Rio Grande do Sul

Coluna

Nós, sobreviventes e refugiadas da violência

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"Precisamos refletir mais sobre nossas responsabilidades coletivas de sustentação da vida, uma vida digna o suficiente para ser vivida" - Arquivo pessoal
Estender o Agosto Lilás a todos os meses do ano, a uma vida livre de toda forma de violência

Este é o quarto texto de uma série de escritos a partir do encontro entre uma escutadora e uma sobrevivente de feminicídio, cujos vínculos se deram a partir do programa de extensão Clínica Feminista na Perspectiva da Interseccionalidade da UFRGS.


Em agosto completaram 16 anos de promulgação da Lei Maria da Penha e, embora pareça desnecessário explicar quem é Maria da Penha Maia Fernandes, não há como ignorar que foram 19 anos aguardando que o Estado brasileiro reconhecesse a violência que a tornou paraplégica, escapando da morte por duas vezes. Já deficiente e dependente de seu agressor, sofreu o cárcere privado e a tentativa de feminicídio por eletrocussão. 35 anos depois, ainda precisamos continuar gritando que o patriarcado nos faz reféns.

Pouco mais de um ano após sobreviver ao ataque, sigo peregrinando em busca de cidadania dentro do meu próprio país. Como única responsável e provedora de minha família, tenho procurado formar minha rede de apoio a partir de valores feministas que fazem mais sentido do que nunca. Sobretudo após saber que a mulher acusada como possível mandante do ataque que sofri responde ao processo judicial em liberdade. 


Livro conta a história de Maria da Penha Maia Fernandes / Divulgação

Precisamos do feminismo para que outras mulheres não vivam essa distopia que envolve o crime premeditado que passou a fazer parte da minha história: o pai dos meus filhos e sua companheira à época, que também é mãe, planejaram me matar supostamente por dinheiro. Mesmo ele tendo sido preso, não me sinto segura na cidade e no estado onde vivi toda a minha vida até então, pois ela ou alguém ligado a ambos pode, ainda, nos abordar ou mesmo nos matar. Meu medo é real, não é uma fantasia. Tem efeitos sobre a minha saúde física e psíquica, assim como na de meus filhos. 

Há um ano percorremos a estrada que vai me levando da condição de vítima a sobrevivente, e de sobrevivente a refugiada da violência. Qual a extensão dos danos que eu e minha família temos carregado, como um fardo por nossa própria existência? Como não sermos interrompidas, como voltar a confiar, a sonhar, a fazer planos? Reclamamos nosso direito à dignidade, e o reconhecimento de que não estamos todas. Sempre iremos lamentar pelas mulheres que partiram por meio da violência. 

Há dias de profunda exaustão, pois a revitimização é experiência praticamente cotidiana. Chega a ser inacreditável que o 5º país onde mais mulheres são assassinadas não tenha uma linha de cuidado para as sobreviventes de feminicídio, e que os efeitos da violência e da tortura sigam invisibilizados. Como podemos fugir da barbárie patriarcal com a imensa carga de trabalho que carregamos, ao sermos socializadas como mulheres?

Temos fugido e procurado refúgio, criando redes próprias de acolhimento e cuidado, redes quentes e empáticas que contrastam com a negligência, frieza e perversidade dos fluxos institucionais a que somos destinadas, tragicamente, a percorrer na busca por direitos já violados. Sororidade ou dororidade, conceito este tão bem cunhado por Vilma Piedade.

Me perguntam se tenho raiva, ou se perdoo a quem me fez tanto mal. Respondo que não tenho que perdoar, pois não sou Deus. Sou humana, e tenho dias e lágrimas de raiva e perplexidade. Mas maior que isso é a minha vontade de viver, e seguir construindo o mundo que encontrei após a tentativa de feminicídio. Construção essa que é coletiva, ao lado de outras pessoas que não acham normal, por exemplo, que um pai encarcere e torture esposa e os dois filhos por 17 anos, como vimos recentemente nos jornais. 

Precisamos refletir mais sobre nossas responsabilidades coletivas de sustentação da vida, uma vida digna o suficiente para ser vivida. Diante do patriarcado terrorista e homicida, a minha maior vingança é estar viva, e seguir viva. 

Estender o Agosto Lilás a todos os meses do ano, a uma vida livre de toda e qualquer forma de violência implica em encararmos de frente os efeitos dessa sobre quem sobreviveu a ela. Temos muito a dizer e contribuir do lugar onde falamos, e o qual não desejamos para outras mulheres e seus filhos. Prevenir e erradicar significa, sem escapatória, proteger, reparar e educar a sociedade em perspectiva feminista.

* Thaís Hipólito, em diálogo com Lara Werner

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko