Eu moro na Cidade Baixa, um potente bairro de Porto Alegre. Me sinto em casa por aqui. É um local de subversão, de luta. Festas de rua, eventos culturais, pinturas que sobem paredes, árvores iluminadas e o melhor, uma ampla diversidade de corpos circulando. Corpos de várias formas, estilos e vivências.
Em meio a tudo isso, me deparo com uma frase: você deve beleza a ninguém. Gostei. Vai no contrafluxo de tudo que nos bombardeiam. Mas será que realmente não devemos?
Sim, não devemos. Mas somos convencidos do contrário. Enquanto sujeitos de linguagem, as narrativas nos constituem. Vivemos em sociedade, ela nos precede e nos molda. Como diz Foucault no livro Vigiar e Punir, “o corpo está diretamente mergulhado num campo político; as relações de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais”.
Nossos corpos são construídos pelo sistema que vivemos. Crescemos escutando histórias de como um corpo deve existir para ser considerado belo e desejável. É uma das várias formas de controle social. As práticas de transformações corporais, tais como dieta, cirurgia plástica, musculação, tatuagens, implantes, etc., tornaram-se um sintoma de nosso tempo.
“Como tornar meu corpo desejável?” se tornou a questão. Penso que talvez seja mais interessante questionar o porquê apenas alguns corpos específicos são considerados desejáveis.
Escuto na minha clínica frases do tipo: eu não sou atraente, meus lábios poderiam ser maiores, meu nariz mais fino, meus cabelos estão grisalhos, tenho rugas, estou envelhecendo.
Consumimos e somos consumidos pelas prescrições que nos rodeiam.
Faço então uma aposta, uma aposta na palavra. É necessário apontar questões que façam o sujeito falar, se escutar, refletir e deslocar esses significados petrificados da “estética ideal”.
Se fomos construídos pela linguagem, é por ela que se inicia o processo de desconstrução. Flexibilizar os sentidos, entender como os corpos foram narrados e constituídos.
Como ser resistência ao dito “padrão de beleza''?
E assim sigo caminhando pela rua, espaço de grande potência, no qual o olhar é capturado por sujeitos pintados, com diferentes contornos e adereços: corpos que resistem!
* Graduado em Psicologia Clínica e Ciências Biológicas, mestre em Genética e Biologia Molecular. Atualmente realiza atendimento clínico embasado no referencial teórico e ético de Jacques Lacan.
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira