C+asa dá nome à nova exposição do V744atelier, que traz o artista plástico pernambucano, Marcelo Silveira, grande expoente da arte brasileira, a Porto Alegre. O artista realiza trocas com o público nesta quarta-feira (18), às 16h, em conversa mediada pela crítica e pesquisadora em artes visuais, Gabriela Motta. O artista plástico pernambucano irá falar sobre o seu processo criativo e sobre sua mais recente produção em cartaz na capital gaúcha.
Marcelo considera o convite para expor no V744atelier um desafio. “Trata-se de caminhar pelo território das incertezas; em continuar uma conversa iniciada com Vilma em 1985, durante o Festival de Inverno da Universidade Federal de Minas Gerais, em Diamantina, e também reencontrar a cidade e os amigos que gosto e foram fundamentais na minha formação”, afirma.
A exposição envolve uma residência artística no V744atelier. Segundo o artista, nesta residência as suas investigações irão se concentrar em estabelecer aproximações entre a ficção e a realidade; a memória do espaço, das convidadas e a sua. “O resultado desta ação será um diálogo continuado, aberto e rico em dúvidas”, conta.
Concomitante à sua presença no V744atelier, em Porto Alegre, Marcelo está com duas exposições em cartaz. Em Recife, apresenta trabalhos resultantes do descarte da arquitetura urbana, e em Nova Iorque uma série de trabalhos que vêm sendo produzidos desde a década de 1990, a partir de uma pesquisa com a cajacatinga, uma madeira coletada na zona rural. Ambas as mostras receberam o nome de "Hotel Solidão", por reunirem um conjunto de colagens, que integraram os diferentes espaços. Estas obras falam da dificuldade de se iniciar um processo criativo, pelo fato de que é preciso convencer o outro de que este é o caminho a ser tomado.
Marcelo Silveira é escultor e, desde os anos 1980, destaca-se pelo contínuo interesse em explorar as características físicas dos materiais com os quais trabalha, investigando e revelando as possibilidades de manipulação e significação de cada um deles. Participou da 1ª Bienal Internacional de Buenos Aires, Argentina (2000); da 5ª Bienal do Mercosul, em Porto Alegre, Brasil (2005); a 4ª Bienal de Valência, Espanha (2007), e da Bienal de São Paulo (2010). Suas obras integram importantes coleções institucionais, como a do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
Confira a íntegra da entrevista
Brasil de Fato RS - Você diz que a exposição chamada C+asa pretende estabelecer uma conversa entre cinco pontos de interesse seus. Quais são eles?
Marcelo Silveira - São cinco elementos provocadores. Tem os elementos que eram da Casa do Desenho de Porto Alegre que incendiou, que gerou um trabalho, uma série que se chama O Desenho da Casa. As sobras da reforma dessa casa (o V744atelier), a casa de Vilma, que é o segundo ponto. O terceiro é o desenho de Heleno, que é um dos grupos de desenhos dessa criança que eu acompanhei durante dois anos e meio, era uma criança autista, que não tinha contato com desenho, não tinha prática, de uma região muito pobre, de pessoas muito rudes. E eu acompanhei essa construção da casa, e era uma coisa que eu sempre quis retomar, porque isso foi de 1986 a 1989, lá em Gravatá, em Pernambuco.
Então finalmente me motivo a começar a sistematizar toda essa conversa que eu tive com Leno, o Heleno que eu chamava de Leno. E tem a Lya Luft, que eu encontrei um livro chamado A Invenção da Casa, e parece que as coisas caem... Venho pra Porto Alegre e aparece na minha frente um livro, A Invenção da Casa de Lya Luft. E no livro ela trata da perda de alguns dados, de alguns elementos nossos durante a nossa história, na história de criança, é um momento de ficção, um momento de realidade, você não sabe o que é isso nem aquilo. Eu conhecia o nome, mas eu nunca tinha lido nada da Lya, então essa coincidência.
Esse trabalho traz esse questionamento, o que é a casa para cada um, onde existe a casa, a casa as vezes está numa mala que você abre e ali é a sua casa
A Casa de Vilma foi construída em 1962, a data que eu nasci. Lá na outra sala tem uns trabalhos que chamo Roupas de Casa que tem mais de uma década. Então, a partir desses cinco dados, Vilma disse: você lembra que esses cinco pontos são cinco linhas que definem, caracterizam a casa, uma casa estereotipada é isso. Essa invenção da casa que se constrói na cabeça da gente, ou ela torna-se real quando a gente vai e pega os elementos que sobraram, e vai observando, e vai construindo.
Esse trabalho traz esse questionamento, o que é a casa para cada um, onde existe a casa, você faz a casa, a casa não é só uma casa de 2 mil, 3 mil metros quadrados, a casa as vezes está numa mala que você abre e ali é a sua casa. Quando você está viajando, mochileiro, a sua casa é aquilo, mas você tem necessidade da casa, de montar essa casa. Então são muitas coincidências que motivam, são muitos elementos motivadores.
Por exemplo, Ata e Lições modernas é um trabalho feito com as sobras da Casa do Desenho, eles foram destruídos num incêndio a um ano atrás. Esse material foi pra mim lá em Recife, e eu queria dar um retorno pra cidade há alguns anos e fazer uma exposição aqui com uma série de trabalhos que chamaria O Desenho da Casa, que pra mim é como se fosse o prato do dia, é um desenho mais simples, direto, é um desenho que está mais próximo, que você não faz tantos rodeios pra concluir, eu digo sempre que é o prato do dia.
O Roupas de Casa é um trabalho que não é a casa, ele na verdade discute a acomodação dos sem-terra ao longo das estradas, e as roupas que se bota nos eletrodomésticos, sabe? Capinha para o liquidificador, alguém pensa muito seriamente no material que vai usar no liquidificador, resistente a luz, a fogo, resistente a um monte de coisa, água, e alguém bota um pano, um crochê que deixa vulnerável aquilo, porque qualquer curto pode gerar um incêndio. Então essas Roupas de Casa são estruturas de couro, são estruturas que estão cobertas, são estruturas que na verdade foram as únicas que sobrou do fogo, tudo queimou e só ficaram as estruturas.
É bastante simbólico, fica as estruturas, e a casa ela se mantém em pé pela estrutura, seja a estrutura de fato física, ou quando você tem consistência no que você está planejando como seria a sua casa, como é essa casa imaginária. Porque você formula uma casa que pode ter estrutura muito frágil, e ela não existe, está na sua cabeça, mas é uma casa, eu quero uma casa, mas a casa não existe, não vai existir, porque não tem uma estrutura consolidada, você não formatou, você não sabe o que você quer. No momento em que você fortalece essa estrutura do que você quer como casa, ela vai se organizando.
BdFRS - Mas o que que te levou a construir essa exposição? Tu viveste alguma situação na tua vida de uma perda significativa, ou foi a partir de vivências, enfim, da vivência com o Heleno?
Marcelo - Esse trabalho trata de perdas. As perdas de uma infância que eu vi a criança sendo escanteada, sendo marginalizada por apresentar características que não era do grupo. Nesse período ela inicia sem participar das outras atividades com o grande grupo, e usando estratégia, testando, ele começa a participar do grande grupo de crianças. Até que no último dia, na finalização das atividades daquele ano, ele foi o palhaço do grupo. Só que ele era uma pessoa com características completamente diferentes do grupo, porque ele era estrábico, a pele era toda rachada, mas muito inteligente. Passados 30 anos, soube que ele tinha um programa na emissora local.
São coisas que no começo pareciam que não iam dar em lugar nenhum, como é um descarte, isso que não vai dar em lugar nenhum, e que daqui a pouco tem uma função, tem uma vida, tem uma possibilidade.
Há uma tentativa de esquecimento para tudo, para todas essas coisas que eu trabalho, com o Leno… Tudo que não está dentro do padrão estabelecido, há um esforço muito grande para que seja esquecido, para que seja descartado. Perdeu a utilidade, descarta. Eu tentava trazer um nexo dentre o Heleno e toda a obra, e agora faz todo o sentido. Então quando chega o convite, é tudo! A Vilma conta que cada peça que encontrava, lembrava de mim, que poderia fazer alguma coisa.
Há uma tentativa de esquecimento para tudo, para todas essas coisas que eu trabalho, com o Leno… Tudo que não está dentro do padrão estabelecido, há um esforço muito grande para que seja esquecido, para que seja descartado
Há um esforço em me classificar como uma pessoa que trabalha sempre com madeira, mas eu acho que eu trabalho com a tentativa de não esquecer, com a tentativa de lembrança. Quando eu uso a madeira, que eu digo que é a sobra da mata urbana, ela diminui o desmatamento da mata rural. Não se discute ou se discute muito pouco o descarte das madeiras. Outra coisa motivadora é que a Vilma viu um projeto meu que era Madeira de lei Madeira sem lei, a madeira que é de lei quando vem pra cidade vira sem lei. O mogno que é disputadíssimo, ele vem pra cidade e vira sem lei. Tudo que você tá vendo aqui é pinos araucária, isso se não é a Vilma e o Enio que recolhem e guardam, iria pro contêiner, que ia pra sei lá onde. Então é pensar essas questões, isso faz parte do meu dia a dia, de como a gente vive e a responsabilidade da gente com tudo isso que tá a volta.
Outro exemplo, a letra sete e a letra tone que vieram da Casa do Desenho, elas foram esquecidas porque surgiu o computador. Então você vê a passagem de uma coisa para outra, é uma tentativa de apagar mesmo. Isso é uma visão provinciana da gente, de você entender que o progresso chega quando você apaga aquilo.
BdFRS - E isso sempre fez parte do teu trabalho, Marcelo, desde que tu começaste nas artes plásticas, como é que veio surgindo essa preocupação?
Marcelo - Isso eu acho que sempre foi, porque eu lembro há muito, muito, muito tempo atrás eu fiz terapia e um dos fechamentos de questões, o terapeuta me disse: o que te incomoda na família, não é você ser especialista em coisas inúteis? Aí eu me levantei e fui embora, mas é verdade. Então essa especialidade no inútil, isso sempre foi uma coisa muito presente no meu dia a dia, de você se encantar por aquilo que está sendo esquecido. Eu acho que essa luta pra que seja lembrado, não é só que você seja lembrado, mas é que aquilo seja lembrado e a gente possa provocar o outro a que lembre também.
Tenho um trabalho recente que se chama Hotel Solidão, que nada mais é do que esse processo de construção do conhecimento. Então essas questões me interessam profundamente, sempre me interessaram, mas isso só vem a tona quando você fica velhinho, quando você perde os cabelos, e você começa a entender melhor do mundo, de qual a tua relação, o que você tá aqui pra fazer. O que você vive, você está o tempo inteiro tendo que engolir o choro, é uma tentativa constante dos outros quase que impor pra você, engula o seu choro, e você não engole o choro. De vez em quando, isso é de um plano metafórico, mas também é real, de vez em quando não resisto. Então, esse universo de criação e de construção do conhecimento de Marcelo, ele se passa, ou ele tem interesse muito por essas pequenas questões, normalmente coisas que estão ali, soltas, estão vagando. Seria trazer o invisível, o descartável.
É tornar visível, interessa por exemplo dar bom dia, boa tarde, perguntar como é que você vai, olhar nos olhos das pessoas. Você não só olha pra pessoa quando você tem interesse nela, você olha pra pessoa quando você tem interesse de estabelecer diálogos, e eu acho que o que eu faço preza pela construção de diálogos, quando eu permito que outras pessoas participem do meu universo. E a gente tem que estar muito atento, eu tento estar o mais atento possível, de não estar alimentando monólogos. E eu sempre acho que o diálogo exige pactos, conversas, com verso, é comungar, isso eu acho que é uma coisa boa, você escutar, você fala e você escuta, é comunicação.
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Edição: Marcelo Ferreira