Rio Grande do Sul

Vida das Mulheres

Dossiê sobre feminicídios no RS será lançado nesta segunda-feira (9) na Assembleia Legislativa

O Brasil de Fato conversou com organizadoras do documento que denuncia o aumento das mortes e a quase ausência do estado

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Em 2022 já ocorreram 36 feminicídios no estado, de acordo com a Lupa Feminista - Giorgia Prates - BdF PR

Marcia Fernandes Ferreti, 41 anos, foi espancada até a morte em 1º de maio, pelo companheiro, na cidade de Serafina Correa (RS). Luanne Garcez da Silva, 27 anos, foi asfixiada até a morte, em 10 de abril, pelo namorado. Elas são duas das 36 vítimas de feminicídio no estado desde o início do ano, segundo levantamento da Lupa Feminista. Pelos dados oficiais do Observatório da Violência contra a Mulher da Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul (SSP/RS), de janeiro a março deste ano o RS já registrou 27 feminicídios, 35% a mais que no mesmo período do ano passado, em que foram computados 20 casos. 

Em todo o ano passado foram registrados 97 feminicídios no estado, incluindo aqueles cometidos contra as mulheres trans (2), enquanto em 2020 foram 80. Em todo o país, ainda no ano de 2021, foram cerca de 1.350 feminicídios - uma média de uma mulher morta a cada 7 horas -, deixando cerca de 2.300 órfãos e órfãs, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

“É uma violência que recrudesce, uma violência que atinge nossas mulheres, meninas, mulheres indígenas. São muitos âmbitos em que precisamos atuar de maneira mais coordenada”, destaca a deputada estadual e responsável pela Procuradoria da Mulher da Assembleia Legislativa do RS, Sofia Cavedon (PT). A fim de debater como enfrentar esta realidade, a Procuradoria realiza, na próxima segunda-feira (9), uma audiência pública onde será apresentado um Dossiê sobre o feminicídio no estado. O evento foi solicitado pela deputada federal, Maria do Rosário (PT). 

“Nesta segunda teremos uma audiência pública em parceria com o Congresso Nacional, uma audiência encaminhada por mim em que o Levante Feminista do RS fará apresentação do Dossiê do Feminicídio", explica Sofia. "Nossa expectativa é que ele evidencie a fragilidade da rede de proteção, a quase ausência de investimentos na proteção de mulheres em retaguarda e, mais ainda, as dificuldades de implementação de politicas de prevenção", completa

Segundo a deputada estadual, o Dossiê vai trazer elementos para o debate e comprometer a Assembleia Legislativa com mais força, para "fiscalizar e pressionar o Executivo para atuar na questão da prevenção à violência contra a mulher”.

O Dossiê será apresentado por um conjunto diversificado de mulheres que o elaboraram a partir dos dados do observatório Lupa Feminista Contra o Feminicídio, especializado no tema. A apresentação acontecerá na Sala de Convergênca da ALRS (Adão Pretto), a partir das 14h,  com transmissão ao vivo pela TV Assembleia, também disponível no Youtube.

Para trazer mais informações, o Brasil de Fato RS conversou com duas mulheres responsáveis pela elaboraçã do Dossiê: a psicóloga, mestra em Psicologia Social e Institucional, coordenadora da Lupa Feminista contra o Feminicídio, integrante do Coletivo Feminino Plural, Thaís Pereira Siqueira; e com a jornalista, escritora, ativista feminista, delegada regional Pelotas do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do RS, Niara de Oliveira. Niara também é uma das escritoras do livro Histórias de morte matada contadas feito morte morrida, que aborda como como a imprensa relata os casos feminicídios. 


"As pessoas ainda não entendem que esse é um crime de ódio e que independe dos atos, postura ou situação da vítima" / Foto: Divulgação

Abaixo a entrevista completa

Brasil de Fato RS - Qual a importância do dossiê? 

Thaís Pereira Siqueira - O dossiê é importante na medida que congrega diversas informações que estão circulando há muito tempo, encabeçadas pelo Levante Feminista contra o Feminicídio, e denuncia o desmantelamento de rede de enfrentamento à violência contra as mulheres no RS. Informa as autoridades sobre a gravidade do problema e exige medidas, ações executáveis e concretas. Ou seja, não é novidade o conteúdo, o que seguimos é a luta pela vida das mulheres e meninas. 

Niara de Oliveira - Os dados que reunimos deveriam estar compilados pelo estado, que é quem tem a obrigação de promover políticas públicas no enfrentamento ao problema, para que mulheres não sejam assassinadas por serem mulheres. Então, a importância desse dossiê é dupla: pela denúncia do estado não cumprir a função de defesa da vida de mais da metade da população e do movimento de mulheres ter ele mesmo o seu levantamento de dados para análise. 

Até agora, da parte do governo só há desmonte e sucateamento

BdF RS - Como estão os registros dos feminicídios? 

Thaís - Nós enquanto Lupa Feminista acompanhamos o registro dos feminicídios pela imprensa e pelos dados disponibilizados pelo Observatório da Violência contra a Mulher da SSP/RS. Até o presente momento temos dados até o mês de março divulgados pelo governo. Enquanto Lupa, encontramos 8 feminicídios em abril e 1 feminicídio já no dia 1º de maio. Assim, em 2022 já são 36 feminicídios, mulheres que morreram por serem mulheres, na maioria dos casos por dizer não, por serem consideradas propriedades de homens que não aceitavam o fim do relacionamento. 

Porém, não vai surpreender se na divulgação mensal da SSP/RS esses números forem maiores, infelizmente. Nem todos os casos são divulgados na mídia. Os transfeminicídios nós acompanhamos através dos boletins divulgados pela ANTRA (Associação Nacional de Transexuais e Travestis) divulgados anualmente. Em 2021, foram quatro pessoas trans assassinadas no RS. Destes casos encontramos na imprensa apenas dois.

Niara - Encontramos alguns problemas nos registros de feminicídios. É preciso olhar para os casos com enfoque de gênero, para que crimes com sinais muito nítidos de misoginia (ódio pelas mulheres e naquilo que nos caracteriza como mulheres), como a destruição (ou tentativa de) de vagina, seios, rosto, cabelo, não acabem registrados como homicídio em decorrência da guerra do tráfico, latrocínio, etc. 

Quando ouvimos gritos na vizinhança temos que ter em mente que há naquela situação ao menos uma pessoa em desvantagem física e emocional precisando de ajuda

BdF RS - Como são feitas as investigações, processos e julgamentos? 

Thaís - Nós iniciamos esse trabalho da Lupa Feminista em agosto de 2021, sendo que nós a disponibilizamos para acesso no mês de novembro. Estamos focando neste momento nos dados, que sofrem pequenas alterações mês a mês de acordo com as investigações e demais procedimentos, segundo a divulgação da própria SSP/RS. O que a gente preconiza enquanto Campanha é que as investigações a respeito dos feminicídios sejam realizadas de acordo com as Diretrizes Nacionais para investigar, processar e julgar os casos de feminicídio com perspectiva de gênero.

Uma situação muito emblemática sob meu ponto de vista são os dados divulgados pelo Anuário de Segurança Pública (2021) que apontaram que, em 2020, foram registrados 3.913 homicídios de mulheres no país, destes, 1.350 foram considerados feminicídios, resultando em uma média de 34,5% do total de assassinatos de mulheres no país. Porém, 14,7% dos homicídios femininos foram cometidos pelo parceiro ou ex-parceiro e não foram enquadrados como feminicídios íntimos, que em números absolutos totalizam 377 mulheres. Por isso a importância de seguir as Diretrizes e não desqualificar o feminicídio. 

Niara - É muito pouco tempo de trabalho da Lupa para dar conta de todos os passos dos processos de feminicídio, desde quando começa a violência com ameaça de morte explícita ou não, o assassinato, inquérito até chegar no julgamento. Chegaremos lá. Uma demanda que está muito presente no dia a dia da Campanha e da atuação das ativistas do Levante Feminista é o acompanhamento dos julgamentos, com acolhimento às famílias nesse que é o momento mais difícil depois do assassinato da mulher. É um objetivo sistematizar esse acompanhamento numa espécie de protocolo nosso para dar conta de tantos casos. 

As leis e as políticas públicas demoram certo tempo para surtir efeito na cultura e para que as pessoas possam se apropriar, saber onde buscar os seus direitos, modificar formas de compreensão do mundo

BdF RS - Que medidas efetivas estão sendo tomadas? 

Thaís - Isso é o que nós estamos questionando enquanto movimento da Campanha Levante Feminista contra o Feminicídio. Mediante o cenário, quais medidas efetivas estão sendo tomadas? Pois de concreto, não estamos vendo nenhuma.

Niara - Essa também é uma pergunta nossa. Porque nos parece que não há medida nenhuma sendo tomada. Os recursos anunciados na renúncia do governador Leite ainda não chegaram em seus destinos e não há previsão de aplicação. Até agora, da parte do governo só há desmonte e sucateamento e da nossa parte denúncias e organização para tentar reverter esse cenário desesperador. 

BdF RS - De quem é a responsabilidade pelos feminicídios? 

Thaís - Vivemos em uma sociedade machista onde este modo de compreender as relações permeia as relações pessoais e as instituições, é necessário um exercício de desconstrução permanente. As leis e as políticas públicas demoram certo tempo para surtir efeito na cultura e para que as pessoas possam se apropriar, saber onde buscar os seus direitos, modificar formas de compreensão do mundo. Mas para isso, essas políticas, não só de enfrentamento mas de prevenção precisam existir.

Cabe lembrar que na Lei Maria da Penha está escrito que cabe ao poder público o desenvolvimento de políticas públicas para a garantia dos direitos das mulheres. Se isto não está sendo cumprido, o Estado é, juntamente com toda sociedade, quem banaliza, normaliza e culpabiliza as mulheres, é o responsável pela morte das mulheres e meninas vítimas de feminicídios. 

Niara - No global, a responsabilidade pelo feminicídio é da sociedade machista que não se repensa e não percebe que não existe “briga de casal”, mas violência contra a mulher. Quando ouvimos gritos na vizinhança temos que ter em mente que há naquela situação ao menos uma pessoa em desvantagem física e emocional precisando de ajuda. 

A Lei Maria da Penha permite que a denúncia seja feita por qualquer pessoa que ouça/veja uma mulher sendo agredida e em risco iminente de vida, mas até os serviços específicos de atendimento à mulheres em situação de violência ainda entendem que é responsabilidade da vítima a denúncia de seu agressor. Esse agressor é apenas o executor do crime, mas por trás da mão dele há uma cadeia de permissividade e normalização de todas as violências quando é contra uma mulher, que envolve até mesmo a imprensa que relata esse crime no mínimo corresponsabilizando a vítima pela sua morte. 

Quando ocorre um feminicídio, é comum perguntar e tentar descobrir qual a motivação. As pessoas ainda não entendem que esse é um crime de ódio e que independe dos atos, postura ou situação da vítima. Homens matam mulheres porque podem, porque se acham donos de suas vidas e corpos. Feminicídio não é motivado por ciúme ou por amor, é a mais pura expressão do ódio e da violência. Como dizia a aquela outra campanha de 40 anos atrás, “quem ama não mata”. A gente diz NEM PENSE EM ME MATAR, porque é importante deixar implícito que vamos reagir, que não deixaremos ficar impune e que estaremos sempre cobrando que o Estado cumpra seu papel em defesa da vida das mulheres.


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Edição: Marcelo Ferreira