Rio Grande do Sul

Coluna

Por Klara, Adelir e por nós, precisamos falar de violência obstétrica

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"Negar a violência obstétrica, tal como temos visto por distintas instituições e atores sociais públicos, incorre na manutenção das injustiças epistêmicas e, portanto, injustiças sociais" - Reprodução
Sim, precisamos falar da institucionalização da tortura pela via da saúde no Brasil

É preciso que tenhamos o direito de nomear o vivido. Para isso, antes ainda, reconhecê-lo, o que requer elaborá-lo: tornar-lhe memória, matéria de comparações, fonte de sentimentos. Porque sentimentos emergem, e também são intuídos, tateados, reconhecidos.

Fato é que produzimos conhecimento e ciência com os nossos corpos, para além dos nossos corpos. Produzimos nossas próprias vidas e as sustentamos, o que nunca está livre de violências oriundas de outros corpos em relação aos nossos: produzimos, então, as nossas narrativas. Assim se concretiza o direito epistêmico, que se materializa enquanto justiça ao encontrar escuta e interlocução.

Negar sistematicamente a violência obstétrica, tal como temos visto por distintas instituições e atores sociais públicos, incorre na manutenção das injustiças epistêmicas e, portanto, injustiças sociais. Significa dizer que nós, que gestamos e parimos cidadãs e cidadãos brasileiros, não somos capazes de produzir conhecimentos com validade e pertinência jurídica e científica a partir de nossos corpos. Ficamos reduzidas à mera função reprodutiva, como escravas sociais. O conto da aia é uma alegoria distópica que torna inteligível à branquitude o que o fato colonizador foi para indígenas e negras, com muitíssimo mais violência. 

É nesse lugar da subalternidade que são colocados os corpos com capacidade de gestar por dispositivos como as leis antiaborto, leis que criminalizam a violência obstétrica e as que se aproximam do ideal do estatuto do nascituro, pois reforçam uma moral que necessita afirmar-se a partir da desumanização daquelas (e daqueles! porque transmasculinidades também gestam e parem) que, dentro da ordem capitalista, patriarcal e heterocisnormativa, possuem menos direito que o próprio concepto. 

Adelir apenas queria parir em sua última gestação, experiência que lhe fora subtraída nas duas primeiras gestações. Era uma pessoa anônima, uma mulher em seu segundo casamento, estável e feliz, à espera da segunda filha e quarta criança de uma família cigana. Fazia lanches para vender e compor o orçamento doméstico. Tornou-se internacionalmente reconhecida a partir de uma liminar judicial que autorizou a busca, apreensão e condução de seu corpo ao hospital da cidade de Torres, Rio Grande do Sul, onde foi submetida a uma cesariana forçada, já em avançado trabalho de parto, pela colega da médica que a denunciou. O argumento era de que se tratava de gestação de alto risco por conta da saúde mental da mãe, supostamente psicótica, tese defendida por representantes de entidades médicas e televisionado à época, no ano de 2014.

Klara é uma atriz que foi vítima de um estupro e, como muitas mulheres que sofrem um trauma, passou por um estado de negação da violência sofrida. Assim, não imaginou que poderia estar grávida até descobri-lo em idade gestacional avançada, quando optou por entregar a criança para adoção. Foi humilhada pelo médico ao contar-lhe sua decisão, durante o pré-natal, e teve seu direito ao sigilo violado pela instituição onde pariu, pois alguém forneceu informações a um colunista com ainda menos ética do que o profissional que lhe contou. Isso veio a conhecimento quando a atriz tornou público seu relato, que reverberava a tortura psicológica sofrida já no pós parto, quando uma enfermeira do hospital insinuava desde então a publicização de sua história, que ela desejava ter mantido em segredo.

Alyne era uma mulher negra, que morreu 20 anos antes de Klara parir na mesma cidade do Rio de Janeiro, peregrinando em busca de atendimento médico. Mesmo com plano de saúde, foi negligenciada pelos serviços públicos e privados, parindo um feto natimorto e falecendo cinco dias depois de sua primeira internação. Conhecemos Alyne, pois sua morte condenou o Estado brasileiro junto à Corte Interamericana de Direitos Humanos por violação do direito à saúde e, portanto, direito à vida. 

Não sabemos o nome da menina de 11 anos que teve violado o seu direito ao aborto pelo hospital universitário da Universidade Federal de Santa Catarina. Que, dado ao tempo gestacional ao conseguir acessá-lo, tecnicamente podemos chamar de antecipação terapêutica do parto. E seria de resguardo aos direitos humanos dessa criança já tão exposta, que seu sigilo e identidade fossem preservados - já não se aprendeu o suficiente com aquele caso da menina do Espírito Santo?

Não, não aprendemos. No último ano de orquestração do trágico, a deputada estadual Ana Caroline Campagnolo (PL-SC) conseguiu coletar assinaturas suficientes para pedir a abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito na ALESC para investigar o caso. 

Sim, precisamos falar da institucionalização da tortura pela via da saúde no Brasil. 

E precisamos falar de violência obstétrica, por Karla, Adelir, todas, todes e todos nós.


Relato de Klara / Reprodução


Relato de Klara - 2 / Reprodução


Relato de Klara - 3 / Reprodução


Relato de Klara - 4 / Reprodução


Relato de Klara - 5 / Reprodução

* Lara Werner é sanitarista

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko