Helena Soares Meireles, 44 anos, mulher trans, negra, arte-educadora e professora em uma escola municipal na Restinga, foi vítima de transfobia em um shopping de Porto Alegre. No feriado de 1º de Maio, ela foi abordada por um segurança já dentro do banheiro feminino do local. O fato gerou um protesto diante do centro comercial.
No mês em que se comemora o Dia Internacional de Combate a LGBTfobia (17 de maio), o Brasil de Fato RS conversou com Helena. Ela contou o que é ser uma mulher trans no Brasil, sempre sob o medo da violência no país que, pelo quarto ano consecutivo, é aquele onde mais se mata pessoas LGBTQIA+ no mundo e responsável por 33% das mortes em escala global. De acordo com o dossiê elaborado pelo Observatório de Mortes e Violências contra LGBTI+ no Brasil, 316 mortes e violências de pessoas LGBT foram registradas em 2021.
Abaixo a entrevista completa
Brasil de Fato RS - No início deste mês tu fostes vítima de transfobia ao acessar o banheiro feminino do shopping João Pessoa. A alegação da administração foi de que a ação do segurança aconteceu após uma cliente dirigir-se a funcionários do shopping afirmando que havia uma "presença masculina no banheiro feminino", e de que o segurança não sabia quem estava dentro do banheiro. Queria que nos contasse sobre esse episódio e seus desdobramentos.
Helena Meireles - Eu acho muito importante lembrar que a transfobia é crime previsto em lei, e como todo crime, ele pode ser culposo, com a intenção ou sem. Eu acho muito interessante as respostas dessas instituições, a maneira como são colocadas se afastando desses pressupostos do que é realmente o fato e o crime. Houve um crime de transfobia, isso é um fato. É um fato nas respostas que eu tive no dia, e da maneira como tudo aconteceu.
Estas pessoas que causaram a violência são tão vítimas quanto eu, no sentido de fazerem parte de uma estrutura
A administração não estava no dia em que sofri o ato de transfobia através de um segurança que não apontou uma cliente como sendo a pessoa que foi fazer a denúncia de que havia um homem no banheiro e sim a moça da limpeza. Ela estava na porta quando eu sai do banheiro desesperada querendo saber quem era o segurança que tinha entrado no banheiro. Eu estava no último sanitário, ouvi o som da voz dele, aumentando, falando, repetindo a frase, chamando pelo "mestre", como se estivesse falando com outro homem, em um boteco. Dizendo para o “mestre” que ali não era o banheiro dos homens.
Antes da batida na porta eu já tinha deduzido que era comigo, porque no banheiro não havia nenhum outro ruído. Já vivi isso outras vezes porque a gente vive em uma sociedade binária onde tem que ser uma coisa ou outra, homem ou mulher. E se é homem tem determinados estereótipos e se é mulher são outros. E quem determina isso é essa estrutura, essa mesma que me violentou e que está representada ali, na figura desse shopping. E eu não digo das pessoas que causaram a violência porque são tão vítimas quanto eu, no sentido de fazerem parte de uma estrutura.
Estamos no país que mais mata mulheres e homens trans, mulheres travestis com requintes de crueldade. E a gente insiste em viver nessas instituições, nessa estrutura, que insiste nesse discurso que somos todos iguais, quando na prática não temos as mesmas oportunidades, não podemos frequentar com a mesma naturalidade determinados espaços.
Corpos como o meu estão à mercê do que o outro entende como humanidade
Abordei o segurança e ele disse que não tinha entrado no banheiro. Pedi para falar com a gerência e ele chamou o chefe de segurança e foi aí que fui mais exposta quando eu tive que novamente contar o episódio. Inicialmente ele queria contar o ocorrido, eu interrompi e disse que a vítima era eu. Ao final de uma ata muito estranha, onde o chefe de segurança ficou tentando me convencer de que aquilo foi apenas um erro, que talvez não tivesse sido na proporção que eu estava colocando. Isso também é muito comum nessas violências.
Pedi que ele me desse uma cópia e ele negou. Pedi para tirar foto do documento e também negou. Naquele momento eu me dei conta que aquela situação de transfobia continuava e que eu poderia estar em risco. Corpos como o meu estão sempre nesses espaços à mercê do que o outro entende como humanidade.
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Estamos nessa batalha de responsabilização dessa estrutura, e essa estrutura é o shopping sim que até hoje não entrou em contato comigo. É preciso aceitar que foi um ato de transfobia. E a partir de então, repensar, refletir e se utilizar deste lugar de representação, de poder, para efetivamente efetuar ações de transformação que acolham e que respeitem esses corpos de diferentes humanidades.
BdFRS - Que outros episódios de transfobia já vivestes?
Helena - A primeira coisa que me vem à mente, que ouvi em consultas psicológicas, é o fato de pessoas de corpos como o meu viverem em estado de violência. Minha vida é de alguém que vive em estado de violência. Foi tão chocante de escutar porque foi como se eu estivesse olhando para um espelho, e passando um filme da minha vida. De todas as violências que eu sofri desde que eu era criança, adolescente.
E quando falo em mim isso reflete além. É sobre esses corpos trans, travestis. E se esses corpos forem pretos, que não é um recorte, é a base dessa estrutura, o racismo, a raça, essa divisão pela cor, isso é muito maior. A violência não é só sobre nossos corpos. É sobre as nossas subjetividades, a nossa mente. A nossa saúde mental vai sendo debilitada. Muitas vezes, todas essas questões aparecem no nosso corpo através desse silenciamento que a gente acaba fazendo. Porque denunciar esses atos de violência é se confrontar com toda uma estrutura. Uma violência que vai se perpetuando por todos os lugares que eu tenho que passar.
Há um episódio de transfobia que sofri em 2020, durante a pandemia, quando tive que acessar o SUS, em um bairro da periferia de Porto Alegre. Estava em um evento religioso, de santo, que não envolve bebida alcoólica, e passei mal. Fui levada às pressas à UPA. Minha roupa foi rasgada, escutei comentário que estava fedendo à bebida, que provavelmente deveria estar em alguma festa. Na sequência, um técnico em enfermagem ficou o tempo todo me tratando no masculino. Eles me tiraram da emergência porque a enfermeira insistia que eu não precisava estar ali. Me deixaram no corredor. Deram-me uma roupa de achados e perdidos e, em ato de desespero, saí caminhando em direção à minha casa. Não consegui voltar lá. Foi um caso em que eu silenciei.
Apesar de todas essas violências eu procuro ter uma vida que não foque nessas violências e nessas mazelas para além do que eu sofro. E sim procuro os territórios que são próprios, que dizem respeito ao meu entendimento enquanto um corpo preto, trans, um corpo guardião. É nesse sentido que eu procuro celebrar a vida.
BdFRS - Qual é a realidade atual sobre a violência contra as pessoas trans no estado?
Helena - O que posso dizer é que a expectativa de vida de pessoas trans travestis é de 36 anos. Estamos no mês do combate à LGBTFobia e acho importante lembrar que hoje (11) tem o lançamento nacional do Dossiê de Mortes e Violências contra LGBTQIA+. É uma pesquisa que traz dados de 2021. Ainda sobre essa questão, lembro da Lei Maria da Penha para pessoas trans e travestis. É mais possibilidade de proteção de todas as mulheres, respeitando a identidade de gênero e que vem por decisão do Supremo Tribunal Federal. São três situações para ressaltar no mês do combate à LGBTFobia.
É mais difícil quando corpos trans tentam se colocar em espaços de poder
BdFRS - Em 2020, poucos dias antes do mundo se voltar para dentro de si, por conta da pandemia, tu conversastes conosco. Tomamos como abertura daquela entrevista a seguinte frase tua: “Nós somos o corpo coisificado, o corpo fetiche”. Nesse espaço de tempo, quais mudanças aconteceram?
Helena - Acho, por exemplo, que o dossiê prevendo o acompanhamento dessas violências sobre corpos LGBTQIA+ e a própria (extensão da) Lei Maria da Penha. Importante salientar a entrada de um número significativo de mulheres trans e travestis na política. Acredito que há muito essa relação, a ideia de que nada sobre nós sem nós. Pleitear esses lugares de poder, de representação. Conseguir uma melhora da organização cultural, política, educacional, do mercado de trabalho, entre outras coisas, relativa à existência de pessoas trans travestis.
:: “Nós somos o corpo coisificado, o corpo fetiche”, constata a trans Helena Meireles ::
Há as festas populares, o Carnaval, e dentro desses lugares até temos espaço. Mas é muito mais difícil, mais emblemático, mais tenso quando a ideia é que esses corpos, esses corpos trans travestis, se coloquem nesses lugares de representação, poder e disputa de poder, de narrativa.
BdFRS - Em abril deste ano, o STF, por unanimidade, estabeleceu que a Lei Maria da Penha é aplicável à violência contra mulher trans. Qual o significado dessa decisão?
Helena - É um significado muito grandioso, muito revolucionário. É a instituição, a estrutura, reconhecendo a necessidade de acolhimento de mulheres de diferentes identidades de gênero. E dessa proteção que prevê medidas mais duras ao agressor. Entre outras coisas, como ele ser proibido de se aproximar da vítima.
Ela (a denúncia da violência) pode ser feita nas delegacias de mulheres de minorias e, se não houver, até na delegacia comum. Reconhece, de alguma forma, a importância de se validar e proteger essas diferentes humanidades a partir da perspectiva de uma lei.
Quando uma irmã ou um irmão trans são questionados pelo uso de um banheiro é uma violência estrutural
BdFRS - Ainda sobre a questão da violência: os feminicídios de mulheres trans não são computados nos registros oficiais. No Rio Grande do Sul, o Levante Feminista, através do projeto Lupa Feminista, faz o registro dos casos. Como essa invisibilidade afeta a vida das mulheres trans?
Helena - Esta não-computação também escancara essa outra realidade. Que é a da invisibilização desses corpos. Do quanto esses corpos não são vistos como humanos. E o reconhecimento dessa humanidade vai desde o não reconhecimento do uso de uma pessoa trans/travesti de um banheiro até o ataque físico a um corpo trans travesti pelo simples fato desse violador se colocar nesse lugar de possibilidade de violentar esse corpo.
Quando um irmão trans é proibido de usar um banheiro masculino ou quando uma mulher trans é questionada por usar o banheiro feminino, ambas são violências estruturais. E aí essa estrutura tem que ser responsabilizada. Ela pode ser advertida, ser processada e também ser levada a se repensar pedagogicamente sobre as ações que ela pode fazer, implementar enquanto instituição, para criar um ambiente mais inclusivo e equitativo para essas diferentes humanidades.
Às vezes, é preciso escolher a menor violência em vez de perder a vida
BdFRS - Quais atitudes uma pessoa trans deve tomar em situação de agressão? O que deve fazer?
Helena - Posso te dizer o que eu fiz. E que foi uma dor muito grande naquele 1º de Maio. Foi um dia em que cansei, cheguei no meu limite. E, no meu limite, resolvi brigar. Não vou dizer o que as pessoas trans devem fazer. Existem muitas formas, como disse aos meus alunos, de sermos pessoas, homens, mulheres, homens trans, mulheres trans. E cada uma vai reagir de um jeito. Mas é preciso que as pessoas trans, homens, mulheres, saibam dos seus direitos e saibam como devem reagir a atos de agressão. Porque muitas vezes é melhor inclusive não fazer nada, para continuar vivo ou viva.
Às vezes, é preciso escolher a menor violência. Ficar com aquela violência em vez de perder a vida. E aí entra uma frase que eu escutei em um acompanhamento psicológico: a gente vive em violência porque muitas vezes silencia, porque é mais fácil silenciar. E estou tendo a prova do quanto mexer nessa estrutura é adoecedor. A gente não tem um descanso. Não consegue parar.
A Imperadores foi visionária colocando juntas mulheres trans e mulheres cis
BdFRS - Tu és a Rainha da Diversidade da Escola Imperadores do Samba, de Porto Alegre. Nos fale um pouco sobre o desfile deste ano que teve como enredo "Um Espetáculo Entre os Palcos da Cidade".
Helena - Sempre me emociona falar sobre isso. O território da escola de samba é um território negro. Por si só, sempre foi o meu território, mas que eu havia abandonado, eu havia fugido. Era mais um território em que não me reconhecia diante dessa interseccionalidade de gênero enquanto uma mulher trans.
Anos depois consegui realizar esse sonho que é o de toda menina, de ser princesa, de ser rainha. Aos 44 anos, eu estava realizando esse sonho de ser rainha de uma das escolas de samba mais tradicionais da cidade.
Como tem sido nos espaços pelos quais tenho passado, acho que a minha presença tem sido pedagógica. Não foi diferente na Imperadores do Samba. Nós aprendemos juntos, juntas, juntes. Para uma entidade como a escola de samba acolher um corpo como o meu é também combater as violências às quais esse corpo está exposto, inclusive dentro da Escola. E nisso a Imperadores foi brilhante. Fez um concurso inclusivo sim, porque colocou mulheres trans juntas com mulheres cis e não fez nenhuma distinção, mas respeitou as diferenças de todas, fazendo a distinção na hora da escolha, dizendo sim, essa também é a nossa rainha e ela é uma mulher trans.
A Imperadores acolheu UM corpo trans E preto, que dentro da sigla LGBTQIA+ é um dos corpos mais violentados. A Imperadores do Samba foi visionária nisso. As meninas que organizaram o concurso, a Saionara que, até onde sei, faz parte da equipe diretiva da escola, foi quem teve a ideia de colocar uma mulher trans como rainha, as meninas da frente da bateria, Lisiane, Fernanda, Andreza, que coordenaram o concurso, Priscila, musa da escola, que deu todo o acolhimento também. São tantas pessoas. Hoje me sinto acolhida por essa escola. Para um corpo trans falar em acolhimento, é falar em respeito e principalmente falar em família. A Imperadores hoje também é a minha família.
BdFRS – E, por fim, o que gostarias de acrescentar?
Helena - Voltei para a escola depois desse episódio violento que passei. Senti muita saudade dos meus alunos. Pensando em uma filosofia de vida africana, uma espiritualidade africana, as crianças são os nossos ancestrais mais potentes no sentido de estarem mais próximas do Orum, porque são recém-vindas do Orum. E aí eu tenho um respeito muito grande pela criança. Através daquele corpo frágil e pequeno, é um ancestral antigo que fala. Sentia que precisava voltar por eles, mas precisava voltar principalmente por mim. Precisava dessa energia que eles me deram. Eu senti muito carinho.
E a gente começou a aula conversando sobre uma pergunta que uma das meninas fez: porque eu não tinha vindo dar aula na semana passada? Vi a possibilidade de explicar para eles o que é um ato de transfobia. De dizer o que é ser uma mulher trans. Para levar eles a pensar que nós não somos iguais, que isso é uma mentira, que nós somos diferentes em tudo, e que ainda assim nós temos que ser respeitadas, respeitados e respeitades.
É isso que a gente está precisando. De um olhar mais acolhedor. De mais educação, mas a educação com esse olhar de construção, reflexão e possibilidades
É uma conversa linda. É quando eu escuto de uma das meninas que já tinha percebido que eu era diferente, mas que tinha receio de me falar. Digo que entre nós não há esse problema desde que haja respeito. E uma outra levanta a mão e diz que o importante é o amor que eles têm por mim.
É isso que a gente está precisando. De um olhar mais acolhedor. De mais educação, mas a educação com esse olhar de construção, reflexão e possibilidades. Educação não pode ser esse lugar de negação, de justiça, de punição. Educação tem que ser um lugar de evolução, afeto e confiança. É isso.
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Edição: Ayrton Centeno