“(...) Ao pobre, tudo é proibido/ Aos ricos, tudo é permitido!” (In: “A internacional”, hino da A.I.T.)
A importância das dinâmicas dialéticas na realidade é conhecida desde a Antiguidade, como visto a partir de Heráclito de Éfeso. O pensamento moderno, sobretudo a partir de Hegel, Feuerbach e Karl Marx, realçou a capacidade explicativa da análise dialética. E especialmente o campo dos fenômenos políticos é propício a considerações úteis sobre as contradições na práxis da sociedade – das contrariedades tópicas aos antagonismos estruturantes – e sobre as sínteses possíveis.
Observa-se que, neste marco da modernidade, a estrutura emblemática do Estado constitucional é sempre, num certo aspecto, de partido único. Isto no sentido largo de que, para assumir os mandatos obtidos nas eleições, as representações de qualquer partido precisam jurar a Constituição.
O que chamamos de “partidos” são, assim, agremiações concorrentes que acentuam este ou aquele aspecto, esta ou aquela interpretação da Constituição – o que pode resultar em diferenças consideráveis na prática governamental e em seus efeitos para a sociedade, sobretudo para a classe trabalhadora e as maiorias que necessitam de políticas públicas. Diferenças que, em momentos socioeconômicos e políticos como o atual, fazem com que o que seriam simples alternâncias partidárias em governos constitucionais assemelhe-se a trocas de regime, seja na América Latina ou até mesmo na potência global mais próxima, os EUA.
No caso presente dos quadros políticos brasileiro e rio-grandense-do-sul, por óbvio correlacionados, tem-se uma contrariedade já observada em outros momentos. Quando, nos anos 90 do séc. XX, o neoliberalismo governava no âmbito federal, posições não-neoliberais ou antineoliberais aqui predominavam, com seguidas votações majoritárias em Lula e governos baseados ou na direita tradicional (Jair Soares), na centro-esquerda de Collares ou na esquerda com Olívio Dutra. Já sob os governos federais de Lula e Dilma deu-se o oposto, com a exceção do governo Tarso Genro (2011-14). E, agora, quando as projeções apontam para uma nova vitória nacional de Lula, indicam, para o RS, uma tendência maior para o neoliberalismo privatista de Leite e/ou a extrema-direita bolsonarista!
A abordagem explicativa aqui esboçada recorre à síntese de Silvano Belligni¹, da Universidade de Turim, sobre as frentes populares. A hipótese é a de que Lula estaria conseguindo, no plano nacional, uma frente popular ampla, antifascista, com elementos progressistas da burguesia, configurada na chapa com Alckmin – hoje no PSB, mas mais ligado à centro-direita democrática. Ao passo que, no RS, diferentemente, estariam se configurando, à luz daquela referência, “frentes de esquerda” – que parecem priorizar a luta antissistêmica e não a antifascista – e que realçam suas próprias diferenças histórico-programáticas, num ambiente fragmentado e concorrencial: uma através da federação partidária PT-PCdoB-PV, já consolidada nacionalmente, e outras duas, com contatos anunciados: a nucleada no PSB e outra no PSOL. Isto para ater-se às mais referidas nas pesquisas de intenção de voto.
Quase que numa antecipação de posicionamentos ante um futuro governo Lula – o qual estaria com a eleição praticamente assegurada, em se tratando de um pleito conduzido nos marcos da normalidade – dinâmica que, porém, Bolsonaro busca evidentemente perturbar, com provocações de caráter golpista. Por outro lado, numa ótica estrutural, não se trata de uma pequena disputa local. É certo que os partidos brasileiros, na atualidade, têm, legalmente, caráter nacional. Mas a relação com as seções estaduais tem sido a tônica, neste pleito, na construção da rede de apoios às candidaturas nacionais.
De modo que “Roma falando, causa encerrada”: assim que as direções nacionais decidirem, os arranjos finais estarão dados. Formalmente, pelo menos. Mas, além do engajamento entusiasmado, ou não, à solução centralizada, permanecerá, entre outras, a questão específica da política estadual. A qual, num país gigantesco como o Brasil, é também de uma dimensão massiva. Veja-se que a população do Rio Grande do Sul equivale à soma das populações da Bolívia e do Paraguai. E no estado estão duas fronteiras internacionais importantes para o Brasil e o Mercosul – com a Argentina e com o Uruguai. Aliás, a Região Metropolitana de Porto Alegre é tão populosa quanto a República Oriental. Logo, uma vitória da esquerda na eleição estadual é relevante para os interesses das maiorias brasileiras e para o avanço da política democrático-popular.
A unidade da esquerda nesta eleição estadual daria, portanto, uma mensagem importante no sentido da solidariedade que será necessária para a reconstrução do país – e do estado – após os governos da extrema-direita e de seus apoiadores ultra-neoliberais e/ou iliberais aqui no estado. Seria uma síntese avançada, uma contribuição prática mais poderosa à elevação da consciência de classe, neste momento, por certo, que a trazida pelo mais amplo dos detalhamentos programáticos – sempre importante, também. E, sobretudo, uma contribuição decisiva à vitória e à governabilidade do novo governo Lula – o qual configurará, em si mesmo, um marco para a democracia popular no mundo. O que não é pouco para os interesses de toda a classe trabalhadora atual.
Alguém já disse que os povos não temem os sacrifícios – e os exemplos do Quilombo dos Palmares, da Guerra Guaranítica, da Comuna de Paris e da batalha de Stalingrado o demonstram sobejamente. Sempre fica o avanço no aprendizado, que é o que há de mais valioso para os trabalhadores na luta de classes. O que os povos não toleram são os sacrifícios à toa. E todo o esforço pela unidade democrático-popular, neste momento dramático, com certeza vale a pena!
¹ BELLIGNI, Silvano. Frente popular. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Brasília, UNB, 1986.
* Professor de Filosofia, doutor em planejamento regional e urbano
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira