É necessária uma moeda sul-americana, diante das pressões de bloqueios e sanções dos EUA e aliados
Este artigo da série sobre a economia política internacional diante da nova bipolaridade e da ordem financeira sob as sanções e bloqueios (rumando para autarquias armadas), traz a tão querida mirada latino-americana. Nossa descendência e múltiplas colônias árabes estão perfeitamente integradas e somos parte deste continente em seu esforço de mais de 525 anos por soberania e libertação. Na esfera econômica se trata do mesmo empenho e desafios ainda mais complexos, considerando a transnacionalização dos agentes econômico-financeiros e a subordinação de nossos países a carcomidas elites dirigentes com formação doutrinária no neoliberalismo. Vejamos a alternativa da moeda regional sul-americana.
O incansável jornalista Luis Nassif apesenta o resumo do artigo de Fernando Haddad e do economista Gabriel Galípolo, a respeito da necessidade de uma moeda sul-americana, diante das pressões de bloqueios e sanções promovidas pelos EUA e aliados. Segundo os autores, alguns aportes centrais poderiam ser garantidos pelo Brasil que:
“Poderia dar subsídios à criação de uma nova moeda digital sul-americana, a partir de sua experiência em diversas operações, como a adoção da URV (Unidade Real de Valor). Essa moeda seria emitida por um Banco Central Sul-Americano, e sua capitalização inicial seria de responsabilidade dos países-membros de forma proporcional à sua fatia no comércio regional. A capitalização seria feita com as reservas externas dos países ou por meio de uma taxa sobre as exportações para fora da região. Essa nova moeda poderia ser usada seja para fluxos comerciais ou para fluxos financeiros entre os países da região.”
Admito e reconheço que a proposta é bastante efetiva, mas que o “momentum” correto para aplica-la poderia ser dez anos atrás. A nova moeda seria utilizada para garantir os fluxos regionais de comércio, portanto trata-se de uma versão nova da tão propalada e nunca concretizada moeda aduaneira do Mercosul. Ou então, criar um lastro concreto tendo o petróleo sob o controle nacional como reserva de valor efetiva, na forma de um muito desejado consórcio entre a YPF (Argentina), PDVSA (Venezuela), YPFB (Bolívia), Petrobrás (Brasil) e quem sabe também a PEMEX (México). Através da representação venezuelana estaria a América Latina com plena representação na OPEP e com o aporte do Banco do Sul, poderíamos financiar os projetos estratégicos para nosso continente.
Para tanto, era necessário retomar o controle – se não público, ao menos do Poder Executivo das empresas, recursos e ativos estratégicos de nossos países. Na década passada este que escreve elogiava a retomada de controle da estatal petrolífera argentina, vendida a preços irrisórios para a ex-estatal espanhola do mesmo ramo da economia:
“A (re)-nacionalização da empresa Yacimientos Petrolíferos Fiscales (YPF) foi uma ação correta. O equivalente a Petrobrás argentina, privatizada a preços ínfimos e cuja compra fora com moeda podre foi retomada através do controle acionário por parte do Poder Executivo. E, ao contrário do que por aqui foi veiculado sobre a espanhola Repsol, ‘dona’ da YPF S.A., esta petrolífera não é necessariamente uma investidora. Pouco ou nada foi realizado após sua aquisição no meio da farra de pizza com champanhe (em 1993), característica dos governos de Carlos Saul Menem. Aliás, foi o não cumprimento de metas contratuais o que oportunizara a presidente Cristina Kirchner executar uma vontade política das maiorias eleitorais da Argentina.”
Um ano depois o elogio se torna outra evidência da mentalidade curta, obtusa de quem dirigiu a maior parte da América Latina por um viés ao menos proclamado como sendo “nacional-popular e de centro-esquerda”. Na hora exata da reprodução de elementos fundamentais como o quase executado Pacto ABC (Argentina, Brasil e Chile, na primeira metade da década de 1950), outra vez mais a mesquinharia política e mentalidade “gerencial” perdeu a oportunidade. Em agosto de 2013 este analista escrevia:
“Já no mês de julho do corrente ano, um acordo entre a YPF – empresa sob comando da Casa Rosada – e a estadunidense Chevron (controladora da própria marca, além da Texaco e Caltex), abala a credibilidade do discurso nacionalista da Frente para la Victoria (FPV), aliança política que abriga o guarda-chuva do governo Kirchner (tanto o de Néstor como o Cristina). O contrato com a transnacional petroleira implica operar uma zona piloto no campo de exploração chamado de Vaca Muerta, na província de Neuquén, região da Patagônia argentina.”
No mesmo texto, explicava que era uma experiência piloto, onde de um campo determinado poderiam evoluir para outros campos, em terra, tanto gigantes como até super gigantes. Porque o governo que se afirmava como “nacionalista” opta pelo acordo com uma das sete irmãs? Vejamos o que estava em jogo.
“Este convênio é inicial, pois inclui um investimento de 1 bilhão e 240 milhões de dólares para a exploração de 100 poços, resultando em 10.000 barris/dia, em uma área de 20 km². A meta de exploração máxima deste campo, cuja área chega a 395km², seria de 1500 poços, resultando em 50.000 barris/ dia e 3 milhões de m³ de gás natural. A fonte é inequívoca, pois é da assessoria de imprensa oficial argentina (Telam/YPF). Mas, como em quase todos os comunicados oficialistas, falta a perspectiva de investimento no médio prazo. Para a exploração total da área, teria de haver um aporte de Usd 10 bilhões de dólares por ano!”
Na sequência este analista apresentava o volume de reservas totais do Banco do Sul e de como seria perfeitamente possível elencar a uns três projetos pilotos e assim coordenar esforços com a capacidade de investimento das estatais petrolíferas, mais o financiamento do banco acima citado, assim como dentro da arquitetura do Banco dos BRICS e seu fundo soberano. Desta forma, ao invés de ampliar endividamento junto ao Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento, então muito em voga para internacionalizar o endividamento interno do Brasil, alongando a dívida entre níveis de governo (estados e municípios) e a União. Retornando a 2013, a crítica vinha assim:
“O contrato também reflete a ausência de pensamento estratégico dos países latino-americanos, em especial os que contam com estatais petrolíferas, como Petrobras (Brasil), Ancap (Uruguai), PDVSA (Venezuela) e YPFB (Bolívia). A exploração de um campo desta envergadura também poderia ser um projeto do Banco do Sul, cujos aportes em julho de 2013 atingem a sete bilhões de dólares, estando a meta em 20 bilhões. Alternativas não faltariam caso os governos de ‘centro-esquerda’ não reproduzissem a visão colonial sobre nós mesmos.”
A proposta apresentada pelo economista Gabriel Galípolo, proveniente da escola de pensamento econômico da Unicamp, pode realmente implicar em uma saída regional soberana, desde que não nos esqueçamos das oportunidades perdidas pelas mesmas direções que governaram na década anterior. Do neoliberalismo não sai nada além de mais miséria e repressão, com maior ou menor teor de bizarrices e protofascismos. Mas, a saída “nacional-popular” vai muito além de ideias formuladas ou engajamento do andar de cima.
Somente a disputa pela Petrobras nos custou dois golpes de Estado (1954 e 2016) e o controle pela YPF argentina e a YPFB boliviana mais alguns, assim como na Venezuela. Nossos países de origem sabem que o sionismo não será derrotado com abaixo assinados ou apenas com conteúdos de redes sociais. As terras latino-americanas jamais terão sua emancipação econômica se não levarem em conta o inimigo estadunidense e as elites domésticas mais leais a Washington do que ao centro de poder local e nacional. Que as decisões corretas tenham o empenho e a antecipação de movimentos inimigos à altura do desafio.
* Este artigo foi originalmente publicado no portal Monitor do Oriente Médio
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** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira