Rio Grande do Sul

PAPO DE SÁBADO

“Vivemos a era de Deus no comando, bandido no desmando”, diz Castelo

Para o humorista, cronista, letrista e escritor, o Brasil já foi uma anedota ácida mas hoje é uma piada de mau gosto

Brasil de Fato | Porto Alegre |
O colunista do Brasil de Fato RS, Carlos Castelo é escritor, jornalista, publicitário e compositor - Divulgação

Piauiense de Teresina, ele virou paulistano da Lapa aos dois anos e, logo, Palmeiras desde sempre. O piauiense, paulistano e palmeirense Carlos Castelo é jornalista, cronista, escritor, publicitário e letrista afiado. Passando-se para as bandas da publicidade, nunca deixou de ser cronista e um arguto observador da cena brasileira. Colaborou com Pasquim 21, Caros Amigos, Playboy, Jornal da Tarde, Bravo! e outras publicações. Atualmente, além do Brasil de Fato RS, é colunista do Estadão, Cult e Brasil 247.

No final de 2019, deu vazão a mais uma faceta da sua criatividade e apresentou seu primeiro álbum solo. Bossa “n” humor é uma sátira à bossa nova com as participações luxuosas de André Abujamra, Vânia Bastos, Carlos Careqa e Cristina Azuma. Agora, embora continue seduzido pela linguagem do humor, está lançando Palavrório, um livro de poesia. Mas confessa que tem dificuldades consideráveis para se afastar da galhofa.

Nos parágrafos seguintes, nosso entrevistado fala sobre censura na ditadura, as letras hilárias de seu grupo, o Língua de Trapo, e sobre o que custa fazer graça no Brasil destrambelhado de 2022.

Brasil de Fato RS - Você está lançando um novo livro de humor. Mas o Brasil ainda tem graça?

Carlos Castelo - Esse meu novo livro, Palavrório, é de poesia. Não diria que é uma obra propriamente humorística, talvez seja mais irônica do que cômica. Apesar de que não consigo me afastar muito da linguagem do humor, confesso. Não sou eu quem me navega, é a mofa que me conduz.

Sobre o Brasil, mesmo nos momentos mais trágicos, como os que estamos vivendo, nunca falta régua e compasso para a sátira, o sarcasmo. Em 522 anos, em alguns momentos fomos uma piada hilária, outras vezes, uma anedota ácida. E, em certas ocasiões, como agora, uma piada de mau gosto. Seriedade, no entanto, em especial na coisa pública, estão nos devendo desde a carta de Caminha.


Palavrório é o novo livro recém lançado por Castelo / Foto: Divulgação/ Editora Urutau

BdF RS - Na condição de humorista estabelecido na praça desde o século passado, com bom nome a zelar e com a necessidade de levar o pão nosso de cada dia para casa, como você encara a concorrência desleal desses amadores localizados na Esplanada dos Ministérios que fazem humor gratuito?

Castelo - Encaro como mais um crime daqueles comediantes da atual Praça de Guerra dos Três Poderes. Infelizmente, para os que defendem o indulto desses assediadores da democracia, a promoção de concorrência desleal é o menor dos delitos. Vivemos a era de “Deus no comando, bandido no desmando”.

Outro dia entrei num supermercado e comecei a rir. De nervoso

BdF RS - Do que que faz falta rir no Brasil? O que é muito engraçado e talvez a gente não esteja prestando atenção?

Castelo - Não sei se seria propriamente engraçado, mas outro dia entrei num supermercado e comecei a rir. De nervoso. Foi quando percebi, naquela prateleira de vidro que fica trancada ao lado dos caixas, alguns sacos de feijão ao lado das garrafas de whisky escocês. Continuei rindo nervosamente ao notar um pacotinho de cenouras do preço de uma garrafa de vinho. Comecei a chorar mesmo quando vi o tomate quase valendo um lingote de ouro daqueles pastores do MEC. No final, não consegui comprar nem uma caixinha de lenços de papel para enxugar as lágrimas.

BdF RS - Você tem 16 livros editados mas seu começo foi como letrista do grupo paulistano Língua de Trapo com crônicas ácidas e bem humoradas de fatos da atualidade lá no período complicadíssimo da ditadura militar. Como era a relação do grupo com a censura?

Castelo - Nós vivenciamos, como dizia a frase feita da época, os estertores da ditadura. Basicamente, o final do período Geisel e todo o do Figueiredo. Mesmo com a Anistia, Diretas Já, não era fácil ser artista, protestar etc. Quando eu estava na faculdade de Jornalismo, sumiram dois colegas nossos. A repressão nunca baixou a guarda.

Foi a censura que teve problemas com o Língua de Trapo

BdF RS - Quantas músicas teve censuradas? Qual os motivos alegados? Tem um bom caso para contar?

Castelo - É difícil quantificar, foram inúmeras, desde a fase "festivais universitários” que participamos, onde quase todas voltavam vetadas de Brasília.

Das que foram gravadas: "Quem ama, não mata", no primeiro disco; "Donos do Mundo", "Amor à Vista" e "Como é bom ser punk”; no segundo, "Grito", "Marcinha Ligou” e "Merda”; no terceiro disco, este lançado em 1986, já no apagar das luzes da ditadura.

No caso de letras de músicas, a censura federal não alegava os motivos, apenas carimbava "Vetado" ou "Liberado".

Porém, quando nos perguntam se tivemos problemas com a censura, costumamos responder que foi a censura que teve problemas com o Língua de Trapo. Um exemplo. Se uma música era censurada, nós usávamos o estratagema de trocar o título e ver se o censor cochilava. Foi assim com uma letra chamada “Sapore di veneno”. Ao receber o “Vetado”, mudamos o título para Concheta e a reenviamos ao órgão. Ela acabou liberada e virando uma das canções mais populares do Língua de Trapo.

A música que mais gosto é o Samba Enredo da TFP

BdF RS - Aliás, quantas músicas já compôs para o Língua de Trapo, qual a que mais gosta e quais seus versos favoritos?

Castelo - Gravadas, pelo Língua de Trapo, tenho cerca de 30 músicas. Mas muitas das minhas composições foram apresentadas apenas em shows. Isso porque o grupo tinha uma característica muito a ver com o DNA de seus componentes, a maioria jornalistas. Nós pegávamos algumas “pautas” da semana em que íamos nos apresentar e transformávamos em músicas. Se houvesse algum escândalo, um fato importante ligado ao regime, a letra era feita a toque de caixa, a melodia encaixada, e a cantávamos quase sem ensaio no palco. Era como uma crônica musical.

Ficou marcado para mim um show para o qual compus uma marchinha chamada “Queremos luz!”. Foi logo em seguida ao inglório apagão promovido pelo general Newton Cruz, em Brasília. A marcha, cujo refrão era “queremos luz, libera aí, seu Newton Cruz”, teve no coro Chico Buarque, Dominguinhos, Fagner e os irmãos Paulo e Chico Caruso. O teatro lotado, totalmente às escuras, iluminado somente pelos isqueiros do público, veio abaixo.

A música que mais gosto é “Samba Enredo da TFP” (no disco está TRP), em parceria com Laert Sarrumor. Os versos favoritos também são dela e dizem: “e hoje sou fascista na avenida / minha escola é a mais querida / dos reaça nacional”.

O próximo livro é de senryu, o haicai japonês profano

BdF RS - O Língua de Trapo lançou seu álbum O Último CD da Terra que acabou indicado ao Grammy Latino em três categorias: Melhor Álbum do Ano, Melhor Álbum Pop Contemporâneo em Língua Portuguesa e Melhor Arte de Capa. Como aconteceu isso?

Castelo - Sinceramente, também não sei como isso aconteceu. O Língua de Trapo e o Grammy Latino são como o Mário Frias e a Lina Bo Bardi, não nasceram um para o outro.

BdF RS - E o próximo livro já está engatilhado?

Castelo - Sim, sai esse ano ainda pela editora Laranja Original. É um livro de senryu, o haicai japonês profano. A diferença é que ele tem linguagem coloquial, conteúdo humorístico, irônico, satírico ou filosófico. De forma epigramática, o senryu fala do cotidiano, dos costumes, hábitos do homem e da sociedade. Fiz um exercício de tropicalizar o gênero transformando-o em humor nipo-brasileiro.


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Edição: Marcelo Ferreira