A carta pode ser apenas um documento, ou pode ser a certidão de nascimento de um novo tempo
Ano atípico. Clima de instabilidade. Constantes ataques às instituições. Violência. Estímulo à misoginia, ao racismo. Desemprego. Fome. Miséria. Destruição ambiental.
Ameaça de golpe.
E uma carta que, em poucos dias, obteve mais de meio milhão de assinaturas.
Do que se trata, afinal?
Não é de eleições, nem de partidos.
Tampouco se trata de hostilizar um sujeito ou alguns.
Não é sobre gados ou patos. Nem é sobre revolução.
É sobre um tempo suspenso há quase 40 anos (Ou 500…)
Não por acaso, a carta relembra a década de 1970… repete a evocação de um futuro possível, mas sempre adiado.
É sobre o que não foi feito. Sobre o descuido, a perda.
É a evidência da luta que ainda não fizemos. Das conquistas relativizadas.
É sobre a esperança perdida.
Sobre omissões, sobre pactos espúrios.
É Chico Mendes, Dom, Bruno e tantas outras. É Belo Monte, Mariana, Brumadinho.
É sobre a fome, mas é, também, sobre desperdício.
Sobre reformas que destroem. Orçamentos secretos. Desvio de recursos públicos.
É sobre distorção da crença religiosa. Encarceramento. Criminalização seletiva.
Sobre o trauma da aposta na morte durante a pandemia. O desprezo pela ciência. O deboche. O descaso.
É sobre a perversão da redução de salário, das despedidas coletivas, da uberização.
Sobre o que não fizemos.
Sobre o que não ousamos.
Que isso seja feito através da defesa de instituições que têm servido para perpetuar a opressão é significativo. Que seja uma carta “aos brasileiros” e não às brasileiras, também. Seu texto poderia ser outro…
Talvez muitos dos que a assinaram não tenham lido seu conteúdo.
E, se lessem, talvez não a tivessem assinado.
Afinal, o que é mesmo esse Estado Democrático de Direito que estamos defendendo, senão parte do que hoje nos trouxe a esse tempo de tanta dor?
Pois hoje assinei a carta, porque entendi que não é sobre o texto; é sobre o símbolo.
É um convite à reflexão.
É uma urgência. Um movimento político.
É assumir posição. É um ato, que inaugura outros, ainda mais significativos, como as manifestações públicas que já se articulam para o dia 11 de agosto em todo o país.
É algo a ser transformado em expressão de todos os gritos que ainda sufocam nossas gargantas:
Tortura nunca mais!
Nenhuma a menos!
Parem de nos matar!
Ele não!
A carta é só um tímido começo, eu sei. Mas de algum modo, é preciso começar.
Não há futuro nesse lugar onde estamos.
Já são mais de três décadas ensaiando uma realidade democrática que nunca acontece.
É hora!
A carta pode ser apenas um documento, o registro do que se tornou insuportável. E já terá valido.
Mas também pode ser mais. Pode ser a certidão de nascimento de um novo tempo.
O compromisso com outra forma de conviver.
O expurgo de tudo que faz da democracia simulacro.
Não é aos brasileiros de hoje; é especialmente a quem virá.
Não é sequer uma carta.
É um manifesto vivo, de um povo que agoniza.
É a constatação da morte de um projeto fracassado de Estado, mas pode ser também aposta no nascimento de uma outra sociabilidade possível.
Tornou-se, em pouco tempo, bem mais do que seu texto expressa.
Adiro à carta por reconhecer o que ela simboliza. Que nos serve de estímulo a um agir bem mais comprometido e profundo.
Afinal, tanta violência paralisa.
E já passou da hora de sair dessa paralisia.
A quem anuncia golpe, respondemos com o anseio de democracia.
Não a que tivemos, não aquela em que apostamos nas últimas décadas.
A democracia que ainda nem sequer experimentamos. A que desejamos.
A que podemos construir.
Para adesões: Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito!
* Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko