O caso de Raí Duarte segue sem explicações por parte da Brigada Militar. No dia 1° de maio ele esteve em Porto Alegre, junto de outros torcedores do clube de futebol Brasil de Pelotas, para assistir a uma partida do seu time contra o São José. Conforme apurou o repórter Gustavo Pereira, do Diário Popular, Raí foi retirado por policiais de um dos ônibus de excursão que visitava a Capital, já depois do fim da partida.
Outros torcedores que estavam no ônibus e também foram retirados relataram terem sido vítimas de tortura física e psicológica, sendo que Raí foi o que sofreu os piores traumas. Após a ação dos policiais, Raí precisou ser deixado no Hospital Cristo Redentor, ainda em Porto Alegre, onde foi constatado que ele estava com o intestino rompido e hemorragia interna. Ele passou por duas cirurgias e, desde então, está sedado e inconsciente.
A reportagem do Brasil de Fato RS confirmou, na tarde desta quarta-feira (11), com a assessoria de imprensa do hospital, que o estado de Raí segue grave: ele está internado, inconsciente, na UTI.
A família de Raí está arrecadando doações para arcar com os deslocamentos e hospedagens na Capital. O Pix pra doação é o CPF 550.289.420–72, no nome da mãe de Raí, Marta Moraes Cardoso.
Corregedoria-Geral deve investigar as responsabilidades
Ainda conforme apuração do repórter Gustavo Pereira, foi instaurado inquérito, ainda no dia 2, para apurar as responsabilidades do ocorrido. Após, houve mudança no responsável pela investigação: o tenente-coronel Luis Felipe Neves, comandante do 11º BPM, deixou a presidência do inquérito, passando para a Corregedoria-Geral da Brigada Militar, órgão de correição e controle da instituição policial.
Com base nessa informação, a reportagem buscou saber com a Corregedoria quais motivos levaram a esta troca de comando. Também saber em que ponto está a investigação, visto que já passaram dez dias do ocorrido, e se a prática de tortura está entre as condutas possivelmente investigadas.
Em contato telefônico com a Corregedoria, foi informado que a assessoria de imprensa da BM deveria ser contatada. Feito o chamado, foi solicitado que os questionamentos deveriam ser encaminhados para um contato específico, que seria o telefone do Setor Jurídico do Departamento Administrativo da BM. Por este método, não foi possível o contato, até o fechamento desta matéria, pois o telefone encontrava-se desligado e o Whatsapp correspondente não recebe as mensagens.
Violência policial é um problema em todo Brasil, afirma especialista
Para o especialista em segurança Marcos Rolim, a escalada de violência que se vê nos estádios corresponde a um aumento de violência que o Brasil vive. Rolim é doutor em Sociologia, professor do Mestrado em Direitos Humanos da UniRitter e membro fundador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e concedeu entrevista ao programa Contraponto da RádioCom Pelotas.
Ele afirma que os indicadores sugerem que a sociedade brasileira vive um adoecimento com aumentos das manifestações violentas, em um contexto geral de violência que repercute na atuação dos próprios policiais. Sobre as afirmações de que o caso de Raí e dos outros torcedores do Brasil de Pelotas corresponde à pratica de tortura pelos policiais, Rolim comentou que tudo o que sabe é aquilo que a imprensa está divulgando.
"Temos que ter muito cuidado para não condenar ninguém antes das investigações e das provas. Assisti à declaração do Comandante-Geral afirmando que a BM não tem compromisso com erros, o que considerei uma boa afirmação", avalia. Rolim espera que a afirmação do Comandante signifique o compromisso da instituição em investigar a fundo o que de fato aconteceu e quais foram as responsabilidades dos profissionais da ponta e da cadeia de comando.
Porém, ressalta que os indícios que se tem até agora "são muito fortes de que pode ter havido um ato de abuso de violência policial e de tortura" e que esta análise é feita sem prejulgamentos, pois novos fatos podem surgir e trazer novas interpretações.
Também explica que a tortura não é somente um procedimento quando se busca uma confissão. De acordo com a lei brasileira, tortura é também submeter uma pessoa a grave sofrimento físico ou psíquico, inclusive com a intenção de punição.
"Se uma autoridade policial estabelece a ação de bater em uma pessoa com objetivo de puni-la, isso pode ser enquadrado como tortura", argumenta.
Nesse caso, Rolim expressa preocupação em uma situação onde as instituições policiais, ao invés de proteger as pessoas, acaba as mandando para a UTI. Ele salienta que essas mesmas instituições são órgãos fundamentais para a democracia.
Recorda que há imagens que demonstram Raí sendo retirado de seu ônibus por policiais, de forma que, a partir daquele momento, ele estava sob a guarda da BM, que passou a ser responsável por ele.
"O fato de, até agora, não termos um relato minimamente coerente sobre o que aconteceu reforça os indícios da gravidade do que deve ter acontecido (...) Nenhuma instituição está livre de abusos, a questão é como ela responde a esses fatos", contextualiza.
Na sua opinião, se a BM der uma resposta rigorosa, será dada uma mensagem aos outros servidores de que a instituição não tolera esse tipo de ato. Caso contrário, se a atitude for de acomodação, a mensagem também será oposta, no sentido de que essas situações continuarão acontecendo.
Uma reforma na polícia é possível?
Marcos Rolim considera que a reforma das polícias é um tema que deveria ser mais discutido no país. Segundo ele, o Brasil tem um modelo de polícia que é único no mundo.
"Temos, em cada estado do país, duas polícias que são, na verdade, duas 'metades'. Cada uma delas faz um ciclo do policiamento, um modelo que vem do Império: uma polícia faz a investigação criminal e a outra faz o policiamento ostensivo", afirma.
Ressalta que a Polícia Militar, que realiza a parte ostensiva, e que tem o maior efetivo, está proibida de realizar investigações dos crimes. Pode, portanto, só fazer prisões em flagrante, que ocorrem em até 24 horas depois do fato.
"Se a Polícia Militar só pode fazer prisões em flagrante, ela só pode prender quem está na rua, em geral pessoas pobres. Nunca vai prender um empresário sonegador ou algum traficante que viva em um condomínio de luxo. O sistema de funcionamento desse modelo direciona a atividade para a repressão aos pobres", afirma.
Destaca que as polícias em outras partes do mundo têm o chamado "ciclo completo de policiamento", pois investigam, realizam prisões, fazem repressão, prevenção, etc. No Brasil, em sentido contrário, argumenta Rolim, há uma disfuncionalidade: a PM efetua uma prisão e conduz a pessoa até uma delegacia para lavrar um auto de flagrante, um processo que pode demorar muitas horas. A Polícia Civil, em seu turno, está sobrecarregada de inquéritos. Ao não conseguir dar conta dessas investigações, o resultado é a impunidade.
"Para piorar, temos, dentro de cada instituição policial, uma outra invenção brasileira: há duas carreiras distintas, duas portas de entrada diferentes. Na PM temos o soldado e o oficial. Na Polícia Civil, da mesma forma, temos as carreiras inferiores e a de delegado."
Dessa forma, argumenta que há uma falta de perspectiva para os policiais. Os soldados, por exemplo, aguardam sete anos para poderem se tornar sargentos, de forma que acabam por buscar outras oportunidades melhores.
Na outra ponta, comandando as corporações estão profissionais que não tiveram a experiência da rua. Segundo Rolim, em outras partes do mundo, as polícias funcionam com uma única porta de entrada, de forma que a pessoa, ao entrar na corporação, sabe que terá uma carreira para progredir. Da mesma forma, aqueles que estarão em cargos de comando, já têm experiência acumulada.
"É importante lembrar, quando falamos de violência policial, que esses policiais muitas vezes são vitimados pela violência dentro das suas corporações, (...) muitas vezes não têm seus direitos respeitados. É muito provável que ele, na rua, vá reproduzir isso no tratamento com os cidadãos. É um tema fundamental a reforma das polícias", conclui Rolim.
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Edição: Marcelo Ferreira