Rio Grande do Sul

Coluna

Não é o falo é a fala

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"A gente não precisa de falo para ter força, a gente precisa de visibilidade nas nossas falas, nas nossas existências" - Foto: mariam pessah
Não só não nascemos feministas, como temos que ir nos desconstruindo passo a passo e dia a dia

Sou escritora feminista, ou, uma feminista que escreve e pensa, sempre que possível, desde este lugar. Um dos meus trabalhos é fazer traduções, mas não só entre línguas, também a uma linguagem não sexista e não binária.

Lembro, quando na década de 1990, eu recém me aproximava do movimento feminista − ainda em Buenos Aires, minha cidade natal − e comecei a participar da Urdimbre de Aquehua. Era um grupo liderado pela antropóloga e teóloga feminista Safina Newbery. Na época, ela teria uns 70 anos de idade e fazia questão de que todo texto − escrito no grupo −  burlasse a norma patriarcal, não estávamos ali para sermos boas alunas do sistema opressor. Foi meu primeiro contato com a visibilidade de um nosotras/os. Outro mundo era possível.

Na época eu ria. Achava engraçada essa “repetição”, desnecessária. Como aprendiz no sistema patriarcal, eu reproduzia e achava que o masculino me contemplava. O sistema nos ensina, a força da repetição, que nós, mulheres e dissidências, fazemos parte do genérico masculino. Tempo todo fazemos a tradução, ao ler uma frase, para entender se estamos ou não incluídas/es, se se trata (também) de nós. 

Não só não nascemos feministas, como temos que ir nos desconstruindo passo a passo e dia a dia. São tantas as realidades que precisamos enxergar, por estarem escondidas, que é normal que existam diferentes níveis. É como tudo, uma vez que vamos entrando, vamos acostumando o olhar e enxergando verdades que outrora não imaginávamos. É como quando começamos a exercitar o nosso corpo, depois de uma hora na academia, ou, de uma longa caminhada, vamos sentir músculos que nem imaginávamos que existissem, mas se continuarmos fazendo exercício, vamos modificar o nosso corpo e nos sentirmos mais flexíveis. Então, quando a gente começa a se sensibilizar e a fazer o exercício, não de duplicidade, mas da unicidade e de visibilidade, começa a enxergar os outros mundos possíveis.

Dias atrás recebi um áudio por WhatsApp de uma pessoa não binária. Me contava da emoção que sentiu lendo um texto e vendo a letra E num contexto da pessoa estar grávida. Tu vê, mariam, me dizia quase chorando, é possível estar grávide.

Então, eu me nego a chamar o artigo E de neutro. Antes fosse! Por que é que foi censurado seu uso nas escolas? Por que os governos da Prefeitura de Porto Alegre e de Buenos Aires proibiram seu uso? Coincidentemente, duas prefeituras que, atualmente, estão governadas pela ultradireita. Toda ameaça e proibição é política.

Pensemos. A direita luta bem menos pelos direitos das mulheres e dissidências que os governos e as populações de esquerda. Atualmente vimos como as mulheres e meninas estão sendo perseguidas por abortar, fazendo uso de um direito que existe no Brasil desde a década de 1940, porque há 3 casos em que o aborto sim é legal neste país. Quando a linguagem nos invisibiliza, vá criando pessoas de autoestima baixa, pessoas que não se reconhecem, não se encontram em outras. E como “sempre” foi assim, achamos isso normal.

Não é normal.

Não estar presente em uma fala não é normal. Não sermos nomeadas/es, não é normal. Falar em elas, eles, elus é o novo normal. Senão, estaremos sendo coniventes com a violência estrutural. A gente não precisa de falo para ter força, a gente precisa de visibilidade nas nossas falas, nas nossas existências.

Como sou argentina, nunca falta quem me explique que “aqui no Brasil” o genérico contempla às mulheres. Nesses casos lembro sempre da minha amiga Teresa, uma feminista espanhola que tem uma risada muito contagiosa e diria entre gargalhadas, que pouco criativos são esses homens, dá para ver que todos foram educados na mesma escola do patriarcado. Todos têm a mesma resposta ou comentário e todos querem nos explicar. Já o diz Rebeca Solnit no livro Os homens explicam tudo para mim.

Quero fechar este raciocínio dizendo que não é uma questão de idade. Safina tinha 70 anos 30 anos atrás. Hoje teria 100. É uma questão política. É uma questão de existência, de fazer parte, de enxergar, de ver que não somos todxs iguais. E utilizo de propósito o X, porque acredito que temos muito ainda para pensar e resolver sobre gêneros. O género continua sendo um dos x da questão na nossa sociedade.

* mariam pessah : poeta, escritora, tradutora. Autora de Em breve, tudo se desacomodará, editora Bestiário 2022. Organizadora do Sarau das minas/Porto Alegre e da Oficina de escrita e escuta feminiSta.

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko