Rio Grande do Sul

Coluna

Porto Alegre e a urgência de políticas transgressoras em Saúde

Imagem de perfil do Colunistaesd
"Ocupações como da Vida Nova, na Restinga, demonstram como a resiliência e a resistência resultam em sabedoria para o cuidado das comunidades" - Foto: Maurício Polidoro
Atuar e fortalecer os conselhos municipais é oportunidade de mobilização na busca da justiça social

Gostaria de convidar as pessoas leitoras a pensarmos como ultrapassar o panorama que nos circunda em Porto Alegre, marcado pela precarização da saúde, pelo déficit habitacional, pelos problemas de mobilidade urbana, pelo desemprego, pela crise econômica e pelas questões de infraestrutura. A proposta de transgredir aqui não é uma violação ou contravenção, mas um vislumbre de uma outra cidade.

O senso comum sinaliza que uma sociedade que goza de boa saúde é aquela que não possui doença. Essa visão reducionista do conceito de saúde foi atualizada pela Organização Mundial da Saúde em 1947 quando introduziu a definição de saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença”.

Os avanços políticos e sociais andaram, muitas vezes, lado-a-lado na construção de novas epistemologias naquela direção. Tanto a reforma sanitária como a reforma urbana, na década de 1970, foram movimentos transgressores que reivindicavam a construção de uma nova realidade de direitos, materializada na Constituição de 1988.

O reconhecimento dos determinantes sociais de saúde como paradigma explicativo do processo de saúde-doença que, por sua vez, representou um rompimento teórico na Saúde Pública, amparou o discurso dos sanitaristas que desde os anos 1970 defendiam que as condições socioeconômicas, culturais e ambientais se entrelaçam de maneira complexa e indissociável das redes sociais e comunitárias dos sujeitos e dos grupos sociais. Assim, o estilo de vida das pessoas, a idade, o gênero, a raça/cor, a etnia, a orientação sexual, a classe, as deficiências, a religião, o local de moradia e os fatores hereditários contribuem sobremaneira para compreendermos o processo de saúde-doença. A intersecção desses fatores nos apoia para explicar como a população nasce, vive e morre.

Em Porto Alegre a produção do espaço urbano se deu, historicamente, baseada numa rígida divisão de classe e raça. Isto se transladou para a atualidade. Segundo informações do Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e do ObservaPOA, os bairros mais ricos e centrais da Capital são aqueles que concentram a população branca e excelentes indicadores em saúde. O mapa da distribuição racial evidencia essa paisagem.

O bairro Bela Vista, segundo dados do Censo, possuía em 2010, 2,79% da sua população total residente de autodeclarados(as) negros(as). Neste bairro, 0,18% dos responsáveis pelos domicílios eram analfabetos (2010). As crianças nascidas de mães com baixa escolaridade eram 3,2% em 2012.

Um pouco mais de 10km em direção a região Norte da cidade de Porto Alegre, no bairro Mario Quintana, o total de pessoas autodeclaradas negras era de 38,6%. Os responsáveis pelos domicílios analfabetos totalizavam 6,52% e as crianças nascidas de mães com baixa escolaridade, 35,21%.

Poderíamos continuar com as comparações com a certeza de encontrar mais disparidades: no Moinhos de Vento (2,56% de autodeclarados negros) as pessoas analfabetas responsáveis pelos domicílios eram de 0,09% enquanto, na Restinga (38,5% de residentes negros), 4,46%. No Moinhos de Vento, as crianças nascidas de mães com baixa escolaridade eram 4,26%; na Restinga, 30,11%.

O aporte teórico dos determinantes sociais de saúde contribui para refletirmos sobre como cada sujeito nasce, vive e morre nesses bairros. É possível afirmar que as diversas barreiras que fazem parte do cotidiano das pessoas que residem em bairros como Mario Quintana e na Restinga constituem inequidades, tendo em vista a vida daquele(as) que moram no quadrilátero mais rico da capital gaúcha.

A precarização do trabalho e do acesso aos serviços como o de saúde afeta sobremaneira as pessoas pobres e periféricas. Aqui em Porto Alegre, as políticas ultraliberais intensificadas nos governos desde a gestão de Nelson Marchezan Jr. (2017-2021) desempenham um papel preponderante na rotatividade de profissionais de saúde e do funcionamento dos serviços de saúde da Capital.

Em um estudo inédito que será publicado em 2023 (Polidoro, M.; Bairros, F.; Meneghel, S.; Rainone, F.; Canavese, D. Disparidades espaciais e em saúde entre brancos e negros em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Cadernos de Saúde Coletiva. No prelo. 2023), verificamos a partir de dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), também disponíveis na Biblioteca Virtual da Atenção Primária à Saúde, que a taxa de HIV/Aids na população negra, em 2019, foi quase 4 vezes maior em relação a população branca. Enquanto a taxa a cada 100 mil habitantes para os negros foi de 320,18 para a população branca o valor foi de 93,18.

As disparidades também foram identificadas no agravo da sífilis no mesmo ano: 162,98 a cada 100 mil habitantes para população branca e 435,56 para população negra. No extremo sul da Capital, o risco de uma pessoa negra ter HIV foi 6,71 maior comparado as pessoas brancas residentes na mesma região.

Estes dados, que poderiam ser explorados para outros agravos como covid-19, diabetes, hipertensão e obesidade revelam a necessidade de construção de políticas transgressoras e inclusivas, que considere a integralidade como princípio e a inequidade como uma lente para interagir com as realidades.

Assim, a transgressão que aqui aponto é a urgência de romper com o processo de terceirização galopante que provoca a volatilidade de profissionais nos serviços de saúde, a precarização dos processos de trabalho e afeta o vínculo dos serviços de saúde com o território e a complexidade da vida.

No caso dos territórios quilombolas, negros e pobres, as barreiras impostas pelo racismo estrutural e institucional reverberam nas condições de saúde e moradia da população. Aqui, a urgência da transgressão é de romper com a violência colonial e incorporar a história e o conhecimento tradicional desta população na gestão da cidade e como alternativa para a promoção da saúde.

A história de Porto Alegre nos mostra que as empreitadas segregantes e gentrificantes dos especuladores imobiliários e da Prefeitura à luz da máxima "remover para promover", que marcou a construção de alguns dos bairros que aqui mencionamos, foram insuficientes para aniquilar a força viva do saber tradicional. Os quilombos como da Família Silva e do Fidélix e ocupações como da Vida Nova, na Restinga, demonstram como a resiliência e a resistência resultam em sabedoria para o cuidado das comunidades.

Estas transgressões não são um sonho distante ou só utopias, tampouco infrações, delitos ou crimes. Vale compartilhar o pensamento que para alcançar a materialidade das transgressões, no que tange uma saúde e uma cidade que queremos, estará em breve mais próximo da nossa realidade. Isso se dará a partir das nossas escolhas e da nossa participação. Atuar e fortalecer os conselhos municipais agora e, em breve, as eleições, são oportunidades de mobilizações que nos permitirão a justiça social.

* Maurício Polidoro é geógrafo, pós-doutor em Saúde Coletiva. É professor do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (Campus Porto Alegre) e do programa de pós-graduação em Saúde da Família da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É pesquisador do Observatório das Metrópoles (Núcleo Porto Alegre).

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko