Rio Grande do Sul

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Projetos na Câmara tentam reduzir o espaço para ônibus e bicicletas nas ruas de Porto Alegre

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"É consenso entre aqueles que estudam mobilidade urbana que o uso do transporte coletivo e ativo deve ser estimulado e que uma forma de fazer isso é reservando um espaço nas vias públicas" - Foto: André Augustin
Porto Alegre se reafirma como um local de retrocesso, enquanto no mundo várias cidades avançam

A disputa entre os diferentes modos de transporte por espaço nas vias públicas é um dos principais focos de conflito nas grandes cidades atualmente e isso não ocorre por acaso. Em 1960, o Brasil possuía apenas 56 mil automóveis. Atualmente já passamos de 28 milhões, um aumento 227 vezes maior que o crescimento da população no mesmo período. O resultado são ruas cada vez mais engarrafadas.

As constantes obras viárias que consomem todos os anos bilhões de reais em recursos públicos, como duplicação de ruas e construção de viadutos, não são suficientes para acabar com os congestionamentos. Pelo contrário, elas só estimulam ainda mais o uso do transporte individual motorizado, o principal causador do problema. Afinal, cada vez que alguém substitui o transporte ativo ou coletivo pelo carro, o espaço ocupado nas ruas se multiplica. Como a imagem abaixo ilustra, uma pessoa andando de carro ocupa seis vezes mais espaço que de ônibus.


Simulação adaptada pelo Observatório das Metrópoles / Reprodução

É consenso entre aqueles que estudam mobilidade urbana que o uso do transporte coletivo e do transporte ativo deve ser estimulado e que uma forma de fazer isso é reservando um espaço para esses modos nas vias públicas. Também é isso que prevê a legislação brasileira. A Lei nº 12.587, por exemplo, que instituiu a Política Nacional de Mobilidade Urbana, tem entre suas diretrizes a “prioridade dos modos de transportes não motorizados sobre os motorizados e dos serviços de transporte público coletivo sobre o transporte individual motorizado”. Em seu artigo 23, a lei diz que um dos instrumentos utilizados pelos entes federativos deve ser a “dedicação de espaço exclusivo nas vias públicas para os serviços de transporte público coletivo e modos de transporte não motorizados”.

Na contramão da legislação, atualmente tramitam na Câmara Municipal de Porto Alegre pelo menos três propostas que têm como objetivo reduzir o espaço destinados aos ônibus e às bicicletas. O primeiro é o PLCL 03/22, de autoria do vereador Idenir Cecchim (MDB), que obriga uma consulta prévia a moradores e empresários de uma rua antes da implementação de ciclovias e ciclofaixas. A intervenção só poderia ser realizada se tivesse a aprovação de mais de 50% deles. O argumento do vereador é que as ciclovias impedem o acesso ao comércio, gerando perdas econômicas.

Um dos problemas do PL é considerar que a rua não é pública, mas daqueles que detém a propriedade dos imóveis próximos. Afinal, não obriga a consulta a toda população da cidade – que pagará pela obra – ou a todos que passam por aquela via para chegarem até o seu trabalho, mas somente aos empresários e moradores da própria rua. Além disso, por que obrigar a consulta apenas para a construção de ciclovias e não para as obras viárias que privilegiam o automóvel? Segundo o próprio Cecchim, o verdadeiro objetivo é restringir a viabilização das ciclovias. Tudo isso baseado no mito de que mais espaço para carros significa mais vendas no comércio, uma ideia meramente ideológica e que não encontra base na realidade.

Quem conhece Porto Alegre sabe que uma das ruas em que o comércio mais vende é a Rua da Praia, justamente uma das poucas onde o trânsito de veículos não é permitido. E para pegar um exemplo do país que é símbolo da indústria automobilística, um estudo do Departamento de Transporte de Nova Iorque mostrou que a construção de ciclovias nas 8ª e 9ª Avenidas de Manhattan geraram um aumento de 49% nas vendas do varejo. Já a transformação de um estacionamento no Brooklyn em praça aumentou o faturamento do comércio em 172%.

Os outros dois projetos tentam acabar com o uso exclusivo dos corredores de ônibus pelos ônibus. O PLL 142/22, do vereador Claudio Janta (SD), libera o tráfego de táxis nos corredores de ônibus em qualquer dia e horário. O objetivo alegado pelo parlamentar é “melhorar a distribuição do fluxo de veículos no sistema viário”, o que traria “benefícios a todos os munícipes”. A alegação é claramente falsa, já que o uso dos corredores por outros veículos reduziria a velocidade de circulação dos ônibus, trazendo malefícios para o usuário do transporte coletivo.

Já o vereador Leonel Radde (PT) apresentou uma indicação de PL ao Executivo para permitir a circulação de motos nos corredores de ônibus quando o condutor esteja exercendo sua função laboral. Não há previsão de como será fiscalizado esse exercício da função laboral, o que provavelmente acabaria resultando numa liberação total.

A exposição de motivos da indicação é uma clara demonstração que a disputa pelo espaço viário é uma expressão da luta de classes e que, nesta, o policial vereador não se posiciona do lado da classe que nomeia o seu partido. Primeiro, diz que a medida aumentaria a produtividade do trabalho dos profissionais motofretistas, “gerando, em última análise, maior lucro” para as empresas de entrega. Depois há um elogio à desastrosa política de mobilidade urbana da gestão Melo e um ataque ao direito de greve dos rodoviários: “nos últimos anos, a Prefeitura Municipal de Porto Alegre tem envidado esforços para priorizar e qualificar o transporte público. Todavia, quando ocorrem manifestações e paralisações, toda a população sofre com o caos gerado pelo aumento exponencial do fluxo de veículos leves nas ruas e nas avenidas”. Essa última frase surpreende por ser um ataque completamente gratuito ao transporte coletivo e aos seus trabalhadores, acusados de gerarem o caos, já que o conteúdo do projeto não tem nenhuma relação com manifestações ou paralisações.

Em comum, as propostas dos três vereadores priorizam o transporte individual motorizado, usado pela parcela de maior renda da população e responsável por aumentar os engarrafamentos, a poluição e os acidentes. Enquanto as cidades de todo o mundo ampliam o espaço para pedestres, ciclistas e transporte coletivo, Porto Alegre se reafirma como um local de retrocesso, presa a uma concepção de desenvolvimento urbano de 70 anos atrás. Infelizmente, os caranguejos que resistem a isso estão cada vez em menor número.

* Artigo de André Augustin, mestre em Economia e pesquisador do INCT Observatório das Metrópoles - Núcleo Porto Alegre.

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko