Pelo pacto de silêncio imposto socialmente, vamos sendo varridas para baixo do tapete
Este é o segundo texto de uma série de escritos a partir do encontro entre uma escutadora e uma sobrevivente de feminicídio, cujos vínculos se deram a partir do programa de extensão Clínica Feminista na Perspectiva da Interseccionalidade da UFRGS.
Sobreviver a um feminicídio significa não apenas abrir os olhos para uma realidade que sempre esteve diante de nós e não raro sob o mesmo teto, mas nunca mais fechá-los para as notícias que saltam dos jornais todos os dias. Um tipo de consciência sempre alerta que nos custou caro, e que nos rouba algo sem preço.
No início de maio, Bárbara Penna precisou pedir uma medida protetiva de urgência contra o ex-marido, já preso e condenado. Como sobrevivente, ela tem atuado para mudanças na lei Maria da Penha, de modo a torná-la mais efetiva - ou, melhor dizendo, do lado de cá de quem também carrega na pele as marcas da violência, menos falha. De dentro da prisão, ele enviou vídeos para ela dizendo amá-la e sorri, como se mais nada pudesse atingi-lo. Ela disse sentir terror. A delegada afirmou não ser incomum que mulheres sigam sendo ameaçadas por seus agressores, mesmo encarcerados.
Isso que muitos homens chamam amor, nós chamamos terrorismo machista, crime para o qual sequer há tipificação. Pois não pode ser considerado e aceito como amor isso que espanca, atira o corpo pela janela e incendeia um apartamento, matando duas crianças e um idoso.
Como diz bell hooks, o amor é o que o amor faz. Quando sinto dores, meus filhos pequenos falam “mamãe está assim porque o papai fez isso com ela”. São autistas e, quando começaram a falar melhor, também começaram a contar dos abusos sofridos pelo pai e sua companheira, que planejaram me matar. Quando achava que o pior já tinha acontecido, nos deparamos com esse horror, que segue sem investigação e sem acolhimento.
O Estado brasileiro consegue ser, ao mesmo tempo, condescendente com as torturas machistas e negligente com suas vítimas. O mesmo país que ignora a violência vicária, sustenta uma absurda lei de alienação parental, que vem sendo usada contra mulheres que denunciam genitores abusadores, ou que estendem as medidas protetivas previstas na lei Maria da Penha à prole.
O Estado brasileiro tem sangue nas mãos, e esse sangue é negro, indígena, trans, e também de mulheres e crianças vitimadas pelo machismo estrutural. Quem somos nós? Temos nomes, histórias e vidas interrompidas. Pelo pacto de silêncio imposto socialmente, vamos sendo varridas para baixo do tapete como a sujeira inconveniente.
É complexo e difícil transitar com as nossas narrativas entre tantos eufemismos da violência e midiatização da tragédia: frequentemente feminicídios são, ainda, abordados como “crime passional”, invisibilizando a misoginia e o sexismo que operam nesses casos.
As pessoas dizem “não aguento mais ver isso” que acontece diariamente com nossas amigas, vizinhas, filhas. E assim vamos nos furtando da responsabilidade coletiva de enfrentar as muitas violências vividas, tantas sem nome e validação social. Como se fosse possível para alguns “mudar de canal”, enquanto outros disfarçam o prazer com a tortura tornada espetáculo.
Assim como as vítimas da violência de Estado, sabemos que nenhuma pena alcançará às necessidades das vítimas do terrorismo machista. Sabemos de toda a falência do sistema prisional, seria uma insanidade seguir esperando a recuperação de qualquer pessoa nesse ambiente popularmente chamado de “universidade do crime”.
A justiça não nos alcançará, sabemos disso. Mas precisa alcançar nossos filhos, filhas e filhes. Violência doméstica, feminicídios e tantos outros crimes poderiam ser prevenidos com educação sexual integral e inclusiva, em todos os ambientes onde crescemos e vivemos, e isso deve ser considerado um direito humano, assim como uma vida livre de violência.
Esta tampouco é uma proposta ou uma aposta, mas o reconhecimento de uma dívida: a que o Estado tem para conosco, sobreviventes da violência gendrada e engendrada pelo próprio Estado.
* Thaís Hipólito, em diálogo com Lara Werner
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko