Rio Grande do Sul

VIDA DE LUTA

Aos 81 anos, após perder a companheira de vida, Olívio conta por que aceitou disputar o Senado

Um dos principais nomes do PT no RS, Olívio Dutra lista razões que passam pelo histórico de militância e vida privada

Sul 21 |
Olívio Dutra fala sobre a sua candidatura ao Senado - Luiza Castro/Sul21

Olívio Dutra (PT) já havia comunicado a intenção de não participar mais de campanhas eleitorais. Na verdade, já havia participado da disputa pelo Senado em 2014 em uma decisão de última hora, atendendo à "pressão do partido". Agora, mais uma vez a pedido do PT, Olívio aceitou voltar a disputar uma vaga no Senado, mas numa proposta diferente, com a intenção de dividir o eventual mandato com suplentes.

O Sul21 conversou com o ex-prefeito de Porto Alegre e ex-governador do Rio Grande do Sul sobre o que o levou a participar novamente da disputa pelo Senado no dia 3 agosto. Olívio recebeu a reportagem em seu apartamento na zona norte da Capital. Em cerca de uma hora de conversa, ele explica que vinha nos últimos anos instigando o partido a formar novas lideranças e que não tinha a intenção de voltar a disputar eleições. Contudo, pondera que, devido ao momento que o País vive e por considerar que não é possível deixar o cenário eleitoral de 2018 se repetir, aceitou mais uma candidatura.

"Em todos os momentos, eu fui sempre avaliando, reavaliando, contra argumentando, indicando outros nomes, porque eu sempre achei que nós temos que instigar quadros novos para irem assumindo responsabilidade nas instâncias partidárias e nas ocasiões de campanha, então sempre tenho isso na cabeça e continuo insistindo nisso. Mas o quadro que está colocado para nós, ou se colocou, me fez refletir e assumir, mesmo com os meus 81 anos já completos, essa tarefa", diz.

Ao longo da conversa, ele também explica como a proposta de mandato coletivo está relacionada com as próprias origens do Partido do Trabalhadores e como deve ser implementada, caso seja eleito, mas ressalvando que não há uma fórmula pronta a ser seguida.

"Eu não tenho formulazinha pronta, acabada, uma receitinha já aqui no bolso ou na manga do colete. Não, é a proposta e evidente que a gente sabe que tem propostas parecidas, não só aqui no Brasil, mas em outros países. Nós não queremos imitar, nem transplantar, mas achamos que é muito importante para nós, que estamos com a democracia ameaçada, a democracia sempre debilitada, por conta de o povo sempre estar longe dos espaços onde se decidem a formulação das leis, a sua execução e a sua fiscalização. Nesse momento, é muito importante defender a democracia, não só a formal, a que já existe, mas não deixar que ela retroceda conforme querem os atuais governantes, principalmente o senhor esse que é o presidente da República", afirma.

Olívio também fala sobre a derrota de 2014, sobre como está enxergando a disputa deste ano, seus principais adversários, suas principais propostas, entre outras questões. A seguir, confira a íntegra da entrevista:


Olívio Dutra recebeu a reportagem do Sul21 em seu apartamento, na zona norte de Porto Alegre / Luiza Castro/Sul21

Sul21 – A última campanha que o senhor participou foi em 2014 e o anúncio de sua nova candidatura pegou muita gente surpresa. O senhor ainda tinha ideia de participar de outra eleição ou foi uma circunstância especial que lhe levou a isso?

Olívio Dutra: Eu não tinha essa ideia, né? Já tinha transmitido, inclusive, aos companheiros de partido e a todas as instâncias que estaria militando, mas não necessariamente postulando mandatos legislativos e executivos. Mas, evidente, é um quadro político que ninguém pode ficar deixando as coisas acontecerem assim. Para quem já teve uma uma experiência ou participa da luta sempre, é o meu caso, junto com tantos outros companheiro e companheiras, é uma preocupação grande. Uma possibilidade de o País, por falta de um bom debate, de esclarecimento, de instigação à militância, deixar que se repita o quadro que nós estamos sofrendo com esse governo. Isso pesou bastante.

Evidentemente que também a conjuntura política regional, a candidatura do Lula e do Edegar Pretto aqui, então essas coisas foram entrelaçando e eu fui sendo pressionado, fui sendo instigado, fui sendo convidado. Em todos os momentos, eu fui sempre avaliando, reavaliando, contra-argumentando, indicando outros nomes, porque eu sempre achei que nós temos que instigar quadros novos para irem assumindo responsabilidade nas instâncias partidárias e nas ocasiões de campanha, então sempre tenho isso na cabeça e continuo insistindo nisso. Mas o quadro que está colocado para nós, ou se colocou, me fez refletir e assumir, mesmo com os meus 81 anos já completos, essa tarefa. Portanto, assumo com responsabilidade, com consciência, não estou ali para preencher um espaço. Não, é porque tenho responsabilidade, fui um dos fundadores do partido, sou um militante de esquerda, do socialismo democrático e acho que não podemos vacilar dentro de um quadro que seria um desastre maior do o que o que já aconteceu deixar se repetir esse governo.

Sul21 – E como foi o convite que o senhor aceitou?

Olívio Dutra: Isso não tem momento especial, isso vem de longe, essa pressão. Eu não me sinto incomodado, mas eu insistia para que o pessoal fosse formando outros quadros, instigando outros quadros. Bueno, evidente que também teve um episódio na minha vida que me deixou até hoje ainda abalado, que foi o falecimento da minha mulher, da Judite. Por outro lado, também antes eu estava muito atento a ajudar a cuidar dela, eu e os meus filhos, porque ela estava sempre precisando de atendimento médico hospitalar. Enfim, não tinha naquela situação de vivência e relação com a minha companheira condições de me dedicar a outra coisa senão de ajudar a cuidá-la para que ela pudesse superar toda aquela dificuldade. Ela veio a falecer [Judite Dutra faleceu em maio de 2022] e uma coisa que ela sempre deu exemplos é de que a gente não pode esmorecer com as coisas que nos acontecem na vida, pessoal, familiar, porque há sempre situações que podem e devem ser superadas com a boa luta e com o ideário que nós sempre defendemos.

Então, essa também foi uma mudança na minha vida que me fez então assumir com a paixão, a consciência e a paciência de vida, enfrentar com as nossas ideias, com a nossas visão de mundo, de política, no papel do estado e do controle público sobre o estado nas três dimensões, na instigação à militância, à consciência política, ao protagonismo das pessoas. Tudo isso pesou e, bom, estou aqui.

Eu acho que temos boas candidaturas, o Lula para presidente da República, o Edegar aqui para o governo do Estado, pena que não deu para fazer a composição completa, equilibradinha, que todos nós nos envolvemos. Eu não sou membro da direção partidária, nem municipal, nem estadual, nem nacional, mas sempre militei e nunca deixei de fazer política só porque não tinha cargo. Para mim, política não é estar sempre disputando um cargo, um mandato, um emprego público, uma assessoria. Não, sempre assumi minhas responsabilidades como militante social, vindo do movimento sindical e também da construção do partido há 40 anos. Isso pesou bastante.

Sul21 – Nesse sentido, o senhor foi forjado como liderança partidária no momento de redemocratização do país, no momento em que o Brasil saía daquele período terrível da ditadura militar. Esperava-se que o Brasil não fosse passar por aquilo de novo, por essas ameaças de golpe, dos militares tentando tutelar a democracia de alguma forma, mas paira no ar de novo essa presença de militares tentando influir na democracia. Como é para o senhor, depois de tanto tempo na política, ver de novo esse momento que o Brasil vive com a possibilidade de recrudescimento da democracia, quem sabe até de um novo golpe? O senhor achava que poderia acontecer de novo?

Olívio Dutra: Olha, infelizmente não são novidades na história no Brasil esses momentos em que setores recorrem às Forças Armadas para bloquear uma presença mais ativa da sociedade brasileira, particularmente dos trabalhadores, do povo que na história do País sempre esteve ausente do palco das decisões, do povo que não tem vez, nem voz. Toda vez que essa base da sociedade vai se movimentando mais, se organizando e chega ao ponto de pressionar os governantes, os setores que apoiam essas políticas de cima para baixo tratam de impedir que a força do povo vá além do que já foi. Então, não são novidade na história do País os golpes, de um jeito ou de outro, e as forças armadas servindo a isso. Mas nem sempre. Teve setores das forças armadas que evitaram golpes. O [general Henrique Teixeira] Lott, eu me lembro, era um general, até foi candidato à presidência da República, impediu um golpe contra o Juscelino [Kubitschek]. Tem figuras do Exército que merecem respeito e, aliás, deveriam ser mais celebrados pelos democratas.

Sul21 – O senhor acha que existem democratas nas forças armadas hoje?

Olívio Dutra: Evidente que existem, não tenho dúvida que existem nas três forças, Marinha, Aeronáutica e Exército, figuras, dos mais antigos, na reserva ou ainda na ativa, que não pensam como esse cidadão aí que está na presidência da República. Até porque ele nunca foi um bom soldado.

Sul21 – Mas por que a gente não ouve essas lideranças e só ouve os que estão alinhados ao presidente?

Olívio Dutra: Não é que não se ouça, evidente que essas lideranças são comedidas, elas não buscam ascensão e poder pessoal, mas eu tenho certeza que existem. Eu prestei o serviço militar, fui soldado da metade de 59 até 60, nove meses, no regimento Dragões do Rio Grande, em São Luiz Gonzaga. O comando era de um senhor, coronel do exército Moacir Avelar Acquistapace, que depois viria a ser secretário de Segurança do [Leonel] Brizola. Depois de sair do Exército, eu me interessei em ver se algum dos oficiais daquela época estava envolvido com alguma coisa do golpe, ou que tivesse sido nomeado para cá ou para lá a serviço do golpe, não vi nenhum daqueles oficiais, se bem que eram ali majores, coronéis, capitães, tenentes, mas não vi nenhuma daqueles figuras, daquele tempo e daquela unidade, em alguma posição decorrente dos golpistas. Por isso, eu não acho dá para emparelhar as forças armadas. Agora, é preciso que as forças armadas estejam sob controle civil. As forças não são outro poder, elas fazem parte do Poder Executivo e tem que estar sob controle civil. Então, a sociedade brasileira, o estado de direito democrático, tem que estar sob controle da sociedade civil. É isso o que eu defendo, uma democracia social, não é democracia liberal ou neoliberal, eu defendo o estado democrático de direito e um estado de bem-estar social, então isso significa a democracia sempre sendo aperfeiçoada e cada vez mais a cidadania sendo estimulada e participando, não só dos momentos eleitorais, mas elegendo conscientemente e exercendo pressão sobre os três poderes legítima e democraticamente.

Eu acredito nisso, quando fomos um governo no município, no Estado, eu estive lá na constituinte, a gente não só pregou isso, como procurou a colocar em prática que o estado fosse permeado pela cidadania. Construir a proposta de orçamento, que evidentemente se torna lei depois de ir pros legislativos, mas a proposta tem que ser fecundada pela participação cidadã. O estado democrático de direito tem que estar sob controle público e não sob controle pessoal, privado, personalisticamente controlado por alguém ou por um grupo. Então, o estado democrático de direito para funcionar bem e melhor, não para alguns ou para poucos, tem que estar sobre o controle público efetivo. Evidente que tem as instituições que se encarregam de fiscalizar as ações do Executivo, principalmente, e também dos outros poderes, os tribunais de contas, o ministério público, os legislativos municipais, estaduais e federal, mas a democracia tem que ser vivida, não só na formalidade da lei e da Constituição, mas no dia a dia das pessoas. Como é que nós podemos achar que a democracia brasileira pode ficar nas mãos de meia dúzia? Uma situação de enorme concentração de renda, de desigualdades e injustiça social gritantes, não só do ponto de vista econômico e social de região para região, mas do ponto de vista da dignidade do ser humano. Então, eu não satanizo as forças armadas de forma parelha, se bem que, na história do Brasil, temos episódios muito tristes em que as forças armadas agiram com enorme violência contra a mobilizações populares, seja lá em Juazeiro ou seja aqui no Contestado. A própria guerra do Paraguai foi uma desastre no meu entendimento, do ponto de vista de construção de uma sociedade de justiça e igualdade.


Olívio diz que não tem “formulazinha pronta” sobre como irá funcionar a proposta de mandato coletivo / Luiza Castro/Sul21

Sul21 – Pegando o gancho na questão do personalismo, o senhor faz um gesto na questão do mandato coletivo de abrir mão, de certa forma, de poder ao propor dividir o mandato de senador. Como surgiu a ideia do mandato coletivo? Foi o senhor que propôs?

Olívio Dutra: Ela vem de longe dentro dos movimentos sociais, populares. De uma forma ou de outra, o povo sempre achou que não podem ser assim as coisas, alguém diz e o povo obedece. Dentro dos movimentos sociais dos quais eu participei, popular e sindical, sempre havia essa inquietação. Tanto que, quando nós fomos para a Assembleia Constituinte, já levamos a ideia de que tínhamos que abrir espaço para o povo ser sujeito da política, não só objeto dela. E já lá defendemos a questão de conselhos de transporte, conselhos urbanos, conselhos de educação e tanto mais. Se já existissem, reforçar, qualificar, torná-los plurais, representativos da diversidade. Isso vem de longe, tanto que a gente, na Prefeitura e no governo do Estado, buscamos a experiência do orçamento participativo.

Sul21 – O senhor diria que a ideia do mandato coletivo é uma herança do orçamento participativo?

Olívio Dutra: O orçamento participativo era uma ideia de que a construção da proposta do orçamento, receita e despesa pública, tinha que ser uma construção que já fosse fecundada na sua elaboração pela participação cidadã viva, presencial, e depois ser levada para os legislativos e lá a cidadania poder também exercer pressão, na hora da votação da proposta, para que ela tivesse o mais próximo possível daquilo que o povo tinha discutido antes, junto com o Executivo. Não é uma forma de transferir responsabilidades, mas de abrir possibilidades do povo ter acesso a informações que antes eram restritas a esse grupo, a uma tecnoburocracia ou aos mais poderosos, aos mais influentes, então vem de longe essa ideia.

Ora, nós inclusive chegamos a participar, eu me lembro bem, da ideia de um mandato em que o suplente pudesse também ter oportunidade de assumir. Na primeira eleição do PT, nós elegemos um único vereador, foi o Antônio Hohlfeldt, que hoje está inclusive no campo adversário, mas ele foi o primeiro vereador do PT no Estado, portanto passou a ser uma espécie de deputado na Câmara de Vereadores aqui de Porto Alegre. Nós tínhamos a dona Ana Godoy, uma mulher de bairro, de vila ali na Lomba do Pinheiro, e ela ficou de primeira suplente. Eu lembro bem que o partido tinha uma decisão, uma proposta, e o Antônio Hohlfeldt aceitou. Então, a companheira Ana Godoy, já velhinha hoje, assumiu em alguns momentos o mandato de vereadora, uma proposta nossa, do partido. Agora, eu achei que era a oportunidade de reafirmar isso, porque a gente vê que a forma como atuam hoje os legisladores, bom, tu elege, e o vínculo entre o eleitor e o eleito é mínimo, é passageiro, depois não tem uma coisa que faça o mandato ser exercido segundo a participação do eleitor ou do cidadão, não precisa ter votado no fulano ou no ciclano.

A nossa ideia é de que um mandato tenha uma construção coletiva com aqueles que compõem o mandato. No caso do senador, tem os suplentes, e não é uma hierarquia entre o primeiro e o segundo suplente. Não, é uma construção coletiva em que a gente vai estar sempre acompanhando, evidentemente, as pautas do Senado, a relação com as unidades federativas, municípios, estados federados, e os problemas sérios vividos pelo povo na realidade das suas vidas, que precisam ser discutidos e sobre eles ter propostas e aperfeiçoamento das leis. Fazer o estado funcionar bem, e bem não para poucos ou para alguns, mas para a maioria, com mais eficiência, com mais justiça. Essa é a nossa proposta, um mandato de construção solidária, participativa, coletiva, em que a equipe está lá não só quando é chamada, tem que compor uma equipe que esteja atenta a tudo que pode acontecer na Casa e fora da Casa, na sociedade, que influi na ação do senador, no nosso caso.

Evidente que isso tem a ver com as experiências que nós tivemos em outros limites, em outras situações, em outras áreas, e nenhuma delas foi completa. Nós não achamos que temos uma experiência já pronta, acabada, perfeita. Nós achamos que isso é uma construção e que um partido como o nosso, ou os partidos da Frente Brasil da Esperança, que são partidos de esquerda, do socialismo democrático, têm que não só falar sobre isso, têm que praticar, têm que semear a possibilidade da mudança, para fazer do Legislativo também um campo em que o povo possa ter maior presença ou realmente ser presente no seu protagonismo de cidadão.

Sul21 – E como o senhor vê esse compartilhamento de espaço na prática?

Olívio Dutra: Eu não tenho formulazinha pronta, acabada, uma receitinha já aqui no bolso ou na manga. Não, é a proposta e evidente que a gente sabe que tem propostas parecidas, não só aqui no Brasil, mas em outros países. Nós não queremos imitar, nem transplantar, mas achamos que é muito importante para nós, que estamos com a democracia ameaçada, a democracia sempre debilitada, por conta de o povo sempre estar longe dos espaços onde se decidem a formulação das leis, a sua execução e a sua fiscalização.

Nesse momento, é muito importante defender a democracia, não só a formal, a que já existe, mas não deixar que ela retroceda conforme querem os atuais governantes, principalmente o senhor esse que é o presidente da República. Ele quer uma democracia mitigada, uma democracia sem povo, uma democracia onde os espaços de controle efetivamente público se reduzem ou até são extintos. Então, tem que recuperar espaços em que o povo possa ser protagonista. Evidentemente, valorizando as instituições do estado democrático de direito, mas valorizando na ideia de que a democracia não é uma obra pronta e acabada, é uma obra aberta e tem que estar sempre sendo aperfeiçoada. De cima para baixo? Não, de baixo para cima.

Então, toda vez que alguém dos partidos de esquerda, do socialismo democrático, assumir mandatos, eles têm que estar instigando uma forma de participação, de descentralização do poder e de democratização do acesso às instâncias onde se defendem políticas e onde também o povo possa ser sujeito e não só objeto da política, para a política ser a construção do bem comum com o protagonismo das pessoas. E para que tenhamos uma democracia que não apenas a formal, mas que possa ser vivida. Imagina, agora na história republicana tivemos um maior espaço de tempo democrático depois do golpe de 64, por incrível que pareça. Antes de 64, tinha sempre golpes aqui, golpes ali, e depois da recuperação da democracia com o fim do golpe de 64, nós tivemos essas quase três décadas. Mas agora percebemos que não foi suficiente o golpe, 20 tantos anos de ditadura, de fechamento, de estreitamento de espaço de protagonismo do povo, isso criou uma espécie de amortecimento do espírito cidadão, da participação, da afirmação do protagonismo das pessoas, uma neutralização das organizações populares, uma demonização, inclusive, daqueles que se mobilizam mais, têm maior capacidade de pressionar governantes e de elaborar projetos.

Tem muita coisa acontecendo nesse País de baixo para cima que é ignorada e ignorada intencionalmente. Na verdade, é abafada pelo sistema, não só pelo governo federal, mas pela cultura da sociedade, que é uma sociedade… hum, a elite brasileira formou a sua riqueza com base em 320, 330 anos de escravidão, onde a mão de obra era o escravo que se comprava, vendia, matava, assassinava, torturava e tal. Até hoje, para a cabeça dessa elite, a mão de obra é uma coisa, é um produto. E, na medida em que ela tem mais ganhos pela organização, encarece esse produto, na visão do capitalismo neoliberal, para obter mais lucros em tempo mais curto, tem que reduzir o custo da mão de obra. Então, a visão da escravatura. Essa coisa não pode ser encarada como natural e nós precisamos não só falar contra isso, registrar isso que a história oficial não registra, mas nós temos que nos mobilizarmos e construirmos alternativas com o povo.

Sul21 – O atual Senado não vai ser totalmente renovado, pelo contrário, vai manter dois terços dos eleitos em 2018, numa eleição de um contexto muito bolsonarista. O que o senhor espera encontrar no Senado, se eleito, e imagina que dê para avançar?

Olívio Dutra: Olha, eu não me iludo e nem vendo ilusões. Mas eu acredito que não há mal que sempre dure e que tem muitas coisas acontecendo na base da sociedade brasileira, nos movimentos sociais populares, rurais e urbanos, nas escolas, até mesmo nas igrejas, embora nós saibamos que esse governo quer que o estado, que é laico, passe a ser um estado favorecendo tal religião, o que é contra os princípios democráticos, uma cultura que já vinha se consolidando.

Então, eu não tenho ilusão quanto a ter uma renovação enorme que altere mesmo a correlação de forças no Congresso Nacional, mas eu acho que não fica como está. Pode se alterar isto e é o trabalho que tem que ter, não só o campo popular democrático, uma campanha para eleger os executivos, o presidente Lula, os governadores, há que trabalhar também um esforço amplo de conscientização, de debate político sério, para eleger bancadas mais vigorosas, mais renovadas, tanto nas assembleias legislativas, quanto no Congresso Nacional, para que o presidente Lula, uma vez eleito, não tenha que viver da forma como teve que trabalhar nos seus dois mandatos e depois também a companheira Dilma [Rousseff], numa correlação de forças de centro-esquerda que foi indo para a centro-direita e acabou em bancadas que hoje estão sob controle do Centrão, o que é um retrocesso, o que é um atrelamento coronelístico do Poder Legislativo. Não vai ser numa mágica e nem nessa eleição que essa alteração vai ser substanciosa, mas eu tenho esperança de que haja não só renovação, mas uma ampliação e qualificação do campo democrático popular nos legislativos federais e estaduais.

Sem ilusão, porque o governo que está aí está usando de tudo que é mecanismo, recursos, arbitrariedades e falsidades para garantir que as coisas não mudem e que ele possa continuar nessa destruição da vida democrática, do sentimento participativo, do compartilhamento dos benefícios do trabalho. É um governo que trabalha para que a concentração de renda seja naturalizada, onde poucos estão cada vez ganhando mais, a concentração da riqueza também, a propriedade rural, a propriedade urbana. "Ah, os comunistas, os socialistas querem acabar com propriedade, invadir os apartamentos, as fazendas".

Nós queremos a democratização do acesso à propriedade rural e urbana, para que tenhamos mais proprietários do campo com financiamento, com tecnologia, com escola, com saúde, para que vivam dignamente, produzam alimentos sadios para a vida e não para morte, reduzindo enormemente a quantidade de veneno que o agronegócio usa. É possível ter, sim, atividade agropastoril, que é o agronegócio, combinado com a preservação do meio ambiente, uma relação holística com a mãe natureza é possível, nós acreditamos nisso. Reforma agrária, reforma urbana, são temas importantes e democráticos, são temas para irem estruturando a democracia, não a democracia de cima para baixo que naturaliza a concentração da renda, da propriedade e da riqueza nas mãos de cada vez menos pessoas.


Olívio diz não querer vender ilusões ao longo da campanha / Luiza Castro/Sul21

Sul21 – A sua entrada na disputa já mudou a corrida eleitoral para o Senado. O atual senador Lasier Martins desistiu de concorrer. Além do senhor, nós temos dois candidatos bastante conhecidos e tidos como favoritos, que são a ex-senadora Ana Amélia Lemos (PSD) e o vice-presidente Hamilton Mourão (REP). Como o senhor está encarando essa disputa, especialmente com essas duas figuras?

Olívio Dutra: Olha, com naturalidade, evidentemente. Nós temos um País que tem governo este que nós estamos sofrendo e este governo tem as suas candidaturas que são alinhadas com as suas políticas. As políticas do governo não são de pensar o Brasil na sua pluralidade, na sua diversidade, no seu desenvolvimento mais desconcentrado, descontraído, no respeito às pessoas, na valorização das vocações locais, regionais, isso é um governo que pensa sempre no controle de cima para baixo, na facilidade dos mais poderosos de continuarem se apropriando da máquina pública, ganhando mais dinheiro num espaço mais curto e violentando a natureza, condenando o futuro. Bom, eu vou trabalhar estas questões, eu penso que tem outros candidatos que não são também dessa mesma visão, mas mais parecido, eu vou pensar com as forças que nós reunimos, com as equipes que temos, com o povo que está se propondo a fazer a campanha e divulgar as nossas ideias.

Um senador representa a unidade federativa, então eu vou defender os interesses do povo do Rio Grande, do desenvolvimento economicamente viável, ecologicamente sustentável, socialmente justo, e isso é do interesse do Rio Grande. Tem as questões de infraestrutura, sem dúvida nenhuma, estradas, o transporte rodoviário, hidroviário, aeroviário, ferroviário, evidente que precisar ter política para isso, mas, no meu entendimento, o Estado tem um papel importante nisto, não é privatizando, não é dando para grupos econômicos, não é concessão disto com um retorno mínimo, não. O estado tem primeiro um compromisso com o traçado da malha, tem que ter o compromisso de que ela não só possibilite que o transporte de bens produzidos seja de qualidade, como também o transporte de pessoas. E não é o transporte para tirar as pessoas dos seus locais originais é colocá-las na periferia das cidades, não, temos que ter uma visão integrada dessas coisas. Pensar, sim, a infraestrutura do Estado, pensar também a defesa do meio ambiente do Estado, suas fontes de geração de energia, aproveitar a tecnologia, não apenas fósseis, as hidrelétricas também podem ser de pequeno ou de médio porte. Tem coisas a pensar e tem coisas a trabalhar fazer com que o desenvolvimento do Estado não seja concentrado nesse setor ou desequilibrando uma região com relação a outra, ou um setor com relação ao outro por uma política de incentivos fiscais seguindo a pressão dos grupos mais poderosos junto aos governantes ou financiadores de campanha. Então, tem coisas importantes para se discutir numa campanha, para ser propor num mandato e para trabalhar com a população de todos os setores.

Mas nós temos um lado, é evidente, vamos trabalhar pelo desenvolvimento do Rio Grande no geral, nós vamos defender o estado de bem-estar social, nós queremos que os que têm menos paguem menos impostos, nós queremos que o Estado direcione recursos para quem mais precisa e que não tenha ninguém passando fome, nenhuma família sem os filhos com direito a uma escola de boa qualidade em todos os níveis. E eu não estou fazendo uma promessa, isso é uma política, vamos defender essa visão em qualquer proposta que nós fizermos na ação do mandato, na relação com esses problemas e na articulação que tem a se fazer dentro da Casa, fora da Casa, com os governos. Não estou achando que nós vamos chegar lá e vamos mudar o mundo de uma hora para outra, nós vamos ser minoria, mas não uma minoria passiva, uma minoria que aceita, sempre disposta a fazer uma negociação pragmática e tal. Nós também não vamos ser elefante em loja de louça, nós vamos trabalhar com ideias, com propostas e com a mobilização que se relacione com a vida real do povo aqui do Estado, de outras áreas do País, e com o respeito aos movimentos sociais e populares, com o estímulo a que o povo se organize nas suas entidades, sindicatos, cooperativas, os jovens, os estudantes, os cientistas, os agentes culturais, o povo das artes, se sintam bem, recuperem a esperança, a criatividade, e a gente possa se relacionar sem medo, sem as ameaças e sem as discriminações que nós estamos sofrendo hoje.

Sul21 – Sobre as eleições de 2014, o senhor era o favorito nas pesquisas e a boca de urna apontou a sua vitória, mas, quando as urnas foram abertas, Lasier Martins ganhou por uma pequena margem. O senhor ainda pensa naquela eleição? Que lições o senhor tira daquela disputa e poderia usar desta vez?

Olívio Dutra: Eu nunca fui candidato de mim mesmo e nem só do PT. Fui candidato de ideias de um campo, que é o campo democrático popular, dos partidos de esquerda e dos movimentos sociais. Me orgulho muito do PT ser um partido que sempre se fez presente, com seus erros, com seus acertos, com seus limites, que eu acho que o PT tem muito também que se revigorar nesse processo. Mas acho, quanto àquela eleição, primeiro que a gente entrou já quase no fim dela. O Lasier já estava em campanha há muito tempo quando eu fui aprovado como candidato, porque eu não postulava, enfim. Mas eu acho que foi uma boa campanha, eu acho que se discutiu coisas de fundamento.

O Lasier é do campo adversário, mas não é inimigo. Eu nunca tive, mesmo com os adversários mais ferozes, nunca os considerei inimigos, não há porque eu os considere inimigos, mas eu quero com isso também ser respeitado, porque defendo coisas que certamente não são do agrado daqueles que querem uma democracia mitigada, uma democracia sem povo, um controle do dinheiro, dos recursos públicos, para beneficiar os seus amigos, os seus parentes, os seus financiadores de campanha, eu vou sempre estar conflitando essas ideias. Portanto, nada demais que tenhamos adversários com relação a isso. Tem. Nós representamos o campo dos trabalhadores, da micro e da pequena empresa e dos grandes produtores que têm uma visão social clara. A democracia não é propriedade nossa, minha, mas eu acho que a democracia que o estado neoliberal propõe é a democracia que instiga o egoísmo, o individualismo, o estado mínimo. Mínimo para quem a gente se pergunta? Mínimo para a maioria da população e continua sendo grande e máximo para pequenos grupos. A gente não quer também o estado máximo, pesado inoperante, a gente quer o estado sobre o controle público eficiente para atuar mais e melhor para a maioria da população. Então, bueno, nós vamos estar sempre defendendo isto em qualquer proposta, vindo de lá, vindo daqui, vamos lutar por isso.

Não tem essa de marcar na paleta aquele é inimigo. Não, aquele é adversário, pode ser adversário do campo de classes, uma sociedade tem classes e grupos, o grande patronato tem uma visão de que o estado deve funcionar para ele. A maioria do povo quer um estado funcionando socialmente e qualificadamente, a renda desconcentrada, o acesso à moradia digna, à terra para nela produzir, plantar e viver dignamente, é uma aspiração de milhares de famílias da área rural no Rio Grande e no Brasil. Uma estrutura tributária que não seja um um emaranhado de leis que facilite a sonegação, tem que ser simplificada, enxuta, direta, e tem que ter imposto progressivo. Quem tem mais, paga mais, quem tem menos, paga menos, e o estado sob o controle público direciona os recursos para quem mais precisa e para os investimentos fundamentais, estruturais, que nós precisamos. Reformas estruturantes, como é a reforma agrária, a reforma urbana, a reforma tributária, a reforma política, a que teve foi feita para voltar para trás e não para ir adiante. Bom, são temas importantes para serem discutidos.

Não estou dizendo que vamos "chegar lá e fazer a reforma agrária, fazer a reforma urbana, reforma tributária". Tem coisas acumuladas de anos. Eu me lembro, ainda estava no governo federal, em abril de 2003, o governo Lula mandou para o Congresso uma proposta de reforma tributária que vinha sendo discutida na sociedade. Que era essa do imposto sobre grandes fortunas, do imposto sobre grandes propriedade, o imposto sobre bens de luxo, o imposto sobre transmissão de propriedades de grandes grupos urbanos e rurais, tudo estava lá, assim como a simplificação, a clareza e o direcionamento desses recursos para a educação, para a saúde, para infraestrutura, para ciência, tecnologia, a pesquisa [mas não foi aprovada]. Isso que tinha maioria no Congresso, o Lula com a sua habilidade construiu a maioria, até o partido do Bolsonaro na época fazia parte da maioria.

Por isso que é importante estimular o eleitor para ter uma presença maior do campo que defende o estado de benefício social nos legislativos, porque daí não vai ficar dependendo de composição de ocasião, essa maioria para ter um cargo, para nomear meu parente, meu amigo, meu financiador lá em tal local. Essa maioria não serve, porque ela não mexe no que tem que ser mexido no que diz respeito à legislação, ao funcionamento do estado de forma azeitada, eficiente, transparente para a maioria da população. Não acho que não possa conversar com o adversário, mas eu quero conversar de igual para igual e não para ser engambelado. É evidente que nós vamos estar sempre colocando para a população o que está acontecendo ali e o que precisa de maior pressão de baixo para cima para as coisas irem gerando mudanças e a cultura democrática se consolidando. Mas isso é de uma geração para outra. Infelizmente, é isso, mas, se tu não semeia, nunca vai alterar essa correlação de forças.

Sul21 – No passado recente, o senhor chegou a fazer críticas públicas ao Partido dos Trabalhadores. Agora, diante dessa perspectiva de uma possível vitória do ex-presidente Lula, como o senhor vê a situação atual do PT?

Olívio Dutra: Olha, eu mantenho as críticas, porque nunca foram críticas pessoais, por pura idiossincrasia. Eu acho que um partido que surgiu de baixo para cima tem um compromisso, tem uma origem, que não pode se perder na ação de governo. Então, sempre tem que refletir sobre o que fez, o que deixou de fazer, como fez. Evidente que, nessa caminhada, teve um terreno pedregoso e teve que fazer alianças. E, com essas alianças, ajudar a fazer as coisas melhor, com mais radicalidade social, mas foram neutralizando o partido. O pragmatismo também foi levando a "não, esse tema vai deixar tal adversário inconformado" Então, tem realidades que não são da vontade. "A vontade do Lula era fazer isso, a vontade do fulano era fazer aquilo." São realidades nas quais o partido tratou também sem ter uma relação mais ampla e mais presente com os movimentos sociais, de instigar, de transmitir pros movimentos o que é mesmo o espaço institucional em que atuamos, com as nossas propostas, o que é mesmo isso para o povo não ficar iludido. "O Lula é um cara bom, fulano é um cara bom, vão resolver essas coisas". Tem a realidade política que tem que ser transmitida, informada e trabalhada para o povo se orientar bem. Não com a informação oficial, o povo tem iniciativas próprias de ter acesso à informações, a dados, e não se deixar envolver pelo figurão local, a benemerência ocasional que resolve um probleminha de ocasião e mantém a situação de que poucos se beneficiam, grupos econômicos poderosos.

Sul21 – E o senhor vê a perspectiva de correção de alguns desses erros num eventual próximo governo Lula?

Olívio Dutra: Claro. Eu sempre me lembro de uma quadrinha do Mário Quintana. "Meu saco de ilusões, bem cheio tive-o/E com ele ia subindo a ladeira da vida/No entanto, a cada ilusão perdida, que extraordinária sensação de alívio". Perder a ilusão, mas não perder a esperança. Porque a experiência diz que por ali é o terreno que não vai auxiliar, vai resvalar. A experiência e a vida nos tiram muitas coisas, mas, no nosso caso, que temos uma ideia de que o mundo pode ser de justiça, de igualdade, de fraternidade, a gente nunca abdica de estar lutando por isso, em situações das mais adversas e semeando a possibilidade de que as coisas mudem. Os movimentos sociais e populares que fizeram as leis serem mais justas, as realidades locais se alteraram para melhor, mas nós estamos vivendo uma sociedade e um momento no mundo em que o capitalismo, na fase neoliberal, está se reorganizando de cima para baixo e exportando as suas dificuldades para as periferias, isso está gerando uma desarticulação da relação humana e da relação da humanidade com a natureza que é um troço que não pode ser deixado assim. O capitalismo e o progresso exige isso, "tem que ser assim". Não, pode ter um desenvolvimento diferente deste. Pode e deve ter, vamos trabalhar por isso.

Repito, não me iludo e nem vendo ilusões, mas não perco a esperança, porque a gente sempre está com o pé na realidade. Então, essas eleições, a gente tem que estar trabalhando a realidade vivida pelo povo brasileiro, mas a esperança é que as coisas mudam na medida em que o povo seja protagonista da mudança e não apenas objeto das coisas prontas, que vêm de cima. Claro, quem tem fome e quem está desempregado não pode ficar parado ou o governo não fazer nada, tem que dar tratos a bola para fazer com que o estado seja capaz de atender as pessoas na sua realidade, transformando essa realidade para não viverem nessa desgraça que hoje tem uma enormidade de pessoas vivendo. Então, eu defendo o estado de bem-estar social, não o estado mínimo e nem o estado máximo. E o estado sob o controle público e não o sob o controle particular, privado e pessoal. Para funcionar bem e melhor, não para poucos, mas pela maioria. Então, é nisso que vamos atuar para buscar que cada atitude, cada proposta nossa vá abrindo a perspectiva de que isso se torne realidade.

Edição: Sul 21