De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), 39 mil mulheres morrem e milhões são hospitalizadas em todo o mundo anualmente com complicações causadas por abortos inseguros. No Brasil, dados do Ministério da Saúde (MS) de 2018 apontavam que 1 milhão de abortos induzidos ocorrem todos os anos no Brasil. De acordo com ginecologista, obstetra e coordenador da Rede Médica pelo Direito de Decidir - Doctors for Choice/ Brasil, Cristião Fernando Rosas, cerca de 500 mil abortos clandestinos são por ano no país.
O aborto é reconhecido como prática legal em seis países da América do Sul: Uruguai, Chile, Argentina, Guiana, Guiana Francesa e Colômbia. No Brasil, o debate enfrenta o conservadorismo e limitações da lei, já que ele é permitido em apenas três casos: para salvar a vida da mulher; quando a gestação é resultante de um estupro ou se o feto for anencefálico. Fora esses casos, a prática é considerada crime, com penas previstas de um a três anos de detenção para a gestante, e de um a quatro anos de reclusão para o médico ou qualquer outra pessoa que realize em outra pessoa o procedimento de retirada do feto.
“A lei além de burra é incompetente, não defende os fetos. Traz o que? Sofrimento às mulheres e coloca em risco a vida delas”, avalia o ginecologista.
Recentemente o MS editou uma cartilha que diz que "todo aborto é crime" e defende "investigação policial". Para o coordenador, tal afirmação não passa de argumento retórico para causar insegurança jurídica. "Criar mais confusão em uma seara onde o poder estatal tinha que abaixar a bola, mostrar a tranquilidade do atendimento, os caminhos corretos, eu só posso dizer que essa frase é retórica. É para causar insegurança jurídica, medo, ameaça às mulheres que ficam com medo também, assim como o profissionais de saúde", destaca.
No dia 3 de maio, o Instituto Datafolha divulgou uma pesquisa que aponta que 31% dos brasileiros concordam com a total restrição da interrupção da gravidez no país. Em 2018, esse percentual era de 41%. Hoje, 39% das pessoas concordam que a lei deve continuar como está. Quatro anos atrás, o número era de 34%, ou seja, hoje cerca de quatro em cada dez brasileiros consideram isso.
Cristião participa do 5º Colóquio Aborto Legal RS, que ocorre hoje (14) e conversou com o Brasil de Fato sobre a realidade do aborto no país.
Abaixo a entrevista completa
Brasil de Fato RS - O aborto é legal ou descriminalizado em seis países da América do Sul: Uruguai, Chile, Argentina, Guiana, Guiana Francesa e Colômbia. Como o senhor descreveria o cenário da legalização do aborto no Brasil e a que o senhor atribui a dificuldade de avançarmos no debate?
Cristião - O aborto tem uma carga de estigma social muito forte no Brasil. E a criminalização só reforça esse estigma. Eu costumo dizer que a palavra aborto é pecado, é crime, sangra, e, acrescento ainda, mata. Uma palavra que tem uma carga tão grande de negatividade que dificulta uma discussão, no parâmetro de saúde pública, em algo mais equilibrado, de consenso, e na questão dos direitos.
No Brasil a discussão sobre o assunto sempre vem com uma carga moral, e no conflito da moral nenhuma sociedade resolveu essa questão. Veja, por exemplo, nos Estados Unidos, onde a suprema corte em 1973 descriminalizou o aborto, com uma discussão baseada em saúde pública, na mortalidade materna, no direito à privacidade, autonomia, individualidade, intimidade das pessoas. E agora volta a carga ideológica da moral, da vida sacra desde a concepção, etc. E quando entra nesse conflito é muito difícil solução, porque um pensa de uma maneira, outro pensa de outra.
As sociedades que resolveram essa questão perceberam que é insolúvel essa discussão baseada no conflito da moral. Então eles resolveram o seguinte: é uma decisão individual, aqueles que não queiram para si, simplesmente não façam. Foi o que o presidente da Argentina falou recentemente quando criticaram que ele defendeu a legislação que descriminalizou o aborto no seu país. Tem que ser assim, porque na verdade é um direito reprodutivo.
Eu acho que as pessoas no Brasil têm pouca compreensão do que sejam direitos humanos, o que a humanidade sofreu, o que teve de lutas, mortes, sacrifícios, sofrimentos, para evoluir a partir de 1948 no pós-guerra, quando se estabeleceu a carta de direitos da pessoa humana, que todas as nações escreveram e assinaram. E vieram vários outros tratados e conferências, garantindo direitos da mulher, direitos contra a violência, direitos sexuais, direitos reprodutivos que se consagraram nas conferências internacionais do Cairo, de população em desenvolvimento, e na conferência da mulher em Pequim, em 1995. A partir daí o nosso país assinou e o parlamento brasileiro confirmou esses tratados.
Portanto faz parte do ordenamento jurídico brasileiro os direitos reprodutivos, entre eles de não morrer por parto, puerpério e abortamento, o direito a ter acesso a tecnologias reprodutivas que garantam qualidade da assistência, o direito a decidir sobre seu corpo, sobre sua reprodução, sobre sua sexualidade.
Esses direitos ainda são pouco debatidos pela sociedade brasileira, mas são direitos humanos. Contudo, quando se fala direitos humanos no Brasil parece que você está defendendo direitos de cidadãos presos, é uma confusão. Direitos humanos é direito de cada um de nós. Por isso que eu sempre falo, quando eu tenho oportunidade de conversar com jornalistas, a importância de vocês trazerem a pauta essa discussão. Vocês são formadores de opinião. É muito importante alargar a base de consciência das pessoas, a importância de defender que é o direito da filha daquela mulher de não morrer de um aborto inseguro no futuro, e ter garantido o planejamento familiar.
As políticas públicas não podem sofrer influência das ideologias religiosas, morais. Tem que se focar nas necessidades da população, nos direitos, e naquilo que eu preciso fazer para dar melhor qualidade a todos
Outro aspecto é que nós estamos em um país onde a Constituição é laica. Ou seja, o Estado é neutro, o Estado não fala nem a favor do cristianismo, do islamismo, nem pró, nem contra o ateísmo. Ele é silente, neutro. Ele tem que garantir o direito de todos terem sua liberdade de expressão, de consciência, de fé e crença, que é também um direito humano. Ele não pode tomar partido.
As políticas públicas não podem sofrer influência das ideologias religiosas, morais. Tem que se focar nas necessidades da população, nos direitos, e naquilo que eu preciso fazer para dar melhor qualidade a todos. E não é essa visão que eu tenho visto, não só desse governo. Eu já tenho visto dificuldades em outros anteriores, ditos inclusive de esquerda, com pouca percepção de que as políticas públicas não podem sofrer, principalmente as relacionadas à saúde, essa tremenda influência que cria barreiras de acesso por conta de visões religiosas.
Quando a religião entra e influencia nas políticas públicas, faz mal à saúde, e põe risco à vida mulheres. A gente vê, por exemplo, municípios proibindo contracepção de emergência, porque o pastor daquele município falou que a pílula de emergência é abortiva, e a Câmara Municipal aprova. Aí tem que ir em tribunal superior. Só que durante aquele um, dois anos de discussão política, de uma coisa que não tem cabimento nenhum, as meninas e as mulheres daquele município ficam sem contracepção de emergência.
São essas questões que eu vejo como difíceis no país. Os direitos estão aí, nós precisamos tirar os porteiros que botam travas nessas portas, cadeados, e fecham as portas das pessoas aos seus direitos humanos, aos seus direitos individuais, aos seus direitos de autonomia, de decisão livre sobre sua sexualidade e reprodução, sobre seu corpo.
A discussão é muito mais ampla do que só quem é a favor ou contra o aborto, porque fazer essa discussão é exatamente o que o conflito da moral quer. Ninguém é a favor do aborto. Se você perguntar num anfiteatro com mil pessoas: quem aqui é a favor do aborto? Nem a mulher que aborta é a favor, ela sofre.
A maternidade é algo arraigado no inconsciente coletivo das mulheres, é algo muito potente. E quem aborta no Brasil? Mulheres que já tiveram filhos, católicas, evangélicas, enfim, mulheres com sofrimento psicológico intenso. E apesar disso, contra a lei, contra o que diz o Estado, contra o que diz a sua religião, elas, em determinadas circunstâncias, por não poder ter mais aquela gestação, farão o procedimento. Só que ela vai abortar na clandestinidade, com os riscos que a clandestinidade traz, como perfuração uterina, sangramento, infecções, algumas podem até morrer.
A legislação brasileira sobre o aborto é uma lei que traz pena de morte para as mais vulneráveis, para as negras, para as mulheres da periferia. Além de retrógrada, é burra. A lei do aborto, ela não protege os fetos, que são mais de 500 mil abortos realizados na clandestinidade por ano no Brasil. Além de burra é incompetente, não defende os fetos, e traz o que? Sofrimento às mulheres e coloca em risco a vida delas.
Eu tenho sempre esperança, não de esperar, é a esperança de continuar gastando minha voz, tentando dentro do possível trazer a incongruência de uma lei que por si só, não está servindo para nada, só pra trazer sofrimento às mulheres.
É proposital que o Ministério da Saúde venha com essa frase, que não existe aborto legal, isso mostra o caráter ideológico desse documento
BdFRS - Recentemente o ministério da saúde lançou uma cartilha afirmando que não existe aborto legal no Brasil, o senhor pode comentar essa afirmação?
Cristião - No mínimo eu posso dizer que essa afirmação é mentirosa, ela é incorreta. Incorreta porque nós temos três permissivos legais no código penal, onde não se pune quem faz o aborto para salvar a vida da mulher: risco de vida da mulher, gestação decorrente de estupro e anencefalia fetal! Portanto, se não se pune não é crime.
É simplesmente argumento retórico para causar insegurança jurídica. É tão baixo um poder estatal como o Ministério da Saúde, que tem como dever constitucional de zelar e garantir acesso à saúde às pessoas, criar mais embaraços, insegurança, dúvidas, barreiras em um atendimento que é complexo, difícil, e que tem muitos mitos e medos para as pessoas terem acesso. E em que menos de 4% dos municípios brasileiros dispõem de serviços para realizar interrupção legal da gravidez.
Criar mais confusão em uma seara onde o poder estatal tinha que abaixar a bola, mostrar a tranquilidade do atendimento, os caminhos corretos, eu só posso dizer que essa frase é retórica. É para causar insegurança jurídica, medo, ameaça às mulheres que ficam com medo também, assim como o profissionais de saúde.
Nós estamos produzindo um documento, um posicionamento em relação à cartilha, onde destacamos a inconsistência técnica. Achamos não só essa questão da retórica, mas equívocos de redação, confundindo questões jurídicas, erros conceituais básicos, não fala de aborto induzido, por exemplo. Recomendam técnicas proscritas, pelas mais atuais evidências, pelas diretrizes internacionais, como a recente diretriz da Organização Mundial da Saúde (OMS). A cartilha traz recomendações que não se recomendam mais, obsoletas.
Eu vejo que é proposital que o MS venha com essa frase, que não existe aborto legal, isso mostra o caráter ideológico desse documento, que deveria se pautar apenas pelos aspectos técnico-científicos, aspectos assistenciais, dos protocolos de como melhor atender, de facilitar o acesso, os aspectos éticos de sigilo profissional, dos limites da objeção de consciência, das garantias jurídicas do procedimento.
Na verdade a cartilha rompe com tudo isso, viola direitos constitucionais das pessoas, causando dúvidas sobre a questão do sigilo profissional. Cria barreiras no acesso à qualidade. E por isso nós vamos sugerir a imediata retirada dessa publicação no site da biblioteca virtual em saúde do Ministério da Saúde, porque entendemos se tratar de um documento inadequado aos fins que se propõe. É até uma ameaça à saúde das adolescentes e das mulheres brasileiras.
Nesse sentido, nós temos muita convicção da total inadequação de tudo que está ali escrito, tem muita confusão, muita má escrita, muita má redação. E causa realmente mais confusão do que já existia, com os poucos documentos do Ministério que nós tínhamos, que davam muitas normativas e eram bastante mais claros na condução dos protocolos e da assistência.
A clandestinidade traz enormes riscos à saúde dessas meninas e dessas mulheres
BdFRS- Gostaria que nos falasse sobre a Rede Médica pelo Direito de Decidir?
Cristião - A Rede Médica pelo Direito a Decidir é uma articulação de médicos em nível mundial. Mantemos em contato em rede, que criamos em 2008, uma organização em Nova York chamada Global Doctors for Choice. Essa organização médica tem como objetivo trazer a voz dos médicos que de certa forma nas sociedades ainda têm certa credibilidade. Tem tido muito desgaste ultimamente, mas ainda o conhecimento médico, a experiência do sofrimento humano específico, da realidade da saúde, tudo isso traz uma certa credibilidade na fala dos médicos. E por conhecer as evidências científicas, os estudos, as melhores diretrizes, melhores práticas, as revisões sistemáticas, as melhores evidências robustas, que mostram que tais e tais caminhos em termos de saúde são melhores do que aqueles outros que ainda estão sendo utilizados.
Temos como objetivo, vamos dizer assim, usar do nosso conhecimento, trazendo o advocacy, a defesa de mudanças das políticas públicas de saúde que objetivem uma qualidade melhor de atenção, um acesso melhor na atenção, resultados melhores, garantindo os direitos de saúde, direitos constitucionais de saúde, direitos humanos, direitos sexuais, reprodutivos.
E o nosso foco principal são os direitos sexuais e os direitos reprodutivos. Planejamento familiar, em ampla perspectiva, de qualidade acessível, com tecnologias apropriadas a toda a sociedade, defesa do pré-natal de qualidade, número suficiente da assistência de qualidade à maternidade para redução da morte materna. Também como objetivo, que todas as meninas e mulheres tenham o direito a uma assistência a um aborto legal, seguro e gratuito, se esse for de seu desejo. Pois entendemos que é um direito reprodutivo, e a clandestinidade traz enormes riscos à saúde dessas meninas e dessas mulheres.
Somos uma organização de médicos, temos colegas espalhados em 25 países, e temos uma série de documentos técnicos, posicionamentos, cartilhas, que ajudam gestores, profissionais, a fazer também a defesa com os pontos de vista e com as evidências que nós trazemos, em relação a uma série de questões.
É um trabalho voluntário, não ganhamos nada para fazer isso. A gente faz, em momentos à noite ou fins de semana, esses documentos técnicos, para poder trazer um pouco de contribuição pensando não só naquela pessoa individual, que são nossas clientes, nossas pacientes, mas de que forma a gente pode melhorar a qualidade de vida de mais pessoas ao redor do mundo, em relação aos seus direitos reprodutivos.
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Edição: Marcelo Ferreira