Já são quase 50 processos movidos contra jornalistas, cartunistas e outros críticos pelo empresário Luciano Hang. São as contas da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji). Outro cálculo, da Folha de S. Paulo, aponta que, apenas no Tribunal de Justiça de Santa Catarina, estão 26 ações movidas pelo dono da rede Havan. Ele abriria, em média, um processo por semana. Muitas vezes, os processados pertencem à imprensa alternativa que não possui uma retaguarda jurídica, como ocorre na mídia empresarial, apta para assumir a resposta a ações judiciais que exigem indenizações de alto valor. O que cria imensas dificuldades para os alvos escolhidos.
Um dos processados é o jornalista Moisés Mendes, colaborador do Extraclasse, jornal do Sindicato dos Professores do Ensino Privado/RS, além de manter seu blog e de marcar presença em vários sites, entre os quais Brasil247 e DCM. Integrante da Comissão de Liberdade de Imprensa da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), ele relata a barra que está enfrentando e dá a sua versão dos acontecimentos. À parte, comenta a escalada do fascismo como expressão política no Brasil de Bolsonaro e o terreno fértil encontrado na mentalidade da classe média pelas ideias da extrema direita.
Acompanhe:
Brasil de Fato RS - A exemplo de muitos jornalistas, estás também sendo processado pelo empresário Luciano Hang que, no popular, é mais conhecido como Véio da Havan. A que se deve o processo?
Moisés Mendes - São três ações por causa de dois textos. Uma ação, impetrada em setembro contra mim e o DCM, considera ofensivo um texto que publiquei em outubro de 2019. Escrevi que não há como comparar o autoproclamado Véio da Havan com Mario Amato, líder empresarial da direita nos anos 80 e 90. No mesmo texto, cito uma definição do cantor Marcelo D2, que se refere a Hang como “gnomo sonegador”. O cantor, também processado em outra ação, já havia sido absolvido no ano passado. Eu e o DCM também fomos absolvidos em maio deste ano em primeira instância, em nome da liberdade de imprensa e de expressão.
Sugeri que ele abrisse uma loja com estátua da liberdade em Cabul
BdF RS - Existe outra audiência marcada para julho. É o mesmo processo ou outro?
Moisés Mendes - Essa é uma queixa-crime por injúria, que corre em Porto Alegre, porque sugeri, em outro texto, de agosto do ano passado, que o Véio abrisse uma loja com estátua da liberdade em Cabul. Nesse artigo, abordo a imposição do poder econômico pelo empresário, que sempre desqualifica os discordantes, e pergunto se ele pensa que tudo e todos podem ser comprados. É uma pergunta superlativa, como tudo que ele faz, mas não acredito que ele ache que possa mesmo comprar tudo, inclusive áreas sob alguma forma de proteção ambiental ou histórica.
Ele achou o texto ofensivo e que a pergunta induz a pensar em outras coisas. Não há outras coisas. O que há é a imposição do poder que ele tem porque é milionário e pensa que seus projetos devem passar por cima de todos os outros interesses de uma cidade. Esse mesmo texto foi usado por ele para uma ação civil por danos morais, que tramita na comarca de Brusque, onde ele vence todas as ações, segundo levantamento do UOL.
Os juízes sabem que o seu modus operandi é o da agressividade
BdF RS - Na próxima audiência, se tiveres oportunidade de te manifestares perante o juiz, o que dirás?
Moisés Mendes - A audiência em Porto Alegre, do segundo processo, é de uma queixa-crime por injúria. Será dia 18 de julho e eu terei a chance de me defender. Vou dizer o que está no processo. Que todas as falas e atitudes do empresário são sempre no sentido de defender o projeto dele e o direito dele de comprar e vender, desprezando outros direitos e questões históricas, culturais e urbanísticas das cidades em que boa parte da população rejeita suas lojas com réplicas grotescas da estátua.
Ele agiu assim em Rio Grande, ocupando uma área sob investigação por ter sido sítio arqueológico, e foi depois liberada (o conflito motivou a exoneração de toda a direção do IPHAN por Bolsonaro, que confessou estar defendendo Hang), em Pelotas (ele ocupou uma área protegida por lei do Hipódromo da Tablada e conseguiu mudar a lei na Câmara), em Canela (grande parte da cidade não queria a estátua), e em Santa Maria (onde agrediu a UFSM, referindo-se às universidades federais como formadoras de zumbis). São apenas quatro exemplos de dezenas de casos em todo o país.
Os juízes sabem que o seu modus operandi é o da agressividade, do discurso do ódio e da arrogância. O problema é saber se ele continuará tentando usar o Judiciário para cercar quem considera inimigo. Os juízes vão deixar?
BdF RS - Luciano Hang abre um processo por semana contra seus críticos, segundo apurou a Folha de S. Paulo. Apenas junto ao Tribunal de Justiça de Santa Catarina foram 26 processos em 2022. No ano passado, foram 38 ao longo do ano. Que nome darias a este modo de agir?
Moisés Mendes - Já está consagrado, não só no caso dele, que essa é uma estratégia de quem tem poder econômico. Apresenta ações em toda parte, porque não está preocupado se vai ganhar ou perder, e constrange os jornalistas. Perder ou ganhar é do jogo desse tipo de gente, que não se preocupa com custos e tem advogados à disposição.
O nome disso é assédio judicial, com muitos exemplos no Brasil. Mas parece que o Judiciário já se deu conta de que eles querem usar a Justiça como uma extensão do seu negócio e do poder econômico, do poder de quem tem dinheiro e só pensa em comprar e vender. O Ministério Público sabe, e os juízes também sabem.
BdF RS - Como Hang é um homem muito rico pode se dar ao luxo de fuzilar judicialmente toda e qualquer crítica que receba, disseminando processos pelo país. Passa a impressão de que, no Brasil, quem tem o poder econômico é capaz de tolher qualquer questionamento a sua figura ou as suas atitudes. Se a moda pega, os jornalistas só poderão criticar quem é pobre...
Moisés Mendes - Há pelo menos o aumento das redes de proteção aos jornalistas ameaçados por essa gente. A OAB criou uma comissão pela liberdade de imprensa, para defender jornalistas processados pelos poderosos, e temos outros exemplos, como o Instituto Tornavoz, liderado pela advogada Taís Gasparian, em São Paulo, com o mesmo objetivo. E a Associação Brasileira de Imprensa, agora liderada por Octávio Costa e Regina Pimenta, fortaleceu sua Comissão de Liberdade de Imprensa. Com muita honra, fui um dos escolhidos pelos colegas jornalistas para fazer parte dessa comissão. Temos de volta a ABI de Barbosa Lima Sobrinho.
O assédio judicial aos jornalistas faz parte dessa estratégia de cerco
BdF RS - Um levantamento da Federação Nacional dos Jornalistas, a Fenaj, indica que, de 428 ataques a jornalistas, Bolsonaro sozinho foi responsável por 147. Há quem ache que, tirando-se as torturas e mortes, o ambiente criado a partir do Palácio do Planalto é mais nocivo para o jornalismo do que o próprio período ditatorial. Qual a tua opinião?
Moisés Mendes - Essa comparação é sempre complicada. Dizem: ah, mas na ditadura torturavam e matavam. É um comentário sempre infeliz, como se a repressão e as caçadas policiais nas vilas, sob as ordens do fascismo civil, não torturassem e matassem negros e pobres todos os dias. O certo é que o fascismo como expressão política hoje é mais disseminado na sociedade, muito mais do que na ditadura. O nosso vizinho fascista (eu tenho alguns) não teme ser fascista. O assédio judicial aos jornalistas faz parte dessa estratégia de cerco a quem contraria o projeto da extrema direita no poder.
Os maiores perseguidos por ações na Justiça são jornalistas sem suporte dos grandes grupos
BdF RS - Um ponto interessante de contato entre os dois períodos é que, sob a ditadura, não foi a chamada grande imprensa, com algumas e pontuais exceções, que mais peitou o regime. Foi, quase sempre, a imprensa alternativa. Hoje, dá para dizer que, excetuadas as Organizações Globo e a Folha de S. Paulo, a oposição mais persistente a Bolsonaro parte dos sites e publicações alternativas. Só os alternativos, tocados não por empresários mas por jornalistas, é que estão vendo a tragédia?
Moisés Mendes - A grande imprensa foi declarada inimiga por Bolsonaro. Se não fosse, seria aliada do projeto político e econômico do sujeito, criticando apenas as questões das áreas da cultura e dos costumes. Mas os maiores perseguidos por ações na Justiça são os jornalistas sem o suporte dos grandes grupos. As ações na Justiça tentam pegar quem não tem advogados de corporações e nem dinheiro para ficar pagando advogado durante anos. O objetivo é calar o jornalismo considerado alternativo (o DCM tem vários processos do Véio) e os jornalistas que ainda tentam enfrentar esse poder do dinheiro.
Subestimamos o alcance e a disseminação da extrema-direita entre a classe média
BdF RS - Em algum momento, lá por 2015, imaginarias que passaríamos pelo que estamos passando hoje?
Moisés - Não. Eu me incluo entre os que subestimaram o alcance e a disseminação da extrema direita entre a classe média. E também subestimei o poder que eles têm de se apoderar das estruturas institucionais, o que inclui parte do Judiciário. Temos todos os dias casos em que as decisões da Justiça são claramente identificadas com a ideologia dessa gente. O que o Judiciário precisa ver é que ações como as do Véio da Havan estão no contexto do projeto da extrema direita. Ele é declarada e assumidamente ativista político desse projeto. E é uma figura pública, mesmo que não tenha mandato.
O Supremo já definiu que figura pública sujeita a críticas, por mais pesadas que sejam, não pode ficar se queixando de que entrou na esfera pública e foi questionada com certo rigor. O ministro Dias Toffoli foi muito claro a respeito do direito à crítica “mordaz, irônica, severa e impiedosa”, ao absolver o jornalista Luis Nassif em ação do próprio Hang. Alguém que, como faz o Véio da Havan, atua na esfera pública em defesa de ideias, por piores que sejam, sabe que não participa de uma conversa de comadres. O interessante é que ele, sempre no ataque, apresenta-se como defensor da liberdade de expressão. Mas deve ser o recordista de ações na Justiça contra jornalistas.
O Judiciário saberá, em algum momento, conter essa gente, em nome de quem de fato defende as liberdades. A Justiça não é ou não poderia ser uma extensão das empresas dos poderosos.
BdF RS - Uma última questão: há outra polêmica aqui em Porto Alegre envolvendo Hang...
Moisés Mendes - Precisamos lembrar que uma obra dele que foi embargada em Canoas, por mais uma suspeita de dano ambiental, na última área arborizada da cidade. E que há em Porto Alegre um imbróglio que precisa ser esclarecido, que é o pagamento pela prefeitura de R$ 1,7 milhão à Havan, para o plantio de árvores no entorno da loja na zona norte. É um caso que não se encerra com a suspensão do pagamento, por ordem do TCE. É preciso saber que história é essa. Como o município paga pela reparação de dano ambiental a quem provocou o dano? Ou não é nada disso? Precisamos saber. É um caso estranho. Os promotores, os procuradores e os juízes estão desafiados a desvendá-lo. Prefeitura, MP e Justiça saberão nos dar uma explicação.
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Edição: Marcelo Ferreira