Por mais de duas horas, uma audiência pública híbrida debateu os problemas da implantação do modelo de escola cívico-militar no Rio Grande do Sul, nesta segunda-feira (4). Proposto pelas deputadas Luciana Genro (PSOL) e Sofia Cavedon (PT), o evento aconteceu no âmbito da Comissão de Educação, Cultura, Desporto, Ciência e Tecnologia da Assembleia Legislativa. Em clima tenso, diversas vezes foi solicitado respeito pois alguns manifestantes interrompiam as falas dos convidados, em especial as que eram contrárias ao programa das escolas cívico-militares.
Aberta pelo presidente do Colegiado, deputado Beto Fantinel (MDB), a audiência foi conduzida pela deputada Luciana Genro, que explicou que o tema foi uma demanda do 39º núcleo do CPERS Sindicato, através da professora Neiva Lazzaroto. O núcleo é autor de uma ação civil pública apontando inconstitucionalidade do modelo de escolas cívico-militares.
"Eu fiquei bastante preocupada com reportagem de um programa de TV que mostrou o que vem acontecendo nas escolas onde o modelo já está sendo implantado. Um modelo que traz uma visão de civismo bastante autoritária e deslocada da realidade dos estudantes", pontuou a parlamentar. Para ela, o modelo cívico-militar não respeita a autonomia das escolas nem a pedagogia do ponto de vista das necessidades de uma escola democrática e que proporcione uma educação que tenha pluralidade.
Proposto pelo governo de Jair Bolsonaro, o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim) estabelece como diretrizes de gestão os princípios previstos nos colégios militares. A proposta é implantar 216 escolas deste modelo em todo o país, até 2023, sendo 54 por ano. O Pecim é uma iniciativa do Ministério da Educação (MEC), em parceria com o Ministério da Defesa, criado pelo Decreto 10.004. No site do MEC o programa é apresentado com um conceito de gestão nas áreas educacional, didático-pedagógica e administrativa com a participação do corpo docente da escola e apoio dos militares.
Até o momento, de acordo a Secretaria Estadual da Educação (Seduc), a rede estadual conta com 12 instituições selecionadas para o programa, entre elas Alexandre Zattera, em Caxias do Sul, Carlos Drummond de Andrade, em Alvorada, e Oswaldo Aranha, em Alegrete, além de duas no âmbito municipal, localizadas em Bagé e Uruguaiana. Recentemente a escola estadual Visconde do Rio Grande, em Porto Alegre, aprovou o modelo, por mais de 80% de votos.
Audiência marcada por intenso debate
Após a abertura feita pela deputada Luciana Genro, foi a vez do debate entre prós e contra ao modelo das escolas cívico-militares. Além dos palestrantes, manifestantes também ocuparam o espaço. A audiência chegou a ser suspensa, sendo retomada logo em seguida.
Começando o debate, a professora Neiva Lazzaroto, licenciada do núcleo do CPERS, explicou que o seu sindical núcleo foi procurado no inicio de dezembro pela professora Cinthia Bordini, sobre o processo de implementação do modelo na escola Visconde do Rio Grande. "Visitamos a escola quatro vezes, o que levou nosso núcleo a ingressar com uma ação civil pública e solicitar essa audiência”, explicou. Em sua avaliação, as escolas cívico-militares contradizem toda a defesa da escola pública, laica e historicamente defendida pelos educadores e entidades e setores ligados à educação
Ela lembrou que, em setembro de 2019, Bolsonaro emitiu o decreto de criação do modelo, com a “finalidade de melhoria da educação". Contudo, destacou que esse modelo tem a presença de monitores militares aposentados. “Todas as comunidades buscam segurança, mas nós nos perguntamos porque não garantir segurança para todas as escolas e seu entorno? Por que a presença de um monitor que não tenha formação pedagógica como nós educadores e educadoras tivemos. Esse é um dos questionamentos que fizemos”, disse.
Em sua fala reconheceu a violência nas escolas, contudo, salientou que a mesma é fruto, principalmente, do agravamento brutal da crise econômica pela qual passa o país. "Para nós, militar é para cumprir a função de militar, segurança, é para ter segurança para todos. Estamos dando privilégio para alguns das escolas que fazem a adesão", criticou. Ela disse não ser contra recursos como os anunciados pelo programa nacional, porém deve ser para todas as escolas, que sofrem com problemas de infraestrutura, insuficiência profissional e falta de condições pedagógicas adequadas. "Achamos que a escola cívico-militar é um modelo de escola que contradiz todo o espírito constitucional”, acrescentou.
O deputado Tenente-Coronel Zucco (Republicanos), presidente da Frente Parlamentar das Escolas Cívico-Militares, iniciou sua fala destacando que o modelo "não tem partido". De acordo com ele, 40% dos deputados da Assembleia assinaram a criação da Frente. Destacou que o projeto estabelece como requisito prévio a aprovação da comunidade escolar, usando como exemplo o que aconteceu na escola Visconde do Rio Grande. “Em média, cerca de 90% dos país, mães, responsáveis, alunos, diretores, professores e funcionários quiseram a adesão a esse modelo de escola. Ninguém está fazendo nada obrigado”, apontou.
Ainda de acordo com ele, das cerca de 2.400 escolas estaduais, nem 1% estão aderindo ao modelo. Disse que o fundamento da atuação dos monitores é o Proerd (Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência). “Acusação de militarização das escolas cívico-militates, desvirtuando o programa, ensejando que nele emana uma obediência cega, denota preconceito com as pessoas que são militares. Esse programa na verdade é um programa social”, defendeu. Apontou que não há qualquer interferência dos militares no conteúdo programático das escolas. “Queremos ter modelo cívico-militar em todo RS, em todos aqueles municípios que os prefeitos, vereadores, que a comunidade assim desejar”, afirmou.
A diretora da Escola Visconde do Rio Grande, de Porto Alegre, Ingrid Coutinho, confirmou que foi a comunidade escolar que, por votação em assembleia, optou pela implantação do programa de escolas cívico-militares. “Toda vez que a gente fala deste modelo entra a palavra Bolsonaro. Eu sou uma pessoa, no meu individual que não voto no Bolsonaro. Mas no papel que eu estou como diretora eu tenho a obrigação de respeitar a opinião de todos e, principalmente, a comunidade que foi quem decidiu por esse programa”, salientou.
Na sua manifestação, Alex Saratt, presidente em exercício do sindicato que representa os educadores da rede pública estadual, o CPERS Sindicato, ressaltou a completa contrariedade à implantação das escolas cívico-militares. "Esta não é somente uma posição ideológica, mas por outras questões que nos interessam, a começar a pedagógica", destacou, pontuando que a pedagogia é uma ciência social e humana.
Também lembrou de outras iniciativas em curso, como escola sem partido e homeschooling (ensino domiciliar), que mudam no formato mas têm o conteúdo parecido. “Precisamos reafirmar democracia em todos os lugares, porque aqui tem defesa da escola cívico-militar de quem, por exemplo, vota no Congresso Nacional ou na Assembleia Legislativa políticas contra a educação, que retiram verbas, que não pagam o piso, que massacram tanto os educadores quanto os educandos. É muito fácil fazer o discurso do civismo quando, na prática, na primeira oportunidade, atacam a escola pública, os seus trabalhadores e aqueles que dependem, que têm só no serviço público da educação a oportunidade social de desenvolvimento pessoal”, frisou.
O coordenador estadual das escolas cívico-militares, Marcelo Borella, disse que se o programa fosse mesmo inconstitucional, o debate não seria no âmbito da audiência no estado, mas em nível nacional. Afirmou que o projeto encontra respaldo na Constituição Federal brasileira, apontado o artigo 206. Segundo ele, o inciso III respalda amplamente a implementação deste modelo, pois diz que o ensino será ministrado com base nos princípios do pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, com coexistência de instituições públicas e privadas.
Segundo ele, os maiores índices de desenvolvimento da educação básica (IDEBs) estão nas escolas militares. Sobre o projeto, disse que não é militarização das escolas. "O brigadiano está lá com a sua função de monitoria. Ele não precisa ser um pedagogo para ser monitor, se ele fosse dar aula sim", apontou.
Ex-professora da escola Visconde do Rio Grande, Cinthia Bordini, destacou que o projeto não tem base em estudos pedagógicos nem estatísticos. “Só possui fator ideológico e arcaico e é um engodo comparar com colégio militar. As escolas que têm os maiores índices são também as militares e os institutos federais. O que comprovam as pesquisas é que as escolas que recebem mais dinheiro têm os melhores resultados, não estão nesse caso as escolas cívico-militares. Esse projeto persegue quem pensa diferente, eu mesma fui assediada a sair da escola estadual Visconde do Rio Grande, apesar de eu trabalhar na EJA, que não faz parte do programa. Em sete anos nessa escola nunca fui ameaça de exercer minha função”, argumentou.
na sua avaliação, as pessoas estão iludidas com a ideia do que é um colégio militar. “Além de alguns estarem seduzidos pela oferta de uniformes, outros estão pela oferta de R$ 650 mil. Nenhuma escola deve se submeter em troca de verba que já lhe é de direito. 72% dos brasileiros confiam mais em professores do que em militares para atuar em escolas”, apontou.
Durante o debate, o deputado estadual Tenente-Coronel Zucco (Republicanos) saiu da audiência e convidou os manifestantes em defesa do modelo também a se retirarem.
Na retomada da audiência a deputada Sofia Cavedon (PT) destacou as características de uma escola democrática e plural. "Renunciar a esta escola horizontal, democrática, plural, esta escola que não uniformiza, é renunciar à conquista da educação como direito de todos e todas". Para ela, o Estado deve investir na escola pública e democrática, em professores muito valorizados e espaço e tempo de formação.
Por sua vez, o deputado Eric Lins (PL) defendeu a implantação das escolas cívico-militares. Para ele, um dos objetivos do modelo é alcançar novamente a autoridade perdida pelos professores nas salas de aula. "Não há interesse em interferir na pedagogia, pois ela faz parte da liberdade de ensino e da forma do professor ensinar. O que se busca é o objetivo fim, que os professores efetivamente ensinem", disse.
Também se manifestaram a vereadora Comandante Nádia (PP) e o vereador Jonas Reis (PT); o advogado do 39ª Coordenador do CPERS, Jefferson dos Santos Alves; o ex-professor da escola Visconde do Rio Grande Matheus Hernandes; a ex-secretária de Educação de Porto Alegre Esther Grossi; o estudante Pedro Feltin; os professores Felipe Adami, Aline Lemos, da Faced/UFRGS, entre outros.
Assista, abaixo, a audiência na íntegra:
*Com informações da Agência de Notícias da Assembleia Legislativa
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Edição: Marcelo Ferreira