitos fundamentais, a existência de estruturas sociais feitas para reproduzir desigualdades. Todas as instâncias que hoje contribuem para que haja trabalho análogo à escravidão, elevado número de pessoas desempregadas ou trabalhando em condições precárias, de pessoas que buscam seus direitos e obtêm como resposta um compromisso indelével do Estado com o capital, são formadas por gente. Gente que não compactua necessariamente com o discurso do ódio, do golpe, do fanatismo religioso. Mas que atua, de forma consciente ou não, para recalcar e aprofundar o abismo entre homens e mulheres, pessoas brancas e não brancas, pobres e ricos, heteros e “desviantes”. Replicam piadas, descumprem direitos, promovem decisões, fazem escolhas que reforçam esse estado de exceção permanente.
Propostas que desacomodem e façam perceber o quão distantes estamos de uma realidade de inclusão e solidariedade precisam ser colocadas em pauta e discutidas com seriedade. Afinal, que sociedade queremos legar às gerações futuras? Essa que temos, não existirá mais se seguirmos os caminhos já trilhados.
* Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko