Não é a primeira vez que escuto em minha clínica esta nova modalidade de relação. Me parece algo tão presente que questiono sobre ser apenas uma fantasia daquele que se queixa.
João e Pedro se conheceram na fila do banheiro de uma cafeteria. A espera trouxe a surpresa de uma conversa tranquila com algumas trocas de olhares, olhares que diziam algo a mais. A troca de contatos foi uma aposta. Relações sempre são apostas, não?
Posso viver algo diferente, encontrar alguém que me entenda, sentir alguma coisa que ainda não havia sentido. Mas muitas vezes, se relacionar é repetir.
E é disso que Pedro se queixava: mais uma vez aconteceu a mesma coisa.
- João era um cara incrível, passamos meses compartilhando experiências e confidências. Viajamos várias vezes pra curtir o verão. Nele eu encontrava segurança.
Pedro reclamava que João mantinha uma postura evitativa quando o assunto era compromisso. Ele estava frustrado, havia apresentado toda sua vida à João. No seu limite, propõe terminar.
A resposta de João foi: terminar o quê? Nós não temos nada!
Após a sessão, enquanto anotava alguns fragmentos, pontos de repetição e o lugar que Pedro ocupava na história que contava, pensei sobre o próprio sintoma social que é se relacionar a partir de uma posição de descomprometimento com o outro.
Em que momento se tem alguma coisa com alguém? Aliás, o que seria esse "ter alguma coisa"?
Não quero pensar esse fragmento pelo viés da tão falada “responsabilidade afetiva”, mas sim do quanto a cultura prescreve uma desconexão, tanto material (compre sempre mais!) quanto afetiva (muitos seguidores, poucos amigos – não há tempo para sólidas construções!).
A minha hipótese é que na nossa sociedade neoliberal, que tem como ideologia a estruturação no princípio do mercado livre (de forma resumida, claro), há uma prescrição, em alguma medida, das ditas “relações livres”, as quais têm como palavras chave: descomprometimento, desconexão, liberdade, ausência de cobranças, não implicação e assim por diante. Em suma, não sou minimamente responsável pela realidade que o outro monta sobre nós.
Como fazer resistência frente à esta lógica neoliberal de se relacionar? Quão possível é sustentar vínculos mais saudáveis em que eu reconheça a alteridade daquele com que me relaciono?
Afinal, nem todo café precisa ter um gosto amargo no final.
* Graduado em Psicologia Clínica e Ciências Biológicas, mestre em Genética e Biologia Molecular. Atualmente realiza atendimento clínico embasado no referencial teórico e ético de Jacques Lacan.
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko