O “esperançar da Amazônia” foi o mote do 10º Fórum Pan-Amazônico (FOSPA) realizado em Belém (PA)
O “esperançar da Amazônia” foi o mote do 10º Fórum Pan-Amazônico (FOSPA) realizado em Belém (PA) na semana passada. Estiveram presentes por volta de 10 mil pessoas, sendo elas representantes quilombolas, indígenas, ribeirinhos, movimentos populares e organizações da sociedade civil de vários países: Brasil, Peru, Equador, Bolívia, Colômbia e Venezuela. A urgência de repensar o modelo de desenvolvimento que vem se sobrepondo aos territórios e direitos dos povos na Amazônia, a partir das próprias gentes que habitam esses lugares, foi o que deu centralidade ao encontro. Já na marcha de abertura esse grito de ousadia se fazia presente; em pleno cenário eleitoral conturbado, as bandeiras da mobilização eram marcadas por resistência, afirmação de projeto popular e construção de unidade.
A Amazônia sempre foi tomada como uma zona de interesse nacional. Desde a Ditadura Militar brasileira, projetos de desenvolvimento são transplantados ao território sem qualquer diálogo ou participação com os povos originários, quilombolas, as comunidades locais e as populações atingidas, como se esses espaços fossem vazios e sem história. Afirma a carta final do II Encontro dos Atingidos e das Atingidas da Amazônia: “Historicamente, somos alvo de projetos pensados de cima, de fora e para fora, que nunca trouxeram verdadeiro desenvolvimento para a região, pelo contrário. Da enorme riqueza extraída, tudo é exportado – não fica nada para os povos amazônidas. Ainda assim, nunca na história da Amazônia se extraiu tanta riqueza, num ritmo tão intenso quanto hoje. Estamos vivenciando um processo sem precedentes de destruição da floresta, que converte seus povos em pobres. A região Norte concentra o maior índice de fome do país, a cada quatro famílias, uma passa fome”.
O avanço brutal da mercantilização e financeirização da natureza na região é marcado pelo uso intenso de violência. Diversos estados da Amazônia brasileira amargam a liderança nos assassinatos e ameaças a defensores de direitos humanos, seus povos e meio ambiente, como o recente assassinato de Dom Phillips e Bruno Pereira no Vale do Javari (AM). A impetuosidade com que o agronegócio, a mineração, o garimpo ilegal e a "bio"economia se apropriam dos territórios e corpos amazônicos produz o desmoronamento dos modos de vida local, tornando essas terras cada vez mais integradas a uma economia globalizada e dependente da velocidade extrativa dos fluxos financeiros, descolada dos tempos da produção e reprodução da vida.
Insurgindo-se a isso, os povos da floresta, das águas, do campo e da cidade demonstraram, em Belém (PA), sua capacidade na construção da organização popular para um outro projeto para a Amazônia, trazendo inúmeros exemplos de alternativas sistêmicas para a crise social, ambiental e política que os afetam. Dentre essas frentes, destacamos a resistência ao Acordo Comercial entre a União Europeia e o Mercosul, a necessidade de responsabilização das empresas transnacionais pelas violações aos direitos humanos e as estratégias populares para barrar a financeirização da natureza, travestida outra vez em novo nome: bioeconomia.
Impactos dos acordos internacionais de livre comércio sobre a Amazônia e América Latina
Num dos espaços autogestionados, as organizações discutiram a luta contra o Acordo de Livre Comércio UE-Mercosul, cujas negociações se arrastaram por cerca de 20 anos, após a derrota popular do projeto da ALCA (Área de Livre Comércio das Américas), sem transparência ou participação popular, tendo sido o pacto finalizado justamente no primeiro ano do governo Bolsonaro. Segundo as entidades presentes, o acordo reproduz tanto a lógica neocolonial quanto neoliberal, feito à medida dos interesses das transnacionais da União Europeia, reforçando um papel de exportação de produtos primários do Brasil e demais países do bloco na América Latina, em troca de mais liberalização para a entrada dessas empresas no Mercosul com produtos industrializados e nos setores de serviços e compras públicas. Não preciso no acordo está a conta dos danos ambientais e sociais da expansão desse comércio sobre os territórios, biomas e populações, estando a Amazônia na mira de muitos projetos de mineração, agronegócio e infraestrutura de exportação.
Na lista dos produtos do Acordo a serem exportados do Brasil sem impostos estão soja, carne bovina, minério de ferro e etanol para agrocombustíveis e indústria "bio"química. Nas importações da Europa, mais agrotóxicos proibidos nos países de origem e mais carros com motores à combustão já produzidos no Brasil. Com o avanço do acordo, os territórios amazônicos se constituem como “zonas de sacrifício”, tendendo a intensificar processos destrutivos já em curso como as queimadas e desmatamento para expansão da fronteira agrícola e da mineração. Ademais, esses processos nunca atuam isoladamente, sempre necessitam de uma rede logística de amplo porte para se sustentarem. Em razão disso, propagam-se projetos de ampliação de portos, instalação de silos de armazenamento e intensificação do fluxo de hidrovias. Os quais são efetivados sobre territórios ocupados por povos e comunidades tradicionais, pesqueiras e ribeirinhas, que ou são deslocados, ou veem suas formas de produzir a vida sendo paulatinamente extintas.
Embora sejam difundidas notícias sobre as preocupações com a crise climática e as violações aos direitos humanos ao redor das negociações do acordo, e ainda que haja um capítulo sobre comércio e desenvolvimento sustentável, não há qualquer previsão de mecanismo de solução de controvérsias, sanções e multas, ou ainda previsão de fundos que possam sustentar esses impactos. Além disso, fica claro o quanto falta justiça quando a suposta Transição Energética prevista do Pacto Verde Europeu pode significar mais extração de minérios e água dos países da América Latina para subsidiar energias "limpas", carros elétricos ou hidrogênio "verde" para o velho continente.
A luta pela responsabilização das empresas transnacionais
Os projetos que são implantados na região Amazônica refletem as disputas na geopolítica mundial pelo acesso às matérias-primas baratas e controle de territórios, conduzidos pelas grandes corporações. Com isso, estamos afirmando que não somente o acesso ao recurso está em questão, mas também a capacidade de controlar a territorialidade e a capacidade e soberania dos estados em definir e aplicar políticas públicas, por isso a captura corporativa é um mecanismo de ação bastante profundo. As empresas transnacionais não dominam apenas bens, elas controlam formas de ser e produzir, e cada vez mais precisam destruir os modos de produção da vida diversos para criar a falsa ideia de que não há saídas.
Por isso, o enfrentamento ao poder das corporações é uma luta estrutural na construção de uma outra sociedade. Destruir o poder econômico, político, cultural e social que essas empresas possuem permite abrir caminhos para que possamos continuar existindo em nossa diversidade, ao passo que construímos janelas históricas de projetos mais justos e igualitários.
Nessa esteira se insere a campanha pela aprovação do PL nº.572/2022, que se constitui como um marco para a responsabilização das empresas pelas violações aos direitos humanos. O projeto reflete os mais de 10 anos de construção da Campanha Internacional pelo Desmantelamento do Poder Corporativo e pela Soberania dos Povos, nos quais se diagnosticou a constituição de uma arquitetura da impunidade que beneficia os negócios das corporações em detrimento dos direitos dos povos. Assim, constituir uma lei que possa assegurar esses direitos é uma forma de diminuir a assimetria de poderes e constituir instrumentos concretos de responsabilização. Como diria João Dutra, militante do MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens): “Uma loucura a gente ter que fazer uma lei para dizer que o Estado e as empresas precisam seguir a lei”. E ainda completou: “A necessidade da lei mostra que as empresas fazem as próprias leis”. Avançar no marco é um primeiro passo para asfixiar o poder corporativo em sua tentativa de destruir os territórios e a democracia.
Um programa para sair da “bio”economia
Diante das crises econômica, alimentar, sanitária e ambiental, tem-se acirrado as disputas ao redor da constituição de novos projetos econômicos. Frente a isso, alguns atores políticos têm difundido saídas para a crise na promoção da transição verde da economia. Em tal contexto, o Brasil é colocado como um líder em potencial em virtude da concentração de florestas, água e biodiversidade em sua extensão, por isso tem sido alvo de propostas experimentais de bioeconomia e financeirização da natureza em distintos setores. Destaca-se que muitas das iniciativas de bioeconomia são financiadas pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), transferindo dinheiro público para empresas privadas que atuam na especulação com créditos de carbono ou mesmo para o agronegócio, com impacto direto sobre a soberania popular em territórios da Amazônia. No entanto, as consequências da implementação desses projetos, assim como de políticas estaduais já com mais de uma década de implementação, como a Lei nº 2.308/2010 do Acre, ainda são pouco debatidas.
Essas iniciativas estão cada vez mais fortalecidas com as propostas de transição verde elaborados no Norte Global, como o “Pacto Verde” europeu ou o “Green Deal” dos Estados Unidos (EUA), que determinam ao Brasil um papel, além de laboratório, de fornecedor de matérias-primas, como minerais. Novamente, as empresas transnacionais são colocadas como chave para a concretização desse processo. Desse modo, as propostas de solução das crises reforçam redes de produção global, endossam a lógica financeira, distanciando-se de uma transição energética justa, feminista e popular já sendo construída em aliança com movimento sociais no Brasil e na América Latina.
Ressaltando a urgência da construção de um programa de país que represente uma real transformação das estruturas e possa dar respostas satisfatórias à crise ambiental e social, o Grupo Carta de Belém apresentou 10 propostas para a reconstrução de uma política socioambiental brasileira no contexto das eleições, dentre elas: garantia dos modos de vida; garantia da terra e do território; reafirmação do meio ambiente como bem comum e garantia da participação social.
Nas rodas de diálogo no FOSPA sobre o tema evidenciam-se que as soluções para a crise ecológica possuem respostas muito mais simples e acessíveis, como a valorização dos modos de vida tradicionais e o repensar do modelo de desenvolvimento, tirando das mãos dos bancos, das corporações e de países do Norte Global a definição do que são as soluções para a crise climática. Os representantes das comunidades presentes mostraram como suas formas históricas de organização social e de relações de produção têm assegurado condições de vida mais dignas e sustentáveis ao longo de séculos de processos emancipatórios de resistência.
Por um projeto de país feito por nós a partir de nossos lugares
Contra a tendência hegemônica de projetar cenários para a Amazônia a partir de escritórios corporativos de Washington (EUA) a Bruxelas (Bélgica), ou mesmo pela capital Brasília, os povos reunidos no FOSPA demonstraram a sua força ao afirmar que a Amazônia deverá ser pensada com os pés, e pelos pés, corações, mentes e memórias que nela habitam. Evidenciaram que essa terra é povoada, provedora de alimentos, de dignidade, resistência, organização e luta, já que eles são a Amazônia que vive e resiste!
Tal como disseram os atingidos e as atingidas por barragem: “Acreditamos que os 20 milhões de brasileiros e brasileiras que vivem aqui devem ser protagonistas da construção do projeto que queremos para a Amazônia, com outra economia, outro desenvolvimento, que respeite seus povos e priorize a vida. Mas não atuamos na região de forma isolada e sim nos somamos à construção de um projeto de país. Nada esperamos da classe dominante: a burguesia, pelo seu caráter dependente, já se mostrou incapaz de pensar em um projeto soberano e próspero. Portanto, ele tem que ser construído pelos trabalhadores e trabalhadoras, pelos explorados e exploradas. Somos todos atingidos por esse sistema e devemos, juntos, combatê-lo e construir o novo”.
*Amigos da Terra Brasil (ATBr) é uma organização que atua na construção da luta por Justiça Ambiental. Quinzenalmente às segundas-feiras, publicamos artigos sobre justiça econômica e climática, soberania alimentar, biodiversidade, solidariedade internacionalista e contra as opressões. Leia outros textos.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo e Katia Marko