Rio Grande do Sul

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A primavera será feminista

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Lara Werner volta a Porto Alegre depois de um ano da tentativa de feminicídio para evento na Câmara Municipal de Vereadores - Arquivo pessoal de Thaís Hipólito
E como vamos nos fortalecendo? Provocando as nossas coragens? Com acolhimento, vínculos e lutas

Este é o terceiro texto de uma série de escritos a partir do encontro entre uma escutadora e uma sobrevivente de feminicídio, cujos vínculos se deram a partir do programa de extensão Clínica Feminista na Perspectiva da Interseccionalidade da UFRGS.


“Mãe, se você não morreu naquela parada, tem que viver. Viva.”

Essas sábias e imensas palavras são ditas para mim pela minha filha de 15 anos. São mais que palavras: expressam a faceta de quem também sobreviveu à tentativa de feminicídio da própria mãe. Pois não são apenas as mulheres que passam por isso, mas seus filhos, familiares, amigos. Nós sobrevivemos ao risco de nosso desaparecimento desse mundo pelas mãos egoístas e descontroladas do machismo e do patriarcado, cotidianamente.

Apenas sobreviver não basta - é o que temos dito a nós mesmas em nossos círculos de cuidado, mas escutar as palavras da Kimberly é um aporte de oxigênio, e não tem como deixar de viver após escutá-las. 

Cicatrizes. Como viver com elas. Esse é um dos temas recorrentes em nossas conversas, em casa com minha filha, na Clínica, com as outras mulheres com quem vamos nos encontrando para dar conta dessa jornada. Temos medo, mas também temos coragem. E isso é ainda maior que os muitos medos que sentimos. 


Pañuelo blanco sobre fondo negro. Memoria, Verdad y Justicia. Son 30.000. El Fantasma de Heredia - 1913/2020 / Reprodução

E como vamos nos fortalecendo? Provocando as nossas coragens? Despertando os sentidos nas palavras que dizemos umas às outras para que se transformem em local psíquico de acolhimento, de vínculo, repouso, e também combustível para as nossas lutas. Quais palavras - e como são ditas - carregam o poder de nos impelir novamente à vida?

No dia 25 de junho, sábado, retornei à cidade onde quase morri assassinada para dar meu testemunho de sobrevivente. A diferença é que a ocasião não era por motivos de investigação policial, em um interrogatório frio e revitimizante, ou a tortura psicológica vivida nas audiências públicas do Judiciário, onde advogados nos maltratam como uma forma institucionalizada de vingança por saberem que seus clientes não serão absolvidos dos crimes pelos quais foram presos em flagrante, ou com provas incontestes - essas palavras, e a maneira como são ditas, nós as conhecemos bem e rotineiramente. 

A razão de ter voltado a Porto Alegre depois de um ano daquele ataque, de ter andado de avião pela primeira vez e superar todos esses medos foi o convite feito pela amiga Giselda, liderança comunitária, pastora e mãe de um rapaz desaparecido há 4 anos e não investigado. É assustador pensar que, no Brasil, cerca de 200 pessoas desaparecem por dia e, em 2021, foram registrados mais de 65 mil casos, sendo que 35% se referem a crianças e adolescentes. 

Assim como o feminicídio, é assustador pensar que vivemos em uma sociedade onde isso, de tão naturalizado, é pouco falado. A amizade com Giselda se desenvolveu após, segundo ela, sentir-se encorajada a falar sobre seu caso a partir dos meus depoimentos. É sobre não sentir vergonha de ter sido vítima de uma violência e reclamar para si o direito de se indignar. Não é um problema pessoal e íntimo, individual, mas um problema social e político que precisa ser encarado e enfrentado de uma maneira muito diferente da que temos visto.

O evento aconteceu na Câmara Municipal, no plenário Ana Terra, e contou com um terço da capacidade prevista. Como disse Giselda, as pessoas fogem de determinados assuntos e talvez viessem, se tivessem sido pagas. Mas quem ali estava sustentou tanto afeto e acolhimento, e ali estavam com tanto respeito por nossas histórias e nossas batalhas que aquele auditório estava cheio do que realmente importava naquele momento. 

Pude encontrar os advogados que cuidam voluntariamente do meu caso, e que através do seu trabalho tentam minimizar as injustiças que o Estado provoca por negligência. Pude encontrar com minha terapeuta-amiga, com quem escrevo esse texto. Pude encontrar e abraçar o rapaz que me socorreu naquela parada de ônibus e salvou minha vida. Pude encontrar com Giselda e somar nossas lutas, na compreensão tácita do horror que é nunca mais vermos alguém que amamos ao voltar para casa. E tirar forças daí, não nos calarmos, e imaginar que uma realidade melhor precisa se materializar. 

* Thaís Hipólito, em diálogo com Lara Werner

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko