Kaol Porfírio é ilustradora e procurou a plataforma de reserva de acomodações Airbnb, que faz a mediação entre anfitrião e hóspede para locações por um curto período de tempo, para se hospedar em Porto Alegre durante um evento do qual vai participar em setembro. Após ter sua primeira reserva cancelada, voltou a procurar na plataforma e encontrou um anúncio que parecia ser perfeito: “Aproveite sua estadia nesta casa de estilista, remodelada e serenamente jardinada em 1927. Nossa casa espaçosa, antiga, original e recentemente remodelada, proporciona uma estadia tranquila e segura para os hóspedes que pretendem ter uma estadia única no centro de Porto Alegre”.
A localização do imóvel e o preço para estadia estavam de acordo com suas exigências e Kaol decidiu somente checar as avaliações no aplicativo antes de reservar, mas se surpreendeu com o que encontrou. “Nós fomos ler os comentários e um deles falava sobre a casa ter uma ‘energia pesada’. O meu marido começou a ler em voz alta e chegou na questão da placa, tem uma placa na frente da casa. E aí que caiu a ficha”, conta.
A placa em questão foi instalada no dia 12 de agosto de 2015 como iniciativa do projeto Marcas da Memória, criado por meio de uma parceria entre o Movimento de Justiça e Direitos Humanos e a Prefeitura de Porto Alegre para identificar locais onde ocorreram violações de direitos humanos durante a ditadura. Em outubro de 2020, a placa foi coberta de cimento, mas o Ministério Público fez um pedido para que fosse recolocada. Nela diz:
“Primeiro centro clandestino de detenção do Cone Sul. No número 600 da rua Santo Antônio, funcionou estrutura paramilitar para sequestro, interrogatório, tortura e extermínio de pessoas ordenados pelo regime militar de 1964. O major Luiz Carlos Menna Barreto comandou o terror praticado por 28 militares, policiais, agentes do Dops e civis, até que apareceu no Guaíba o corpo com as mãos amarradas de Manoel Raimundo Soares, que suportou 152 dias de tortura, inclusive no casarão. Em 1966, com paredes manchadas de sangue, o Dopinha foi desativado e os crimes ali cometidos ficaram impunes”.
No comentário deixado por Cristhian, usuário do Airbnb que havia reservado o espaço em maio deste ano mas não chegou a efetivamente ficar lá, ele descreve que, após não receber respostas da anfitriã, foi até o endereço para tentar conversar pessoalmente. “Resolvi ir na frente da casa, toquei e ninguém me atendeu. A casa tem uma energia péssima, vários pichos na frente com a palavra ‘sangue’, a casa estava toda manchada de pingos vermelhos e na frente uma placa da prefeitura dizendo que neste local morreram muitas pessoas torturadas pela ditadura, pois é um ex dopinho. […] Foi a pior experiência que já tive num Airbnb na minha vida.”
O casarão foi identificado como centro de tortura em junho de 2011. Em 2014, durante o governo Tarso Genro, os proprietários do imóvel concordaram em vender o local ao poder público e disponibilizá-lo para a concretização do Memorial Ico Lisboa, em homenagem ao militante Luiz Eurico Tejera Lisboa, que desapareceu em 1972. Após a eleição de José Ivo Sartori para o governo do Estado, o projeto não avançou. Em 2016, o então prefeito de Porto Alegre, José Fortunati, firmou um compromisso de que a Prefeitura bancaria a desapropriação do prédio, o que também não aconteceu.
Representantes do Comitê Carlos de Ré da Verdade e Justiça denunciaram que o prédio estava sendo reformado, incluindo a instalação de uma piscina nos fundos do terreno. Os integrantes do Comitê alegaram que, por se tratar de um prédio de interesse histórico no município de Porto Alegre, qualquer alteração precisaria ser aprovada pela Prefeitura, o que não teria acontecido.
Segundo Suzana Lisboa, viúva de Ico Lisboa, que passou a dedicar sua vida à causa dos familiares de mortos e desaparecidos pela ditadura, os proprietários do imóvel em 2014 “tiveram muito boa vontade” mas, por não ocorrer o processo de transformação do espaço em memorial, ela acredita que optaram pela venda. Suzana relata que, após 2016, os moradores passaram a hostilizar as pessoas que iam à frente da casa se manifestar. Ela não tinha conhecimento de que a casa se tornara uma acomodação para turistas até a repercussão da história de Kaol, que publicou em suas redes sociais.
Edição: Sul 21