Aos 71, aviso às companheiras e companheiros de jornada: estou vivo e pronto para os 100
Estou definitivamente velho. Cheguei aos 71 anos de papai Léo por estes dias, ele falecido em 1995, com 71 anos recém completados. Mas, aviso aos navegantes de um ´ranzinza, mas democrático´, como me auto-apelidei num poema, em tempos de Brasília: pretendo chegar inteiro e vivo aos 100, em 2051.
Carrego vida afora a ranzinzice de papai, um descendente de alemães, morador da então Linha Santa Emília, Venâncio Aires, Rio Grande do Sul, nove filhos, agricultor familiar. Sou o mais velho dos 9, nascido em 1951. Meu irmão mais novo, Marino, ainda hoje agricultor familiar, nasceu em 1965, quando eu não tinha 14 anos. Era assim naqueles tempos.
A vida, a fé, as regras de uma família grande, católica, morando no interior do interior, trabalhando na roça para comer e sobreviver, guiaram-me ao longo do tempo e da vida.
1. Comer sempre tudo de tudo o que estiver à mesa, sem sobrar nada no prato, nem para cachorros e gatos. Economizar tudo ao máximo. A família era grande. Passar as poucas roupas e sapatos para os mais novos. Por isso, sou mais que pão duro até hoje, como bem sabem os que me conhecem mais de perto (menos quando se trata da boa luta e das necessidades dos mais pobres). Numa família de 9 filhos, onde era preciso garantir o pão na mesa, pagar o Seminário, ajudar a comunidade, nada de celebrar aniversários, de ninguém, pra não gastar em presentes e ter gastos extras. Presentes e gostosuras de Natal e Páscoa eram guardados no quarto por mamãe, para durarem mais! Cada dia, ela nos dava uma bala, ou chocolate, ou ovo, que assim duravam meses! Aliás, ainda uso meus Bamba de mais de 40 anos para caminhar na praia, quando vou pra Floripa, e no Parque da Redenção, em Porto!
Só celebrei aniversários como forma de lançamento da candidatura a deputado. Depois de muita insistência, aceitei festejar os cinquentinha, em 2001, mas só de 10 em 10 anos, interrompidos ano passado, nos 70, por causa da pandemia. Agora, só aos 80, 2031.
2. Participar da comunidade. Sempre contribuir com suas iniciativas: Comunidade São Luiz, Sociedade São Luiz, Esporte Clube São Luiz, Escola São Luiz, Paróquia Santa Inês de Mato Leitão, bloco de carnaval IMMA KNILL (na tradução, ´Sempre bêbado´. Com seu lema: ´Quem não bebe não vê o mundo girar), STR, Sindicato dos Trabalhadores Rurais, do qual papai é fundador, FAG, Frente Agrária Gaúcha, da qual cheguei a participar, Cooperativas. Estar sempre presente nas boas lutas, solidário, ser companheiro e atuante na comunidade.
3. Ter disciplina. Horário é horário. Compromissos são para serem cumpridos. Quando caía o sol, hora de sair do jogo de futebol no potreiro de casa, ou voltar do passeio no arroio, no início da propriedade, senão a bainha do facão nas mãos de papai ´cantava´. Presença na missa ou devoção sempre, jamais faltar às aulas na Escola São Luiz, com frio, chuva ou não, fazer religiosamente os deveres escolares, e assim por diante.
4. Ser amigo dos parentes e vizinhos, e estar junto. Marcar presença sempre, mesmo à noite, levando lampião, porque não havia energia elétrica nos anos 1950, nos momentos de encontro e oração nas diferentes famílias da comunidade. Assim, mesmo não tendo morado quase nunca em Santa Emília, conheço, e lembro, detalhes internos das casas de quase todo mundo, embora ás vezes nem lembre como e quando estive nesta ou naquela casa.
5. Trabalhar sempre: ajudar na roça e nos cuidados com os animais, tirar leite das vacas bem cedo, ajudar a lavar as louças, sempre com respeito de papai ao fato de sermos crianças, e sem jamais prejudicar as tarefas escolares. Cuidar dos 6 irmãos e 2 irmãs.
6. Estudar, ler a Bíblia e tudo mais, mesmo em alemão gótico, aprender tudo sobre tudo. Daí a ida para o Seminário franciscano em Taquari, RS, com 11 anos, sem nenhuma dúvida de papai.
7. Fé como elemento fundamental. Rezar o ´Vater unser´, Pai Nosso em alemão, antes das refeições, o terço várias vezes durante a semana. Fé presente na vida, fé colada à realidade, ao trabalho e às necessidades da família e da comunidade. Teologia da Libertação na prática, mesmo sem sabê-lo naqueles tempos.
8. Respeitar as opções de vida de cada filha e filho, sem impedir nenhuma. Papai nunca interferiu nas decisões dos filhos que iam para o Seminário, ou, ao longo do tempo, saíam de casa para trabalhar em outros lugares, ou decidissem casar-se com quem ele nunca tinha visto, ou mudar suas opções de trabalho e vida. Aceitar, compreender, apoiar sempre.
Papai era severo, exigente e, ao mesmo tempo, amoroso e compreensivo. Sempre aceitou e procurou compreender minhas opções, como ir guri para o Seminário. Nunca falou mal ou contra, mesmo que, possivelmente, muitas vezes não compreendesse o que foi acontecendo comigo: ter sido expulso da PUCRS, em consequência eu não ser ordenado padre (sonho de sua vida ter filho padre), ser demitido dos Colégios católicos onde eu trabalhava, ser franciscano e feliz morador das vilas da Lomba do Pinheiro, fazer a opção pelos pobres e trabalhadores, meu casamento com a Marta e descasamento, entrar na política no recém criado PT. Até chegar a ter um filho de colono do interior chegar a deputado estadual constituinte. Como ele poderia compreender, e sempre aceitar, esta trajetória?
Herdei de papai o gosto pelo trago, uma das razões de seu falecimento precoce, e meu cuidado permanente, para não exagerar.
Nos últimos tempos de sua vida, eu que quase nunca parava em casa com a família, e cada vez menos, ele acompanhava-me com o olhar quando eu ia embora. Perguntava, em alemão, de forma carinhosa, a voz um tanto triste: “Wann kommst du nochmall? Gute Reise. Pass dich auf – Quando vais voltar de novo? Boa viagem. Te cuida!”. Era sua forma de carinho, de cuidado e preocupação comigo, nós que nunca nos abraçávamos, ou algo parecido.
Sou o que sou, e o devo muito a papai Léo, seus valores, sua compreensão da vida, seu amor à família e à comunidade, seus gostos de comida e bebida, sua fé. Papai Léo, mamãe Lúcia, falecida em 2021, tia Leonida, gêmea de papai e que morava com a família, e a avó Gertrudes, criaram-me e são os principais referenciais de vida de uma vida de 71 anos.
Aos 71 recém completados, vale reafirmar hoje meu poema ´AOS VINTE CINCO ANOS´, publicado no livro coletivo de poesia EM MÃOS, em 1976, sobre o qual anotei: “Vários poemas meus e de outros autores do livro foram considerados subversivos pela ditadura, e acabaram registrados, ´guardados´ nos arquivos federais pelo DOPS, Polícia Federal e SNI.”
“AOS VINTE CINCO ANOS”. (Com as dedicatórias: “Eu não sabia/ que ser poeta/ é ser sócio da dor”, João Nogueira. “Não sou interessado/ em nenhuma teoria./ Amar e mudar as coisas/ me interessa mais”, Belchior´. “Mi pueblo/ es americano”, Sérgio Ricardo).
“Aos vinte e cinco anos/ descubro a vida. / E me vejo farrapo,/ ser em trânsito,/ operário e lavrador./
Aos vinte e cinco anos/ escrevo simples,/ uso toscas imagens, / palavras comuns/ poucas metáforas./
Aos vinte e cinco anos/ canto a liberdade./
Aos vinte e cinco anos/ amo a vida,/ seus reflexos,/ suas medidas./
Aos vinte e cinco anos/ declaro-me francamente contra a guerra,/ o ódio,/ a fome/ e a mordaça.
Aos vinte e cinco anos/ penso o mundo com meus próprios olhos,/ viajo o medo/ com meus próprios pés./
Aos vinte e cinco anos/ me proclamo irmão./
Aos vinte e cinco anos/me alimento de raízes e seivas,/ de árvores, animais/ e pedras.
Aos vinte e cinco anos/ faço greve contra os sistemas,/ as estruturas,/ a opressão,/ as algemas./
Aos vinte e cinco anos/ me armo de coragem/ para assinalar o homem/ e o universo.
Aos vinte e cinco anos/ me sei pequeno/ diante de Deus.”
Aos 71, em 2022, digo, e repito, aos navegantes, companheiras e companheiros de jornada: estou vivo e pronto para os 100. À VIDA, AO PRAZER E AO AMOR!
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko