Rio Grande do Sul

BASTA DE VIOLÊNCIA

Artigo | A luta contra o racismo é de toda a sociedade

Racismo é um problema estrutural que envolve não apenas a população negra, mas principalmente a população branca

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"Não vivemos numa democracia racial. Os números acima comprovam isso. Por isso, não basta sermos contra o racismo, precisamos ter uma atitude antirracistam" - Foto: Carl de Souza/AFP

O início de agosto foi marcado por um caso de racismo que ocupou o noticiário nacional e internacional. Refiro-me ao ataque racista contra a filha e o filho dos atores Giovanna Ewbank e Bruno Gagliasso, duas crianças negras, além de uma família angolana, desferido por uma mulher branca no litoral de Portugal, no dia 30 de julho. Primeiro, como mãe, minha solidariedade à Giovana pela reação que teve ao perceber que suas filhas crianças estavam sendo vítimas de um ataque brutal.  A segunda questão que gostaria de refletir para contribuir com um entendimento que considero fundamental: o racismo é um problema de toda a sociedade. Repito aqui a pergunta feita por Giovanna Ewbank e Bruno Gagliasso nas entrevistas que concederam para falar do episódio: e se os pais fossem negros, o que teria ocorrido? É muito triste perceber que talvez a situação pudesse ser outra.

Infelizmente, essa é a realidade que temos visto diariamente em episódios onde pessoas negras, sejam crianças, mulheres, homens, jovens, idosos são agredidos verbal ou fisicamente por atos racistas. O noticiário nos mostra essa devastadora realidade todos os dias. O 16º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em julho de 2022, mostra que 78% das vítimas de mortes violentas no Brasil são negros enquanto 21,7% são brancos. No caso das mortes provocadas pela polícia, o dado é ainda pior: 84% dos alvos são negros. O estudo também mostra que entre os policiais militares ou civis mortos em situação violenta, 67,7% deles são negros. No caso das mulheres vítimas de feminicídio, 62% são negras e 37,5% são brancas, o que mostra uma realidade estruturalmente desigual no momento em que precisam buscar ajuda, acolhimento ou socorro nos serviços públicos.

Os números mostram que o racismo é um problema estrutural, o que faz desse crime uma questão que envolve não apenas a população negra, mas principalmente a população branca. O Brasil é um país negro e feminino, localizado numa América africana e indígena, como nos ensina Lélia Gonzalez. Somos 56% de pessoas negras e 52% de mulheres. Mas, infelizmente, nossa história social, política e cultural é estruturada na violência da colonização branca europeia que fez do sequestro e escravização dos povos africanos a base da economia brasileira. Uma colonização que nega a nossa africanidade cultural e social. Não há democracia num país onde 56% da população está sob constante ameaça, num país onde crianças, jovens e adultos correm o risco de serem presos ou mortos porque são pretos.

A luta contra o racismo precisa ser incorporada como um problema de brancos, sobretudo porque como grupo social é onde o racismo é naturalizado pela negação de sua existência. Ao contrário do que ideologias racistas pretendem afirmar, não vivemos numa democracia racial. Os números acima comprovam isso. Por isso, não basta sermos contra o racismo, precisamos ter uma atitude antirracista.

No livro de Djamila Ribeiro “Pequeno Manual Antirracista”, a escritora feminista e pensadora negra nos ensina a buscar o autoquestionamento como um método antirracista: “onde estão as pessoas negras? Por que elas não estão aqui? Se estão, qual o lugar elas ocupam? Por quê”. A ruptura com a ideologia racista passa por nominar o racismo e, ao mesmo tempo, questionar e enfrentar práticas cotidianas que reforçam a cultura do apagamento e do desrespeito à população negra.

Sou uma mulher branca, moradora de Alvorada, cidade periférica da Região Metropolitana de Porto Alegre (RS), que tive a honra de governar por dois mandatos. Em Alvorada, a grande maioria dos moradores são trabalhadoras e trabalhadores compondo diversas etnias e racialidades: são negras e negros, migrantes, indígenas e brancos. Durante nossos mandatos implantamos o Orçamento Participativo onde buscamos construir com a população as prioridades para aplicar os recursos públicos de forma a atender o bem-estar das famílias, sejam elas moradoras das regiões centrais ou periféricas. Além disso, buscamos construir uma relação respeitosa com as Unidades Tradicionais de Terreiro (UTTs), uma vez que a cidade de Alvorada é um dos municípios gaúchos com importante presença das Unidades de Terreiro. Em 2003, durante minha segunda gestão como prefeita em Alvorada, constituímos o Fórum de Autoridades Locais de Periferia (FALP), no contexto do 3º Fórum Social Mundial. Essa rede reuniu autoridades globais das comunidades de periferia que em 2017 chegou a envolver 250 autoridades locais de 32 países buscando refletir sobre políticas públicas para as periferias.

O aprofundamento atual do neoliberalismo não deixa dúvidas do impacto destrutivo para as comunidades periféricas: mais pobreza, precarização de serviços públicos e ampliação da violência racista e machista, com o agravamento dos assassinatos da população negra e dos feminicídios. Como gestores públicos, entendo que o racismo e o machismo precisam ser considerados com políticas transversais de raça e gênero para que as políticas públicas avancem na ruptura com práticas institucionais e estruturais que ignoram as realidades específicas das periferias, da população negra, das mulheres, da população LGBTQIA+, das pessoas com deficiência. É ao lado dessas maiorias invisibilizadas e subalternizadas que lutamos.

O compromisso com a democracia passa por buscarmos uma sociedade mais inclusiva. E essa inclusão só será possível se rompermos com políticas institucionais racistas e misóginas. Como ex-prefeita e deputada estadual, uma mulher branca com atuação na política, penso que meu dever como militante feminista e antirracista é ser uma aliada na luta antirracista. Precisamos falar sobre a branquitude, sobre o que significa pertencer ao grupo étnico branco e o que podemos fazer para desnaturalizar a violência racista que tenta apagar a africanidade de nossa cultura e identidade nacional. Combater o racismo e o machismo precisa ser compromisso de toda a sociedade efetivamente.

Minha solidariedade ao casal de artistas diante da violência que suas filhas sofreram. Mas também os saúdo pela consciência de fazer de sua condição de privilégio (um casal branco, rico e conhecido) para denunciar ao mundo e mostrar o que deve ser um compromisso ético e civilizatório de todos nós, sobretudo os brancos: combater o racismo estrutural é um dever de toda a sociedade.

* Deputada estadual (PT), ex-prefeita de Alvorada

* Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Marcelo Ferreira