“É tempo de formar novos quilombos, em qualquer lugar que estejamos, e que venham os dias futuros. A mística quilombola persiste afirmando: ‘a liberdade é uma luta constante’.” Conceição Evaristo.
Dentre as onze comunidades afrodescendentes que vivem e resistem em Porto Alegre, está o Quilombo Família de Ouro. O território, localizado no bairro Lomba do Pinheiro, zona leste da Capital, é representado pelo terreiro Ylê de Oxum e Ossanha, local de fortalecimento entre os laços consanguíneos e espirituais. Sua historicidade evoca a proteção e a preservação da tradição umbandista e de suas práticas curativas. O quilombo recebeu esse nome em referência à coroa dourada usada por Oxum, Orixá feminina das águas doces e da riqueza.
“A minha avó já tinha o terreiro, então todo o espaço que a gente tem dentro desse terreiro é o quilombo. A minha casa é o quilombo. Ser quilombola é saber a origem e a raiz de onde a gente veio.” É com essas palavras que a matriarca quilombola Patrícia de Lurdes Peres da Rosa, a Mãe Paty, define a existência do quilombo Família de Ouro. Atualmente, a comunidade é formada por 80 famílias corporais e 128 filhos de santo.
No entendimento de Mãe Paty, terreiro é sinônimo de abrigo. “É um espaço que está sempre de portas abertas. As pessoas vêm aqui para se benzer, mas também para pedir um corte de cabelo ou uma passagem de ônibus. Por isso o espaço do quilombo é de resistência, porque quando as pessoas não têm lugar para onde ir, elas se refugiam no quilombo”, ressalta Patrícia.
As raízes do Quilombo Família de Ouro
Para contar a história do Quilombo Família de Ouro, é preciso primeiro resgatar a trajetória e os caminhos trilhados pelas mulheres que vieram antes de Mãe Paty. Na década de 1940, sua bisavó Maria Santos já liderava um terreiro no bairro Partenon, conhecido como Terreiro da Preta Velha Maria Conga. Com a morte da bisavó Maria, em 1960, sua filha, a avó Ruth Ribeiro Pereira, foi impedida pelos demais membros do terreiro de assumir o lugar dela. “Minha bisavó faleceu, e um filho de santo tomou conta da casa. A minha avó ficou na rua”, explica Mãe Paty.
Impossibilitada de continuar vivendo na casa onde cresceu, Ruth passou a morar com parentes próximos no bairro Teresópolis, zona sul de Porto Alegre e, anos depois, se mudou para Cruz Alta, município de origem da família. Ao retornar à Capital, Ruth encontrou morada na Vila Mapa, no bairro Lomba do Pinheiro, dando origem ao Terreiro Tenda Mãe do Ouro de Oxum. E, assim, a avó Ruth começou a construir relações de pertencimento com o território e o seu entorno. Na geração seguinte, Maria de Fátima - filha de Ruth e mãe de Patrícia - deu continuidade ao processo de formação cultural e religiosa da Família de Ouro.
No momento presente, ao cultuar sua ancestralidade no Ylê de Oxum e Ossanha, é Mãe Paty que reafirma a tradição e a espiritualidade que sua mãe, sua avó e sua bisavó lhe transmitiram. Mãe de seis filhos de sangue - três mulheres e três homens -, Patrícia é avó de duas meninas: Lindsay e Milena, de nove e dez anos, respectivamente. Ela conta que já observa em sua neta mais nova a força feminina herdada pelas suas antepassadas. “Lindsay vai ao mercado com camiseta de Ylê e saia branca. A mãe dela briga horrores, mas ela diz: ‘Depois eu vou para o terreiro da minha avó, então eu vou com essa roupa’. Isso pra mim é maravilhoso”, narra Mãe Paty.
Para Paula Juliana Peres da Rosa, irmã de Patrícia, a vida de sua família nunca foi fácil. “Sempre foi de luta e de garra, a nossa ancestralidade é ter a força dos nossos antepassados em nós. É muito gratificante ser quilombola”, reflete.
Família de Ouro e a comunidade
Desde o seu surgimento, o Quilombo Família de Ouro desenvolve diversas atividades comunitárias. Em 1991, ajudou a fundar a Escola de Samba Unidos da Vila Mapa e, há dez anos, realiza o Ori Orienta, um projeto de conscientização sobre o respeito às águas. “A gente vai nas praças, nos parques, nos espaços públicos como a Redenção, no rio e nas cachoeiras para conversar com as pessoas. A gente leva o nosso panfleto, os sacos de lixo e doa para elas”, conta Mãe Paty.
Atualmente, Mãe Paty está à frente de iniciativas como o Teatro dos Orixás, espetáculo comumente apresentado na Escola Municipal de Ensino Fundamental Heitor Villa Lobos, e oficinas semanais destinadas às crianças do bairro, com o objetivo de difundir e fortalecer a cultura quilombola. “Com a pandemia, a gente começou a fazer um reforço escolar porque as crianças não estavam indo para dentro das escolas. E muitas crianças não tinham computador, daí colocamos três ou quatro computadores aqui para dar esse auxílio para elas”, conta. Além disso, a Família de Ouro também arrecada e distribui cestas básicas para atender as necessidades da população.
Moradora do quilombo, Mariani Martins Santana afirma que é um lugar de aprendizagem e de identificação. “É onde se aprende muitas coisas. Ser pertencente à comunidade é se identificar com os valores, costumes e também ter a ligação com o território. É ali dentro que podemos ser quem quisermos ser sem sermos discriminados”, relata.
Processo de titulação
De acordo com o Atlas da Presença Quilombola em Porto Alegre/RS, a região onde está situada o Quilombo Família de Ouro teve como seus primeiros moradores as populações negras e periféricas que sofreram remoções forçadas na década de 1960. Distante 15 km do centro da Capital, o bairro Lomba do Pinheiro se tornou o destino das comunidades desalojadas vindas dos territórios da Ilhota, do Rio Branco e do Mont'Serrat. Na época, por meio da implantação do programa habitacional “Remover para Promover”, a Prefeitura de Porto Alegre expulsou famílias que viviam em casebres nas zonas centrais por “critérios” de higiene pública.
A Família de Ouro foi a oitava comunidade quilombola de Porto Alegre a se autorreconhecer e, desde então, aguarda a finalização do processo de certificação pela Fundação Cultural Palmares. “Fomos atrás da titularização depois de termos entrado em contato com a Frente Quilombola RS. A gente já sabia que por causa da pandemia e do governo Bolsonaro nada mais andaria na Fundação Palmares. Nós sabemos que nenhum quilombo vai ser titularizado agora. Para nós, independente de ter ou não o título da Palmares, a gente é quilombola, a gente sempre foi e sempre vai fazer as nossas ações dentro do território”, comenta Patrícia. Fundada em 2011, a Frente Quilombola RS é formada por movimentos sociais que acompanham de perto a realidade das comunidades quilombolas da região.
Ylê de Oxum e Ossanha e o culto à natureza
Na umbanda, os elementais da água, da terra, do fogo e do ar são representados por Orixás, isto é, divindades ligadas às forças naturais que regem o universo e a vida. Repassada de geração em geração, a religiosidade vivida pela Família de Ouro está intrinsecamente relacionada ao meio. Seus cultos centram-se nos Orixás Oxum, a rainha das águas doces e dona dos rios e cachoeiras, e Ossanha, rei das folhas sagradas e mestre curandeiro.
Essa relação de profunda afetividade com o mundo natural se construiu na bênção aos ancestrais, na transmissão de saberes e na utilização de ervas medicinais para a cura de enfermidades. No entanto, com o passar do tempo, o processo de urbanização tornou restrito o contato dos umbandistas com a natureza e o acesso às ervas. Mãe Paty lamenta a ausência de um espaço adequado para cultivo dentro do quilombo: “Hoje, somos obrigados a comprar uma folha já desidratada porque não temos mais o espaço que os nossos ancestrais tinham nos territórios para plantar”.
Segundo Mãe Paty, é preciso adequar as práticas herdadas pelos antepassados à realidade presente. Hoje, as ervas utilizadas por ela em benzimentos e batizados são adquiridas em casas especializadas, feiras e mercados. Para ela, mesmo se não extraídas frescas, são valorizadas no sentido de comporem uma parte íntegra de um todo, o que, por si só, é entendida como sagrada.
Um dos princípios da umbanda é a importância de se pensar no ecossistema ao realizar as entregas para os Orixás nos campos de força - locais onde estão concentradas suas energias, como praias, matas e pedreiras. Mãe Paty explica que nos dias de oferenda, leva sacos de lixo e distribui para a comunidade como forma de conscientização ambiental.
“A gente pode largar a canjica, o quindim, pode largar tudo aquilo que os peixes vão comer, mas não tem necessidade de largar em uma bandeja de plástico. Por exemplo, não tem por que ir no mar largar oferenda para Iemanjá com o barco, ela não vai receber o barco e sim a oferenda. A gente cuida para que não sejam acendidas velas nos pés das árvores. A gente cuida da água, das folhas, cuidamos de tudo”, salienta Mãe Paty.
De acordo com ela, o Orixá é a própria natureza: “A nossa tradição diz que a gente precisa alimentar a natureza e não agredi-la”.
Manter viva a memória dos seus
Quando questionada sobre o que significa ser quilombola, Mãe Paty ressalta: “A gente sabe pelo que passaram os nossos ancestrais para hoje a gente estar sentado falando abertamente sobre a nossa história. Antes da Mãe Paty estar sentada aqui, falando para vocês sobre o Quilombo Família de Ouro, tem toda uma tradição ancestral que sofreu muita chibatada, que foi abusada, que passou por tortura. Hoje, eu sou uma resistência porque estou viva. Eu ensino para os meus filhos e para as minhas netas o que é ser quilombola, o que é a força da mulher”.
:: Clique aqui para receber notícias do Brasil de Fato RS no seu Whatsapp ::
Edição: Marcelo Ferreira