Detesto o frio perverso e sem causa dos que acabam com a democracia, a soberania e a liberdade
Mamãe era super friorenta. Como ela, também sou tri friorento. Quando um ventinho entrava por um pedaço de janela ou porta abertas, mamãe já reclamava, mesmo que não houvesse vento nenhum. Para ela, na última etapa de sua vida, já em tempos de coronavirus, tudo devia estar fechado na cozinha, onde ela ficava durante o dia, ao lado do fogão a lenha, sempre aquecendo a ela e a mim em tempos de frio, inverno e pandemia.
Já avisei meus irmãos: quando eu chegar aos 94 de mamãe – e chegarei! –, ninguém vai me ´guentar´, coisa que já não anda fácil hoje! Serei igual, ou pior, que um ´ranzinza democrático´, como eu era conhecido em Brasília, e o que rendeu, com este título, um poema que escrevi um pouco antes da partida e volta ao Rio Grande, em tempos de golpe.
Detesto o frio desde sempre. Sou inimigo número um do inverno gaúcho há mais de 70 anos! Quando ia para a Escola São Luiz, por exemplo, nos anos 1950: algum agasalho, quase o mesmo usado todos os dias – filho de agricultores familiares em Santa Emília, interior do interior do Rio Grande do Sul; e que, eu o mais velho dos nove filhos de papai Léo e mamãe Lúcia, depois que eu crescia, agasalho devidamente repassado para algum dos irmãos mais novos. Fosse frio, tivesse geada, vento, chuva de granizo, nada de faltar à escola nunca, indo a pé, claro. Só mesmo a gripe, ou o sarampo, ou algum outro tipo de doença, permitia a gente ficar em casa. Mas estudando e fazendo os deveres da escola devidamente, sem falta!
Detesto o frio quando era ´obrigado´ a levantar cedo, final da madrugada, para tirar leite das vacas, em qualquer época do ano. Depois, alimentar vacas, bois, terneiros, porcos e galinhas, sustento da família grande.
Detesto o frio quando, às seis da matina, no Seminário Seráfico dos franciscanos em Taquari, RS, anos 1960, estava fazendo ginástica no campo de futebol cercado de árvores. E não havia inverno ou vento que o impedisse, só a chuva, se fosse muito forte!
O que me salva, como agora no feriadão de Corpus Christi em Santa Emília, na casa da família, quando a temperatura chegou a 2 graus no domingo, é o fogão a lenha, ao lado do qual mamãe ficava sentada o tempo todo. E, costume gaúcho, sempre aproveitando, ontem com ela, hoje com meu irmão mais novo, para tomar um bom chimarrão, às vezes acompanhado de uma pipoca ou, em tempos de inverno bem forte, de bons pinhões, de uma caipirinha ou de um bom vinho tinto seco.
No mais, com muito frio, é fundamental usar vários cobertores de noite, uns dez casacos durante o dia, mais cuecões, meiões, tudo um sobre o outro, para (tentar) suportar o frio, a geada, a chuva gelada que às vezes cai. E, se possível, ficar o máximo em casa, o que, nestes tempos, tem a ajuda da pandemia, por incrível que pareça!
Detesto os abraços frios de quem abraça por formalidade, ou mal abraça, ou só estende os dedos de longe. Quero abraços quentes, fortes, longos, com alguns tapões gostosos nas costas durante o abraço!
Detesto as palavras frias que saem da boca mais como se fossem petardos e tiros que sinais de amizade, amor, solidariedade, companhia.
Detesto os versos frios, sem inspiração, sem compromisso com a vida, o prazer e o amor, mero amontoado de imagens sem luz.
Detesto a neve e a geada, que muitos procuram nas serras gaúchas e catarinenses como se fossem alívio, embora belas ao olhar.
Detesto a frigidez dos que não se sensibilizam com a fome que está nas portas em todos os lugares, com a população em situação de rua que sofre com o frio, com as crianças que precisam vender balas nas ruas para poder comer, com as mães e pais que sobrevivem através dos sopões de solidariedade.
Detesto o frio dos espíritos que não se revoltam com a violência presente no cotidiano, com os assassinatos de jovens negras e negros, de indígenas, de mulheres, de lideranças que lutam por justiça e direitos dos mais pobres entre os pobres.
Detesto os olhos frios dos milicianos, que matam sem dó nem piedade.
Detesto o frio perverso e sem causa dos que acabam com a democracia, a soberania e a liberdade.
Esse frio de inverno atravessa hoje o Rio Grande, reinante em muitas almas e corações, agravado no Brasil e no mundo nos tempos atuais, quando há guerra com muitas mortes, e o frio se revela tortura, dor e sofrimento por todos os lados, não só nos corpos, mas na sociedade sem valores de igualdade, de justiça, de solidariedade, de paz.
Mesmo assim, e apesar de tudo, acredito na vida e na ação militante de lutadoras e lutadores, de sonhadoras e sonhadores. O calor e o verão da vida, do prazer, do amor, da boa luta, das melhores causas chegarão em algum momento para aquecer e brilhar. Quem sabe, a partir de 2 de outubro de 2022, na eleição das nossas vidas.
O calor e o verão, mesmo com todo frio, real e simbólico, estão na Frente nacional contra a Fome e a Sede, nas Cozinhas Solidárias, na Campanha em Defesa do Legado de Paulo Freire, no esforço coletivo por Terra, Teto e Trabalho, no Projeto Encantar a Política e tantas outras ações e iniciativas de quem tem coragem, fé, e não se entrega nunca.
Ninguém solta a mão de ninguém. ESPERANÇAR.
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko