Rio Grande do Sul

IMPRENSA PARCIAL

Parcialidade da mídia hegemônica em conflitos sociais prejudica a democracia, dizem jornalistas

Com a provocação "jornalismo ou propaganda?", mesa do Fórum das Resistências abordou cobertura da guerra na Ucrânia

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Debate realizado na sede da ARI reuniu Ayrton Centeno, Vera Daisy Barcellos, Walmaro Paz, Denise Mantovani e José Maria Nunes - Foto: Glei Soares

O prejuízo à democracia causado pela imparcialidade travestida de naturalização de apenas um dos lados dos conflitos sociais no discurso jornalístico da mídia hegemônica e empresarial foi tema de debate no Fórum Social das Resistências. A mesa “O papel da mídia hegemônica na cobertura de conflitos: jornalismo ou propaganda?” teve como debatedores a jornalista e doutora em Ciência Política Denise Mantovani, a presidenta do Sindicato dos Jornalistas do RS (Sindijors), jornalista Vera Daisy Barcellos, e o editor do Brasil de Fato RS, jornalista Ayrton Centeno.

A atividade híbrida foi realizada na quarta-feira (27), na sede da Associação Riograndense de Imprensa (ARI). Teve como mediador o jornalista e membro do Centro Brasileiro de Solidariedade Aos Povos e Luta Pela Paz (Cebrapaz), Walmaro Paz, que também contribui para o Brasil de Fato RS, e contou com a presença do presidente da ARI, José Maria Nunes. Após as falas da mesa, o debate abriu para a contribuição dos participantes.

Walmaro abriu o debate ressaltando o tema candente por conta da guerra na Ucrânia e as versões diferenciadas sobre o que ocorre no conflito, sendo a versão hegemônica a da Ucrânia/Otan, que coloca seu lado como vítima, e a versão russa que proíbe o termo guerra e chama de operação militar. Na sequência, José Nunes destacou a importância da imprensa na sociedade e apresentou o manifesto da ARI de 2022. O documento defende as liberdades de imprensa, sem apoio a candidatos ou partidos, mas não sem se posicionar contra instâncias de viés antidemocrático, que desprezam os direitos humanos e toleram a corrupção.

Jornalistas muitas vezes adotam o lado da mídia hegemônica

Primeira convidada a se manifestar, a presidenta do Sindijors, Vera Daisy Barcellos, resgatou a responsabilidade do jornalista de bem informar. Contudo, relatou que identifica claramente o lado que as empresas assumem na mídia comercial, principalmente em canais pagos. Lembrou de assistir uma jornalista festejar ao vivo um ataque ucraniano à Rússia. “Só que estamos vivendo um conflito que só tem lado ruim. Fiquei impactada com a reação da companheira naquele programa, que ela tinha um lado e este lado a gente começa a identificar como o sendo o das grandes empresas de comunicação.”

Pontuou que existe muito interesse no fato de que noticiários pouco abordem com detalhamento informações de países como Rússia, China Venezuela e Cuba. “Isso não é novo, mas no tempo de exercício de profissão de meio século a gente observa que sim, as grandes empresas têm lado. E esse lado é o que se traduz na não revelação daquilo que eu coloco com um dos principíos do nosso exercício profissional: ouvir, fazer a escuta dos dois lados”, analisou, revelando-se preocupada com a perda de princípios éticos dos profissionais da comunicação.

Interesses políticos e econômicos moldam o noticiário

Na avaliação de Ayrton Centeno, a imprensa muitas vezes faz papel de propaganda. Ele exemplificou lembrando que o Cidadão Kane, de Orson Welles, foi inspirado em William Hearst, “que era vamos dizer um Roberto Marinho do jornalismo norte-americano do final do século 19”. Recordou que, se aproveitando do espírito de rebelião em Cuba contra o poder colonial espanhol, Hearst manipulou a opinião pública e levou os Estado Unidos a declarar guerra conta a Espanha.

“O que demonstra que o jornalismo foi usado, criou uma guerra para vender jornal. Esse é um caso muito exemplar dessa relação do jornalismo, da propaganda e da guerra, dos interesses que não são só de um país ou outro”, disse. “Estamos vendo hoje uma cobertura do bem contra o mal, um pouco aquele clima que foi criado depois do atentado das Tores Gêmeas. Hoje o Putin é a reencarnação do mal, semelhante ao diabo”, completou.

Sem entrar no mérito das razões dos dois países, Ayrton disse que objetivo “é mostrar que a cobertura que temos é a cobertura de um lado, a do Ocidente”, e ponderou que do outro lado deve ser semelhante. Contudo, trouxe variadas informações que demonstram como quase nada se sabe sobre os precedentes do atual conflito na Ucrânia. Na verdade iniciou em 2014 após um golpe de estado contra o presidente constitucionalmente eleito, “porque este não queria a receber armas da Otan, entrar na Otan, e ele foi derrubado com apoio explicito dos EUA”.

Recordou que morreram 14 mil pessoas no início deste conflito, em 2014, na região de Donbass, quando os EUA e a Otan apoiaram a oposição e inclusive grupos nazifascistas. “Quem sabe do passado de simpatia do nazifascismo por parte de boa parte da população ucraniana?”, questionou. “O batalhão Azov, abertamente nazifascista, uma milícia não como nos morros cariocas, mas que tem armas de grande poder de fogo e tanques de guerra, foi incorporado ao exército ucraniano. Esse batalhão foi responsável por grande parte dessas mortes na região de Donbass”, completou.

“Tudo isso que falei não está nos jornais ou aparecem raramente aqui ou ali”, ressaltou Ayrton, explicando que sua contextualização histórica serve para demonstrar a deficiência da cobertura da guerra no Brasil. “Nós temos apenas um lado da moeda”, finalizou.

"Notícia e informação são mercadorias"

Denise Mantovani, por sua vez, fez uma análise do fazer jornalístico relacionando o conflito na Ucrânia com o que ocorre no Brasil. “Não é exceção que a gente percebe um viés da construção hegemônica da história que é contada”, disse, reforçando que a cobertura da guerra é subalterna aos interesses norte-americanos. “A informação tem um formato que vai construindo um tipo de pensamento, então não é só o que nós pensamos, mas como a gente pensa.”

Ela destacou que a mídia hegemônica é aquela que detém poder de produzir conteúdo que reverbera em uma grade expressão de pessoas. “Notícia e informação são mercadorias e nós somos consumidores dessas mercadorias. Os conflitos, no meu ponto de vista, situam os veículos de comunicação, eles se posicionam nesse conflitos”, comentou, lembrando das manifestações de 2013 no país. Lembrou que o que começou como um problema de tarifas de ônibus logo se tornou anticorrupção, de onde nasceu a Lava Jato e a construção do golpe contra Dilma Roussef.

A criação de monstros a partir das notícias diárias

“A Lava Jato é um caso das relações promíscuas de interesses entre jornalismo e fonte”, afirmou. “Chama atenção que essa cobertura da mídia hegemônica e dominante está relacionada a um conjunto de interesses que nós não percebemos no dia a dia. Naquilo que é sonegado, das fontes que não aparecem ou aquelas que quando aparecem têm uma seleção do que dizem, que vai torná-la em nosso olhar a interpretação de bandido, criminoso, ou o salvador da pátria.”

Para Denise, o grande problema é que a mídia hegemônica se coloca acima dos conflitos e adota alguns argumentos como universais, quando na verdade representam apenas parte da sociedade. “A ideia de neutralidade apresenta um determinado viés para entender a realidade, nos posicionando num lugar que chega o ponto em que quem está com uma camiseta vermelha, aquilo ali assusta, é um comunista.”

Segundo a jornalista, essa situação culminou na eleição de Bolsonaro, “que foi gestado por esse modelo de disputa pública a partir de uma mídia hegemônica que criminalizou um lado, que construiu uma espécie binarismo que hoje o Bolsonaro se apropria”. Ao lembrar ainda que hoje empresários milionários dominam plataformas de informação, Denise afirmou que é preciso romper com a ideia de que a mídia não é um ator com interesses.

Assista ao debate completo:

 

 

Sobre os Fóruns Sociais em Porto Alegre

O Fórum Social das Resistências (FSR) e o Fórum Social Mundial Justiça (FSMJD) iniciaram nesta terça-feira (26) em Porto Alegre, com a marcha de abertura. Os dois eventos contam com atividades presenciais e híbridas. Centenas de debates vão ocorrer até o sábado (30), quando acontece a plenária de encerramento que organizará um documento preparatório para o Fórum Social Mundial que será realizado no México entre os dias 1º e 6 de maio.

O FSMJD tem atividades focadas na transformação do sistema de justiça e na defesa da democracia, reunindo membros do judiciário com movimentos sociais para repensar as estruturas que perpetuam as desigualdades. Já o FSR traz movimentos sociais e organizações que para debater saídas para as crises que se abatem sobre o mundo e o Brasil, que penalizam a população mais pobre e vulnerabilizada e o meio ambiente.

Fórum Social das Resistências: Programação

Fórum Social Mundial Justiça e Democracia: Programação


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Edição: Katia Marko