Na terça-feira (2), o Sul21 noticiou que o imóvel que abrigou o Dopinha, primeiro centro clandestino de detenção durante a ditadura militar em Porto Alegre, estava sendo anunciado na plataforma de reserva de acomodações Airbnb, que faz a mediação entre anfitrião e hóspede para locações por um curto período de tempo. A denúncia da situação aconteceu pelas redes sociais de Kaol Porfírio, ilustradora, que procurava um local para se hospedar na Capital durante um evento do qual vai participar em setembro. Horas após a publicação da matéria, o anúncio não estava mais disponível.
Procurado pela reportagem, o site de aluguéis informou que “o Airbnb desativou a referida acomodação para reservas enquanto avalia o caso. O Airbnb tem regras e políticas que determinam como a comunidade deve usar a plataforma para criar uma experiência em que as pessoas se sintam em casa em qualquer lugar e está comprometido a aplicar suas políticas para proteger a comunidade.”
Um caso parecido veio à tona nos Estados Unidos também nessa semana. O advogado de direitos civis Wynton Yates denunciou através de um vídeo em seu Tiktok um anúncio de uma “cabana para escravos”, ou uma senzala, de 1830, que havia sido reformada e transformada em acomodação de luxo. Em declaração para a CNN, o Airbnb informou que “propriedades que anteriormente abrigavam os escravizados não têm lugar no Airbnb. Pedimos desculpas por qualquer trauma ou sofrimento criado pela presença deste anúncio e outros semelhantes, e por não termos agido antes para resolver esse problema”. A empresa disse estar removendo outras listagens que incluem antigas senzalas nos EUA e desenvolvendo novas políticas.
Kaol optou por não reservar a casa após ler as avaliações, que falavam sobre uma placa indicando que o local foi um centro de tortura. A placa em questão foi instalada no dia 12 de agosto de 2015 como iniciativa do projeto Marcas da Memória, criado por meio de uma parceria entre o Movimento de Justiça e Direitos Humanos e a Prefeitura de Porto Alegre para identificar locais onde ocorreram violações de direitos humanos durante a ditadura militar. Em outubro de 2020, a placa foi coberta de cimento, mas o Ministério Público determinou que fosse recolocada, o que só aconteceu em abril de 2021. Nela diz:
“Primeiro centro clandestino de detenção do Cone Sul. No número 600 da rua Santo Antônio, funcionou estrutura paramilitar para sequestro, interrogatório, tortura e extermínio de pessoas ordenados pelo regime militar de 1964. O major Luiz Carlos Menna Barreto comandou o terror praticado por 28 militares, policiais, agentes do Dops e civis, até que apareceu no Guaíba o corpo com as mãos amarradas de Manoel Raimundo Soares, que suportou 152 dias de tortura, inclusive no casarão. Em 1966, com paredes manchadas de sangue, o Dopinha foi desativado e os crimes ali cometidos ficaram impunes”.
No comentário deixado por Cristhian, usuário do Airbnb que havia reservado o espaço em maio deste ano mas não chegou a efetivamente ficar lá, ele descreve que, após não receber respostas da anfitriã, foi até o endereço para tentar conversar pessoalmente. “Resolvi ir na frente da casa, toquei e ninguém me atendeu. A casa tem uma energia péssima, vários pichos na frente com a palavra ‘sangue’, a casa estava toda manchada de pingos vermelhos e na frente uma placa da prefeitura dizendo que neste local morreram muitas pessoas torturadas pela ditadura, pois é um ex dopinho. […] Foi a pior experiência que já tive num Airbnb na minha vida.”
O casarão foi identificado como centro de tortura em junho de 2011. Em 2014, durante o governo Tarso Genro, os proprietários do imóvel concordaram em vender o local ao poder público e disponibilizá-lo para a concretização do Memorial Ico Lisboa, em homenagem ao militante Luiz Eurico Tejera Lisboa, que desapareceu em 1972. Após a eleição de José Ivo Sartori para o governo do Estado, o projeto não avançou. Em 2016, o então prefeito de Porto Alegre, José Fortunati, firmou um compromisso de que a Prefeitura bancaria a desapropriação do prédio, o que também não aconteceu.
Representantes do Comitê Carlos de Ré da Verdade e Justiça denunciaram que o prédio estava sendo reformado, incluindo a instalação de uma piscina nos fundos do terreno. Os integrantes do Comitê alegaram que, por se tratar de um prédio de interesse histórico no município de Porto Alegre, qualquer alteração precisaria ser aprovada pela Prefeitura, o que não teria acontecido.
Segundo Suzana Lisboa, viúva de Ico Lisboa, que passou a dedicar sua vida à causa dos familiares de mortos e desaparecidos pela ditadura, os proprietários do imóvel em 2014 “tiveram muito boa vontade” mas, por não ocorrer o processo de transformação do espaço em memorial, ela acredita que optaram pela venda. Suzana relata que, após 2016, os moradores passaram a hostilizar as pessoas que iam à frente da casa se manifestar. Ela não tinha conhecimento de que a casa se tornara uma acomodação para turistas até a repercussão da história de Kaol, que publicou em suas redes sociais.
Edição: Sul 21