Somos parte de algo maior, coletivo. Somos a soma da potência de todas as vidas
"Os crus dissabores que eu sofro são tantos,
São tantos os prantos, que vivo a chorar,
É tanta a agonia, tão lenta e sentida,
Que rouba-me a vida, sem nunca acabar".
(Maria Firmina dos Reis)
É interessante pensar como algumas ausências tornam-se presença, para que se explicite a necessidade, por exemplo, de mudança. Semana passada, na primeira aula presencial na UFRGS, em uma matéria eletiva que me encanta, falamos da importância que a ausência das mulheres negras, em um congresso sobre feminismo, acabou significando. Elas se tornaram presença e essa falta evidenciou a necessidade urgente de um movimento que as contemplasse. Também nós, naquela sala de aula de uma universidade pública, éramos presença. Dispostas a pensar sobre a estrada já percorrida por mulheres e homens que se implicaram, que compreenderam suas vidas como parte de algo maior em que todas estamos, de algum modo, envolvidas.
Marielle, Anderson, Amarildo, Bruno, Dom e tantos outros estão mais presentes do que nunca na luta contra a violência imposta aos que insistem em não desistir da humanidade. Morremos um pouco com eles e eles vivem em nós. Essas vidas abreviadas tornam-se símbolos das e dos que resistem e denunciam, pelo nosso futuro. E são tantos.
No dia 18 de abril, a Pastoral da Terra divulgou relatório com dados que assustam: 20 assassinatos em conflitos no campo em 2020; 35 em 2021. Em 2022, já foram contabilizados mais de 15. 80% dessas mortes ocorreram na região da Amazônia. A maioria delas não tem destaque nos telejornais. Não há buscas, entrevistas, comoção. Segundo o mesmo relatório, foram 109 mortes relacionadas, de algum modo, com os conflitos no campo, apenas em 2021. As vítimas são crianças, mulheres e homens, nem todos mortos por resistirem. Alguns, apenas por existirem, em zona conflagrada pela ânsia destrutiva do garimpo ilegal, de grileiros e destruidores de floresta. A ausência de fiscalização, o desmanche da Funai, as inúmeras declarações de estímulo à violência contribuem decisivamente para esse quadro trágico. Contribui a omissão histórica em relação à demarcação das terras indígenas ou à reforma agrária. E contribui também nossa inércia.
Afinal, seguimos reproduzindo um modelo de convívio social que produz, de forma estrutural e repetida - dolorosamente repetida - a violência que abrevia vidas. A ausência física imposta a essas pessoas desvela uma urgência. Chegamos em um ponto, no qual a política de morte rompeu mais uma barreira. Nem mesmo o olhar estrangeiro é capaz de refrear a sanha assassina de quem quer destruir tudo. E, quando destruir torna-se política de Estado, silenciar é ser cúmplice. Manter práticas que por ação ou omissão compactuam com essa política, também. Daí porque tenho insistido que desastres como o da Vale, em Brumadinho, ou aquele recentemente ocorrido em Recife, nada tem de acidental. São a consequência de uma gestão que adoece e mata. Com arma de fogo, faca, lama, água ou, de forma mais sofisticada, através de práticas e decisões que concretamente pioram a vida das pessoas. Essa presença da dor de um país em que é perigoso sair à rua, é perigoso denunciar, é fatal resistir, torna cada vez mais exigente o desafio de seguir atuando, nem que seja através do discurso.
Porque também o discurso é agente da vida ou da morte.
Durante o período mais agudo da pandemia, sofremos um verdadeiro holocausto, assistindo diariamente a gráficos, médias móveis, números que banalizavam o terror do descaso diante da covid-19. Desamparadas, sobrevivemos na ausência, diante desse cenário de guerra à vida. De lá pra cá, tornou-se cada vez mais comum assistir a filmagens de agressões: pontapés, socos, tiros ou práticas de sufocamento. Essa forma de registro mostra ao mundo o que nos tornamos: uma sociedade que documenta o assassinato e a tortura em tempo real, espetaculariza a morte, caça culpados, e segue agindo como se fosse possível manter a sanidade diante do caos.
É urgente saber o que faremos com isso.
O caso da criança obrigada a manter uma gestação que implica perigo à própria vida é talvez a prova recente mais emblemática de nosso fracasso civilizatório. A menina, exposta à violência sexual, encontrou no Estado ainda mais violência. Talvez essa criança jamais consiga superar a ausência de infância que a presença em seu ventre evoca. Ou os efeitos da violência, materializada em um discurso fanático de falsa defesa da vida, diante do qual a sua existência parece nada importar. Expor uma criança à dor com o argumento de defender a vida, não é menos violento do que torturar e asfixiar, matar e esquartejar.
Seguir ouvindo as notícias ou assistindo a cenas como essa pode servir para nos manter indignadas, mas também pode anestesiar. E nos conduzir, sem que percebamos, a um movimento pelo linchamento sumário, mesmo que virtual, das pessoas que protagonizaram a violência. Talvez isso tranquilize nossa consciência, até a próxima tragédia. E eis que reproduzimos, sem perceber, a lógica punitivista, o comportamento de inércia, a cumplicidade. Somos ausência, onde devíamos ser presença.
Sem tempo para refletir sobre isso, seguimos nosso cotidiano, deixando que a dor permaneça em nós como algo que não sabemos bem explicar, que é difícil dimensionar, mas que multiplica os “prantos que vivemos a chorar”, como escreve Maria Firmina.
A filosofia Ubuntu, de matriz africana, reforça o que intuitivamente sabemos: nos constituímos na presença dos demais seres. Somos parte de algo maior, coletivo. Somos a soma da potência de todas as vidas. Por isso, sofremos cada perda. Por isso, nos sentimos machucadas, incendiadas, maltratadas, encharcadas, mortas. Lutar pelo direito ao aborto, pela demarcação das terras dos povos originários, contra o racismo, o sexismo ou a LGBTQIA+fobia é lutar pelo direito à vida. Essas pautas precisam implicar nosso cotidiano, nossas relações, nossas conversas e as atitudes que assumimos em nossa profissão. Precisa determinar nossas escolhas no pleito eleitoral e depois dele.
Honrar a existência de Marielle, Anderson, Amarildo, Bruno e Dom, honrar a vida da menina-mãe, para quem a infância foi negada, não é apenas exigir investigação, responsabilidade, punição. É também e necessariamente alterar a forma como nos relacionamos e compreendemos a vida. Nossas escolhas quando consumimos, quando educamos, quando atuamos profissionalmente, quando desejamos. É não compactuar. É exigir e não transigir diante de práticas que causam sofrimento. Sem reconhecer nossa função nessa estrutura social, não avançaremos. Estaremos condenadas a chorar diante da tela do celular ou da TV. E seguir, em silêncio, como parte desse metabolismo autofágico, produtor de tanta dor desnecessária, que nos rouba "a vida, sem nunca acabar".
* Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko