Não se negocia a soberania nacional, não se negociam os direitos, muito menos a democracia
Estou vivo e estou no mesmo lugar, 45 anos depois. Dois acontecimentos históricos na minha vida. Agosto de 1977, agosto de 2022.
Agosto de 1977. Grande mobilização estudantil na rua João Pessoa, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, em frente ao prédio da Faculdade de Direito da UFRGS. Eu, continuando a ser e me sentir do movimento estudantil gaúcho, mesmo tendo sido expulso da PUCRS no final de 1975, quando era representante geral dos alunos do DCE da PUCRS junto à Reitoria e à Universidade - e expulso por isso mesmo! -, eu então frade franciscano, aluno ao mesmo tempo das Faculdades de Teologia e Letras, resolvi participar da mobilização estudantil pela democracia, em plena ditatura, 1977. Terminado o Ato, tri bom e representativo, por sinal bem acompanhado pela Marta, amiga e companheira, então moradora em comunidade da Lomba, dirigimo-nos ao centro de Porto, para pegar o ônibus para a Lomba do Pinheiro, periferia de Porto Alegre e Viamão onde eu morava, parada 13, Vila São Pedro.
Chegamos na Praça Argentina, ao lado da Santa Casa, início da rua Salgado Filho. Um camburão da Brigada Militar interrompe minha caminhada e pede para entrar na parte de trás da viatura. Pela primeira vez na vida, entro num camburão na parte de trás, prisioneiro. Sem opções, sou levado para o DOPS na Avenida Ipiranga com João Pessoa, conhecido de muita gente daqueles tempos. Sou devidamente fichado, fotos, impresso dos dedos e tudo mais. Aliás, para registro, nunca consegui cópia ou que seja disso tudo, porque o governador Amaral de Souza, o Amaralzinho, resolveu incinerar tudo, anos depois. Nada ficou para memória, a não ser este meu artigo e de quem esteve comigo em idos tempos.
Felizmente, o amigo e companheiro do DCE UFRGS Cezar Alvarez, viu que fui colocado no camburão dos altos da Casa do Estudante da UFRGS, ao lado da Praça Argentina, e alertou imediatamente todo mundo. Fui solto no mesmo dia, de volta ao trabalho e lutas das periferias, sem descanso, sem remorsos, sem qualquer dúvida, da Lomba do Pinheiro, das Associações de Bairros, das lutas populares por água, por regularização das vilas e ocupações, das Comunidades Eclesiais de Base, CEBs, e tudo mais.
Um dia depois do acontecido na Praça Argentina, sai nota no jornal Zero Hora, de Porto Alegre: ´Selvino Heck detido em manifestação estudantil´. Dias depois, a direção do Colégio Glória, onde eu era professor, me chama e comunica: “A Polícia Federal nos disse que, se não te demitirmos, vão te prender dentro do Colégio”. Fui demitido em setembro, metade do semestre de 1977.
Agosto de 2022. Em frente ao prédio da Faculdade de Direito da UFRGS, ouço a leitura da Carta pela Democracia e pelo Estado Democrático de Direito. Depois de longa caminhada com estudantes de todo Rio Grande do Sul, ao lado de movimentos sociais e populares, sinto-me inteiramente em casa. E de alguma maneira de volta aos anos 1970, de novo em defesa da soberania nacional, dos direitos humanos, da liberdade, da democracia.
Não estamos em 1977, em meio à ditadura militar. Estamos em 2022, supostos tempos de democracia, uma ditadura militar disfarçada. Mas continuamos com as mesmas reivindicações. Então, Diretas-Já, Constituinte Livre, Exclusiva, Soberana. Hoje, fim da violência, da intolerância, do ódio, defesa da soberania nacional, assassinato de mulheres, povo negro, jovens, população LGBTQIA+, com esperança e luta pelo retorno da democracia em sentido pleno.
Voltamos, regredimos a 1977? Muitas vezes, confesso, me pergunto, fico sinceramente na dúvida. Mas é certo, com certeza, estando em 2022, nada é história. Tudo é História.
Aos 71 anos bem vividos, sou jovem, continuo muito jovem, de corpo, de coração e de mente. Caminhei desde o colégio Júlio de Castilhos, o famoso Julinho, junto com a juventude e os estudantes, sem esmorecer em nenhum momento, em alguns momentos até correndo, até o Palácio Piratini, gritando, agitando bandeiras, e depois, quilômetros e mais quilômetros, de volta à Faculdade de Direito, sem parar, sem esmorecer, inteiro, vivo, vivíssimo, para ouvir a Carta em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito.
Não se negocia a soberania nacional, não se negociam os direitos das trabalhadoras e dos trabalhadores, muito menos a democracia. Nem ontem, 1977, nem hoje, 2022. Na boa luta, como diria Paulo Freire, ESPERANÇAR sempre.
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko