“É tempo de formar novos quilombos, em qualquer lugar que estejamos, e que venham os dias futuros. A mística quilombola persiste afirmando: ‘a liberdade é uma luta constante’.” Conceição Evaristo.
Formado por aproximadamente 260 famílias, o Quilombo dos Machado existe há mais de 70 anos. O território, localizado na zona Norte de Porto Alegre, no Bairro Sarandi, próximo ao aeroporto da Capital, se constitui como espaço de acolhimento não apenas para descendentes nascidos no Brasil, mas também para aqueles de outros países. Símbolo de um futuro possível para imigrantes, principalmente vindos do Haiti, a ancestralidade existente no Quilombo dos Machado transpassa fronteiras. É o maior Quilombo urbano, em relação ao número de habitantes, em Porto Alegre.
O Quilombo tem sua origem com a chegada da matriarca, Laura de Melo Moura, à Vila Respeito, situada a poucos metros do atual território. Saída de São Francisco de Paula, município a cerca de 115 km da Capital, Dona Laura se instalou na região, se casou com o patriarca, Manoel Eugênio Machado, e deu início à relação de pertencimento com o lugar. Com o passar dos anos, a família aumentou e juntos decidiram ocupar um terreno ocioso no bairro vizinho, local onde se (re)estabeleceu a história dos Machados.
Na terceira geração, é o neto de D. Laura quem dá continuidade às formas de organização, de luta e de apropriação do espaço do Quilombo dos Machado. “O Quilombo é além de moradia. É sobre se aquilombar para resgatar a nossa ancestralidade, as nossas origens e fazer aquilo que é do nosso povo. É nos proteger em primeiro lugar”, define Luís Rogério Machado, 41 anos, conhecido como Jamaika, e atual liderança da comunidade.
Educador social, e pai de Lucas Gabriel, Jamaika diz que seu filho já é o mentor dos “pequenos da comunidade”.
Aquilombar, a periferia em resgate
Constituídos por laços consanguíneos ou não, rurais ou urbanos, os Quilombos projetam-se no verbo aquilombar: reunir, juntar com propósito comum, grupal. Agregam-se em uma rede de cuidado de pessoas, plantas e animais e nela reafirmam a sua existência. Em Ubuntu: “Eu Sou porque Somos”. É com essa filosofia que retrata a cosmovisão do mundo negro-africano que o Quilombo dos Machado preserva as suas raízes culturais.
Para além das relações de parentesco, o território também é abrigo para aqueles que vêm de fora, seja de outras regiões do Brasil, como é o caso de seu Antônio e seus conterrâneos vindos, nesta ordem, de Parambu e Assaré (ambas no Ceará), seja oriundos de outros países, como é o caso dos imigrantes haitianos que residem em um beco na comunidade. Para Jamaika, aquilombar é a periferia em resgate.
“Se a gente for ver dentro da periferia, que é o Quilombo urbano, a maioria são negros. Fomos nós os mais atirados para as margens da sociedade. Se pegar no Brasil, na periferia é a maioria negra. Pode ter o indígena, o branco pobre, que também tem aquele mesmo fator de luta com a gente pela igualdade, mas em muitas vezes é o negro que sofre mais na luta pelo emprego, na luta pela sobrevivência.”
Conforme destaca a liderança, diante do medo, do racismo e da especulação imobiliária que cerceia os Quilombos, é importante se aquilombar, resgatar o que se é. “Isso quebra o latifúndio, quebra o agronegócio, quebra a especulação imobiliária. Isso quebra tudo, e acaba quebrando muito boa parte do racismo. Aí estamos olhando para o outro, para o outro irmão, irmã, o que acontece em qualquer lugar, nós estamos juntos.”
Ser quilombola em uma cidade racista
De acordo com a Secretaria da Segurança Pública do estado (SSP-RS), denúncias por racismo ou injúria racial no Rio Grande do Sul mais do que dobraram nos cinco primeiros meses de 2022. Foram 47 denúncias desde o início do ano, 135% a mais do que as 20 do mesmo período do ano passado. Na Capital, a cada 30 horas uma pessoa negra é vítima de racismo. “Quem tá morrendo é a maioria de dentro da periferia, de dentro do Quilombo. As retomadas indígenas estão sendo atacadas, os Quilombos estão sendo atacados. As pessoas querem ‘comprar’ as lideranças, às vezes de uma forma muito mais forte do que em outros estados”, comenta Jamaika.
Neste contexto, Jamaika afirma que ser quilombola é fortalecer a sua raiz, fortalecer aquilo que sempre foi. “É o ser negro, ser negra, é fazer a capoeira, é fazer o afoxé, é fazer o samba de roda, é fazer o jongo, é tocar o batuque, o cavaquinho, mesmo ele não sendo brasileiro. É comer o vatapá, mugunzá, feijoada. Fazer aquilo que se torna tipicamente meu, sem que ninguém venha e tenha que dizer pra mim como que eu vou fazer, é a minha origem de tudo que eu sei fazer, daquilo que os meus ancestrais deixaram pra mim e que eu dou sequência. Isso é o Quilombo, é fortalecer as suas origens, fortalecer a sua raiz”, enfatiza.
Expressões religiosas
No Quilombo, identidade e território estão intimamente ligados às expressões de fé. “Eu sou batuque”, diz Jamaika. Filho de Bará Lodê, Orixá das chaves que abre e fecha os caminhos para todas as existências, ele conta que possui três Orixás protetores: da cabeça (Bará Lodê), do corpo (Oxum com Obá) e dos pés (Ogum Avangan). “O Orixá veio ao mundo para nos dar proteção, para tirar esse sofrimento da gente e quebrar esse racismo. Ele mostra aquilo que é da gente mesmo enquanto negro. Ele fortalece o nosso dia a dia, as nossas origens”, explica.
Jamaika conta que o banho e a queima de ervas realizados por ele em rituais da Umbanda, do Candomblé e da Quimbanda simbolizam também a continuidade dos saberes acumulados pelas mulheres de sua família. “A minha bisavó passou para a minha avó, que passou para a minha mãe. E agora sou um dos poucos que está dando sequência a essa trajetória”, relata. Ele explica que há banhos específicos para cada Orixá: “Essas ervas recebem o nome de alguma entidade, então quando a gente está passando no nosso corpo, estamos nos banhando com aquelas entidades”. Para Jamaika, “a essência do banho é a essência da purificação”.
Capoeira é luta
Entre as práticas culturais desenvolvidas pelo Quilombo dos Machado está a capoeira. Realizada pelos povos escravizados como uma forma de defesa às brutais violências praticadas pelos escravagistas, a capoeira foi vista como um ato marginal por séculos. Proibida após a independência do Brasil, via Decreto nº 847 de 1890, com pena de dois a seis meses de prisão, ela só viria a ser desconsiderada criminosa em 1936, quando o então presidente Getúlio Vargas extinguiu o decreto.
“Art. 402. Fazer nas ruas e praças públicas exercício de agilidade e destreza corporal conhecida pela denominação Capoeiragem: andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes de produzir lesão corporal, provocando tumulto ou desordem, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal. Pena: de prisão celular por dois a seis meses. Parágrafo único. É considerada circunstância agravante pertencer o capoeira a alguma banda ou malta. Aos chefes ou cabeças, se imporá a pena em dobro.”
Discípulo de Moa do Katendê, mestre capoeirista assassinado em 2018 com 13 facadas por um apoiador de Jair Bolsonaro, Jamaika é praticante de capoeira há quase 26 anos. Na comunidade, há uma homenagem com o rosto de Moa. Jamaika se emociona ao falar sobre: “Ele era um cara que não saía do Quilombo. É minha referência, se eu faço afoxé, se eu tenho uma capoeira excelente pra mostrar pro mundo, alguma coisa é por causa dele, convivi com Moa por 24 anos”.
Com mais de duas décadas dedicadas à prática, Jamaika diz que, para o Quilombo, a capoeira significa libertação, e mantém viva a essência que a fez nascer. “Ela foi criada dentro da senzala, com o intuito de lutar contra o opressor. Ela é feita assim até hoje dentro do próprio Quilombo dos Machado.” Para aqueles que supõem que a capoeira é uma dança ou só uma expressão, Jamaika enfatiza que não. Para ele, a capoeira é, antes de tudo, uma luta. “Todos os dias é uma ginga, a nossa caminhada é uma ginga, todo dia eu tenho que saber quando atacar e quando defender. O canto dela é expressivo, o canto dela também é de luta. Eu estou falando da minha vida, alertando sobre o que está acontecendo no sistema como um todo”, narra.
Jamaika conta que por conta da pandemia as rodas de capoeira estão suspensas há mais de dois anos, mas diz que quer retomar. “Em 1995, eu comecei a capoeira Angola [que se aproxima mais da capoeira primitiva, onde os movimentos são mais lentos e cadenciados e são executados próximos ao chão]. De lá pra cá, ela foi fundamentalizada e, a partir disso, começaram a aparecer mais angoleiros.”
Dentro dos projetos culturais, a comunidade recentemente ganhou um edital, onde foi possível a compra para a montagem de uma orquestra de berimbaus. Também cita a dança do maculelê. Com base na cultura afro-indígena-brasileira, a dança simula uma luta tribal usando bastões, onde sua origem é ligada às fazendas de produção da cana-de-açúcar na época do Brasil Colônia. “É quase que nem a capoeira, mas é a dança das madeiras”, explica Jamaika.
Desenvolvimento humano no território
No Quilombo dos Machado foi pensado um banco de alimentos voltado à alimentação de pessoas em situação de rua, além de uma cozinha solidária que está sendo construída. A Geloteca, que homenageia Moa do Katendê, integra um projeto de leitura. Jamaika explica que são realizadas rodas de leitura para as crianças, com livros de autoria de escritores negros que expliquem a importância do Quilombo e do se aquilombar.
“Um projeto que ainda está em pauta é o de ensinar português para os haitianos. E eles, o crioulo - primeira língua oficial da República do Haiti - pra gente. São vários projetos que a gente vai montando para que a comunidade se fortaleça cada vez mais”, comenta Jamaika.
Em busca do reconhecimento
Para as comunidades quilombolas, obter o título de posse de seus territórios é essencial para a preservação de suas culturas e de seus modos de vida. Para dar entrada no pedido de titulação, é preciso passar por algumas etapas: em um primeiro momento, é necessário retirar na Fundação Cultural Palmares, entidade vinculada ao Ministério da Cultura (MinC), uma certificação na qual a comunidade se autorreconhece como remanescente quilombola. A partir desse documento, o processo pode ser aberto no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Em seguida, um estudo antropológico deverá ser realizado e incluído no chamado Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTIDl), apresentando levantamento fundiário, memorial descritivo e cadastramento das famílias quilombolas. É nessa etapa que o Quilombo dos Machado se encontra atualmente. “Estamos com um antropólogo, já fizemos o laudo histórico e tem todo o mapeamento da geografia ainda. Estamos nesse processo burocrático que o Incra pede”, comenta Jamaika.
Com a posse de suas terras, os quilombolas passam a ter direito de acesso a um conjunto de programas do governo federal voltados à melhoria das condições de vida das pessoas que vivem em Quilombos no Brasil. Sem a titulação, o cenário remonta ao período colonial, tornando os territórios alvos de conflitos.
Em 2020, o Tribunal Regional Federal da 4ª região, suspendeu a reintegração de posse movida pelo senhor Celso Nunes Xavier, em nome da Real Empreendimentos, uma das maiores imobiliárias da Capital, e de acordo com Jamaika, que seguem conflitando com a comunidade. A empresa alega ser proprietária do terreno e entrou com a ação em 2018.
Ao percorrer o Quilombo, o líder comunitário mostra a abertura de uma avenida que está sendo feita próxima à comunidade. “Vocês imaginam a opressão que a gente sofre pra tirar a gente daqui, imagina o que não vale isso aqui por metro quadrado”, aponta, citando como exemplo o episódio envolvendo a Vila Nazaré, vizinha do Quilombo.
A importância da mobilização e articulação
Integrante da Articulação Nacional de Quilombos e da Frente Quilombola do RS, Jamaika atua continuamente com outros Quilombos do estado e até mesmo com os de outras regiões do país. De acordo com ele, são nesses encontros que a realidade e as particularidades de cada território são percebidas em sua real dimensão.
“Eu viajo por vários locais e vou vendo a situação do pessoal por aí. Aqui, a gente tem um grande problema que é a especulação imobiliária, em que grandes empreendimentos entram dentro dos territórios. Se pegar mais para o lado do Interior, para outros locais do país, vai encontrar os jagunços, o agronegócio, os latifundiários, os garimpeiros”, expõe. Entre os estados visitados por ele estão Rio de Janeiro, Brasília, Goiás, São Paulo e Mato Grosso do Sul. Além disso, neste ano, Jamaika conheceu a Teia dos Povos e Comunidades Tradicionais do Maranhão.
Ao falar da atuação dos movimentos quilombolas, ele destaca que a Frente tem um papel importante dentro dos Quilombos urbanos. Para Jamaika, Quilombo significa luta por liberdade. “O Quilombo foi um dos primeiros processos de libertação, da gente dizer chega pro racismo, chega pra escravidão, chega pra tudo. É através do Quilombo que hoje estamos aqui, por causa dos nossos ancestrais. Se a gente está aqui dizendo que é Quilombo, que é quilombola, foi por causa da origem dos nossos ancestrais. Foram os pretos velhos de dentro da senzala que deixaram [o Quilombo] para nós nos libertarmos.”
Nas palavras dele, “todos os negros do Brasil são quilombolas, só o que falta é procurarem as suas raízes, fortalecer aquilo que é seu”.
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Edição: Katia Marko