Rio Grande do Sul

Coluna

O dia que as gavetas estouraram

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Mais de 130 escritoras participaram de foto histórica na escadaria da 24 de maio, em Porto Alegre, no dia 11 de junho - Foto: Marcia Prado/Oblíquo imagens
Essa mulherada toda junta se abraçando e, depois, trocando livros era um estouro de felicidade

No fim de semana de 11 e 12 de junho, o protagonismo foi da escritA. Sim. Com A maiúsculo. Centenas de escritorAs nos reunimos, em mais de vinte cidades do Brasil para fazermos fotos históricas.

A ideia surgiu em São Paulo. “A inspiração veio - conta Giovana Madaloso na sua conta de Instagram - de uma foto feita em 1958, no Harlem, quando Art Kane decidiu registrar a cena efervescente do jazz estadunidense...”. Assim foi como as escritoras em São Paulo iriam se reunir para aquela foto, e como a efervescência foi tanta, escritoras de outras cidades começaram/começamos a dizer e nós e nós e nós.

Em Porto Alegre, quem teve a iniciativa foi a escritora Irka Barrios, e trouxe a ideia ao coletivo do Mulherio das letras. Assim foi que começamos a nos organizar e a foto teve lugar no sábado (11), às 10 horas na escadaria da 24 de maio. Mais de 130 escritoras cadastradas estivemos presentes. Numa das manhãs mais geladas do ano, a gente se reunia para registrar a mudança no rumo da história, para gritar que só a rebeldia nos liberta e que juntas mudamos o mundo. Também esteve presente o grito de “Fora Bolsonaro” e é hora de Jair caindo e saindo.

Essa mulherada toda junta se abraçando e, depois, trocando livros era a própria imagem do dia em que as gavetas estouraram. Um estouro de felicidade.

No Sarau das minas eu sempre digo que Todas escrevemos, nossas gavetas estão cheias de folhas perdidas, de cadernos preenchidos de ideias e poemas. Mas o patriarcado não queria mulheres escrevendo.

Tem uma carta que prova isso (como se ainda precisássemos de provas), em que o escritor Olavo Bilac se dirige a sua noiva repreendendo-a pelo fato de ter publicado um poema. Uma das pérolas tristes que ele atira nela é: “O primeiro dever de uma mulher honesta é não ser conhecida”, “Não quer isto dizer que não faças versos, pelo contrário. Quero que os faças, muitos, para os teus irmãos, para as tuas amigas, e principalmente para mim, – mas nunca para o público (…)”. São Paulo, 7 de fevereiro 1888.

Então, não é só que as nossas gavetas já vêm estourando, como as nossas rebeldias ao patriarcado, as nossas gargantas estão cheias de palavras. As imagens de centenas e centenas de mulheres sorrindo com seus livros nas mãos é o ápice. Mas isto já vem acontec(S)endo. Nos últimos anos a cena literária vêm pisando muito forte com os grupos em todo o país de Leia mulheres, os Slam das minas, os Sarau das minas, o coletivo Mulherio das letras que já teve 3 encontros nacionais presenciais, mais o último virtual durante a pandemia (e neste ano, dizem, acontecerá outro). Tem surgido também editoras feministas, livrarias que só vendem literatura escrita por mulheres e pessoas não binárias, assim como coleções voltadas às escritoras.

Estas não são escritas femininas, nada mais feminiSta do que estas ações.

Esses movimentos criam outros movimentos.

E foi assim que o Brasil todo ouviu esse grito de emoção, tão alto, porque foi um grito coletivo e sempre que acompanhado, o grito ecoa mais longe. Por isso as companheiras de São Paulo já estão organizando todas as imagens para virar livro. Um livro livre de patriarcado.

Este outro movimento vem questionar o que é ser escritora. Quem escreve e publica? Se para as mulheres brancas estava difícil, já paramos para pensar em qual o grau de dificuldade para as mulheres negras, indígenas, lésbicas?

Em Porto Alegre, e acredito em todas as cidades que foram realizadas as fotografias, não se pediram constância de escrita. Na chamada, eram convidadas escritoras que tivessem livros publicados, textos em coletâneas, slam gravado, textos nas redes. Se um dia Edith Piaf foi ouvida cantando, enquanto varria a calçada, muitas de nós nos conhecemos nos bairros das diferentes redes sociais, por isso, eu sempre digo que todas escrevemos.

* mariam pessah : escritora e poeta, ARTivista feminiSta, organizadora há 5 anos do Sarau das minas/Porto Alegre. Ministra a Oficina de escrita e escuta feminiSta e trabalha como tradutora.

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko