O Fórum Social Mundial Justiça e Democracia (FSMJD) realizou, na tarde desta sexta-feira (29), a mesa de debates "Democracia, comunicação, tecnologias e Sistema de Justiça". A atividade ocorreu no Teatro Dante Barone da Assembleia Legislativa do RS, avaliando os impactos das mudanças tecnológicas nas áreas da justiça e da política e o que isso implica na vida da população.
Para debater o tema, foram convidados Sérgio Amadeu, sociólogo, presidente do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação e professor da UFABC; Jéssica Moreira, escritora e jornalista, cofundadora e uma das diretoras do veículo "Nós, mulheres da periferia"; Renata Mielli, jornalista, coordenadora do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé e integrante da Coalizão Direitos na Rede; e Sandra Bittencourt Genro, jornalista, doutora em comunicação pela UFRGS.
Confira, logo abaixo, a transmissão do evento na íntegra. A seguir, o resumo das participações dos convidados.
Grandes corporações ameaçam a democracia
"Curiosamente, as redes digitais alteraram a comunicação e também o sistema judiciário. Quando a internet surgiu, havia uma expectativa positiva, por parte dos movimentos e pesquisadores. Mais de 20 anos após a consolidação da internet, estamos vivendo algumas crises", começou o professor Sérgio Amadeu.
Ele identificou três crises: a primeira é da "rede distribuída". Atualmente, conforme explicou, qualquer um consegue se conectar à rede de computadores. Apesar de ser muito fácil falar nesse espaço, o difícil é ser ouvido e ter audiência. Ele lembrou que naquele princípio havia o consenso de que uma rede distribuída seria uma rede democrática. Consenso esse que se viu contrariado pela realidade.
"Essa rede distribui não só as possibilidades da democracia, mas também distribui o controle e o discurso de ódio", ponderou.
A segunda grande crise corresponde às possibilidades do ideal de participação democrática. Amadeu afirmou que muitos atuam politicamente na internet para impedir que outros pessoas participem, o que muitas vezes gera uma dificuldade de entender que a participação é fundamental, independente de grupos que tentam calar o outro.
A terceira crise identificada pelo professor é do livre fluxo de dados: a existência da internet depende da fluência livre, mas questiona para onde vão os dados que saem do nosso país. "Que tipos de dados podem trafegar através das fronteiras? Para a internet funcionar, precisa que os dados dos nossos jovens circulem? Que a biometria da nossa população seja levada para fora? Me parece que não", avaliou.
Afirmou também que a comunidade de pesquisadores começa a entender que a comunicação digital traz uma série de problemas para a atualidade. Entre elas, o fato de que se baseia na coleta massiva de dados.
"Nada, nas tecnologias digitais, obriga a se coletar tantos dados das populações. Mas o que acaba acontecendo é que alguns modelos de negócios das grandes 'big techs' se estruturou oferecendo serviços gratuitos, buscando coletar persistentemente os dados", constatou.
Amadeu explicou que essa coleta de dados funciona para que se possa estabelecer padrões de comportamento dos usuários. Para isso são usados mecanismos de identificação, de forma a tornar a identidade pessoal cada vez mais precisa para as estruturas de dados das grandes corporações.
Segundo o professor, essas empresas buscam compreender, a partir do comportamento online, o que a população pensa e o que quer, para estabelecer previsões das necessidades e qual será o próximo passo.
O problema dos algoritmos
"Quando o Elon Musk afirma que vai abrir o algoritmo do Twitter, isso é insuficiente, pois é um algoritmo de Inteligência Artificial, de aprendizado de máquina, com redes neurais artificiais e que aprende através da alimentação de dados. Precisamos saber quais dados estão sendo coletados de nós", disse.
Afirmou também que é importante saber como o algoritmo está escrito, mas também é necessário saber quais as regras foram colocadas para o seu funcionamento. "O sistema de justiça americano usa um sistema chamado 'COMPAS', que ajuda os juízes com uma indicação de pena, com base nas estruturas de dados das decisões judiciais anteriores e perfil do réu. Logo se percebeu que o algoritmo, com base nas decisões anteriormente proferidas, estava dando penas para os réus negros penas muito mais altas do que para réus brancos de alta periculosidade", exemplificou.
O professor explicou que a estrutura de dados não corrigida, acabou por perpetuar e ampliar o racismo estrutural que existe no judiciário norte-americano. Conclui com outro exemplo para afirmar que os algoritmos nunca são neutros. "Em um país em que mais de 90% das pessoas usam Whatsapp e mais de 70% usam o Facebook, não é possível que essas empresas não sigam as regras da democracia. Não sabemos como é feita a gestão dessas plataformas."
Acesso à internet ainda é um desafio para consolidar outros direitos
Jéssica Moreira trouxe na sua fala outro ponto de vista, sobre os desafios para a população brasileira. Começou falando do portal que é uma das fundadoras, o "Nós, mulheres da periferia". Afirmou que o seu trabalho jornalístico passa por essas tecnologias que são distribuidoras da informação, o que se consolida como um desafio.
"Por mais que eu esteja geograficamente próxima dessa população [negra e moradora das periferias], nosso conteúdo ainda não chega nessas pessoas, por tudo que já falaram aqui hoje, dos algoritmos e da arquitetura das redes sociais", analisou.
Além disso, a jornalista reforçou que ainda hoje é um desafio para grande parte da população o acesso à internet, seja pela questão da própria aquisição dos computadores ou da internet de banda larga. Ela pontuou que, por mais que o acesso tenha sido ampliado, ainda é uma experiência reduzida, já que muitos ainda utilizam somente a internet através do celular, o que diminui as possibilidades para o público fazer pesquisas, por exemplo, ou mesmo para acessar conteúdos.
"Isso é um desafio para mim, como jornalista periférica. A gente pode estar falando as coisas, mas isso não chega nas pessoas. Hoje, conseguimos fazer algumas vozes serem ouvidas, apesar de ainda ter um caminho grande a ser percorrido, por isso é necessário ampliar o debate sobre o acesso à comunicação. A democracia digital faz parte do debate do acesso à outros direitos", disse Jéssica.
Recordou, por exemplo, das crianças que evadiram as escolas durante a pandemia por não terem acesso à comunicação. Também que o acesso a outros direitos é perpassado pelo acesso à tecnologia, como os comprovantes de vacinação ou a requisição do Auxílio Emergencial. Atualmente, ressaltou, pelo menos 33 milhões de pessoas estão desconectadas do acesso à internet no país.
Afirmou também que esse debate precisa ser atravessado pelos outros temas da cidadania, para que esses temas da mídia e da tecnologia possam chegar a mais pessoas. Só dessa será possível revisar uma narrativa que parta da experiência cotidiana da maioria da informação.
Novas tecnologias da comunicação impactam a democracia
A jornalista e pesquisadora Sandra Bittencourt Genro afirmou que o tema fundamental, quando se relaciona as tecnologias da informação, é perguntar quais são os impactos que essas tecnologias trazem para a democracia. Ela recordou que durante muito tempo a comunidade científica imaginou que essas tecnologias trariam uma "terra prometida", com perspectivas totalmente positivas de participação social e distribuição da comunicação.
Porém, disse que a internet que ampliou o acesso à informação também trouxe ondas conservadoras e desgastes para a democracia. Ou seja, mesmo tempo que permite a participação, permite também a dominação. "Não temos menos intermediários. Sempre tivemos a concentração e o enquadramento dos temas pelos veículos antigos e se imaginava que com os novos meios haveriam menos intermediários e mais liberdade", relatou.
Demonstrando como, atualmente, existem ainda mais possibilidades de controle da informação, Sandra trouxe a caracterização do professor Sivaldo Pereira (UNB), que afirma que a internet se estrutura em três camadas interdependentes: a primeira do conteúdo (notícias, textos, imagens, etc.), a segunda camada lógica (os protocolos, sistemas, aplicativos, plataformas, etc.) e a terceira camada física (hardwares e estruturas).
"O que é interessante pensar é que não há transparência em nenhuma dessas camadas. Há uma série de intermediários e violações em cada uma delas, não sabemos ao certo quem participa, quais são os interesses e como atuam."
Ela relacionou a falta de transparência desses ambientes com o fenômeno da desinformação e das notícias falsas, comumente chamadas de "fake news". "Esse é um fenômeno próprio. As pessoas dizem que os boatos sempre existiram, mas na verdade estamos falando de um tipo de fabricação específica para um tipo de ambiente [virtual] que permite a propagação de um tipo de efeitos e resultados, que está relacionado justamente com essa falta de transparência na operação das camadas da internet."
Relatou que este terreno é totalmente dominado pelos algoritmos que são produzidos pelas empresas que os detêm, não deixando para o público ideia alguma do seu funcionamento. Para ela, a própria vida pública hoje está totalmente ligada a esse sistema. Dessa forma, a coleta de dados passa a ser uma norma desse funcionamento.
"Os intermediários da camada lógica (as plataformas) desenham as formas de expressão. Está claro que precisamos de regulação desse ambiente, especialmente das redes sociais", afirmou.
Sandra recordou o movimento de compra do Twitter pelo bilionário Elon Musk para mostrar que estão ocorrendo diversas aquisições de empresas, o que mostra uma capacidade de concentração de poder. "Precisamos pensar como resistir e como chegar a regras, normas e consensos, para proteger um espaço público de comunicação que é controlado por empresas privadas que geram distorções e riscos para a democracia", disse.
Comunicação é central na democracia
A professora assumiu que a comunicação é condição para a qualidade da democracia, de forma que esse debate e essas disputas são um tema central. De forma que chegou ao tema do Projeto de Lei n° 2630, de 2020 (Lei das Fake News). "Gera preocupação que as grandes plataformas (Meta, Google, etc.) fizeram uma ofensiva pesada contra o projeto", relatou.
Por fim, falou das eleições de 2022, afirmando que não se pode escapar do tema neste momento. Elencou alguns questionamentos que acredita ser necessário para contribuir com o debate que envolve as comunicações, campanhas políticas e a internet.
"Primeiro, por que candidatos e partidos se apropriam e utilizam o potencial interativo que os dispositivos tecnológicos permitem com tanta assimetria. Realmente há mais eficiência dentro do campo da direita? O campo progressista perde? Segundo, como é gerenciada a produção de conteúdo não formal (produzido de maneira colaborativa nas redes)? Como se regula essa produção sob anonimato, de forma a proteger o pleito? Terceiro, do ponto de vista do cidadão, é possível a ampliação do debate público, estabelecer temas e agendas próprias, não embarcando nas agendas que são favoráveis à direita e ao fascismo?"
Sobre os Fóruns Sociais em Porto Alegre
O Fórum Social das Resistências (FSR) e o Fórum Social Mundial Justiça (FSMJD) iniciaram nesta terça-feira (26) em Porto Alegre, com a marcha de abertura. Os dois eventos contam com atividades presenciais e híbridas. Centenas de debates vão ocorrer até o sábado (30), quando acontece a plenária de encerramento que organizará um documento preparatório para o Fórum Social Mundial que será realizado no México entre os dias 1º e 6 de maio.
O FSMJD tem atividades focadas na transformação do sistema de justiça e na defesa da democracia, reunindo membros do judiciário com movimentos sociais para repensar as estruturas que perpetuam as desigualdades. Já o FSR traz movimentos sociais e organizações que para debater saídas para as crises que se abatem sobre o mundo e o Brasil, que penalizam a população mais pobre e vulnerabilizada e o meio ambiente.
Fórum Social das Resistências: Programação
Fórum Social Mundial Justiça e Democracia: Programação
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Edição: Marcelo Ferreira