O sistema de participação cidadã criado em Porto Alegre, após a redemocratização, conta, além do OP, com muitos Conselhos Municipais de políticas setoriais e com a participação no processo de planejamento urbano e ambiental. Junto com a democratização das decisões orçamentárias, o conjunto dessas instâncias é fundamental para efetivar a gestão democrática das cidades, bandeira histórica do movimento da reforma urbana no Brasil.
Esta é o 2º artigo da série sobre o retrocesso da democracia em Porto Alegre
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Apesar de algumas dificuldades, esta rede da democracia participativa foi construída com muito trabalho conjunto de movimentos sociais, pessoas, gestores públicos e partidos do campo popular. Os Conselhos Municipais de Políticas Públicas e de Direitos, após gradativa ampliação do seu número, na década de 1990, chegando a 29 nos anos 2000, passaram a ter sua legitimidade questionada pelos governos abertamente neoliberais, a partir da gestão Marchezan (PSDB - 2018-2020), e agora reafirmada pelo governo Melo (MDB). Eles passaram a ser alvo de tentativas de restrição de suas atribuições previstas na constituição da cidade, a Lei Orgânica Municipal (LOM).
Isso ficou claro em projetos de lei do Executivo a partir de 2017. Sem dialogar com os conselhos, Marquezan enviou ao Legislativo dois projetos: um que tratou da retirada de poder dessas instâncias por emenda à LOM; e o outro, propondo a extinção e o remanejo de Fundos ligados às políticas setoriais e aos conselhos, sendo os recursos encaminhados para o Fundo de Reforma e Desenvolvimento Municipal. Esse último projeto previa centralizar no caixa da PMPA os recursos dos fundos que foram criados para servir a projetos deliberados com a participação. O PL 10/2018 (que voltou no ano seguinte como PL 05/2019) autorizava a retirava até 90% dos fundos dos conselhos municipais.
Os dois projetos motivaram a resistência do Fórum Municipal dos Conselhos da Cidade (FMCC). O Fórum mobilizou conselheiros, cidadãos e grupos acadêmicos para pressionar os vereadores e manifestar a contrariedade com a aprovação do projeto1. O movimento resultou na Frente Parlamentar de Defesa dos Conselhos no Legislativo Municipal e serviu também para abrir o debate público por meio de audiências públicas e de iniciativas junto ao Ministério Público e também nos órgãos da mídia não empresarial. Assim, em 2017, o projeto que pretendia restringir o poder dos conselhos foi retirado por Marchezan. Todavia, em 2019, a proposta de extinção e remanejo dos Fundos foi aprovada, sendo os recursos centralizados na Secretaria da Fazenda a fim de cumprir a política neoliberal de austeridade fiscal2.
A ofensiva contra os Conselhos foi continuada pela nova gestão do prefeito Melo (MDB), administração que vem intensificando o projeto neoliberal. Por ocasião dos 250 anos da cidade, o prefeito reafirmou a intenção de reduzir o papel dos conselhos, entendendo-os como sendo contraditórios com as eleições municipais3. Ele manifestou que pretende mudar as prerrogativas dos Conselhos da Saúde e da Educação, onde ocorrem resistências às medidas privatistas. E defendeu o Projeto de Lei 026/2021 enviado ao Legislativo (não votado), que prevê alterar o caráter deliberativo e a composição do Conselho da Saúde.
Cabe destacar ainda o retrocesso democrático que vem ocorrendo em um lugar central para o desenvolvimento urbano e a gestão das cidades: o planejamento urbano4. O contexto histórico de elaboração democrática do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental (PDDUA) e a consequente democratização do seu Conselho (CMDUA), em 1999, após decisão do Congresso da Cidade, cedeu lugar, gradativamente, a uma operação da política urbana e ambiental marcada pela crescente restrição da participação popular, concomitantemente à desregulamentação e flexibilização das normas urbanísticas e ambientais para os empreendimentos imobiliários.
Essa “flexibilização” ocorre principalmente por meio da aprovação dos Projetos Especiais. Previstos para serem exceção no sistema de planejamento urbano, eles vêm se tornando regra nas decisões do CMDUA e são utilizados em geral como forma legal de burlar os requisitos de equilíbrio urbano e de sustentabilidade socioambiental. Projetos de grande impacto socioambiental são viabilizados por acordo entre os poderes Executivo e Legislativo e os empreendimentos imobiliários, com reduzida oportunidade de livre debate e influência real pela sociedade em geral. Esse quadro é complementado pelo esvaziamento do Conselho Municipal de Acesso à Terra e Habitação (COMATHAB), espaço criado nos anos 1990 por proposta de movimentos de luta pela moradia, de técnicos urbanistas e do governo na gestão de Olívio Dutra (1989-1992).
O novo contexto de perdas democráticas também foi evidenciado na revisão do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental (PDDUA), programado para ocorrer em 2020. Apesar da obrigação legal de ampla informação e discussão, a revisão iniciada em 2019 demonstrou carência de transparência, de dados e de metodologia para o diagnóstico e a avaliação do desenvolvimento urbano. Essas deficiências do planejamento também decorrem do crescente enfraquecimento das estruturas governamentais responsáveis pelo monitoramento, diagnóstico e implementação do planejamento urbano. Esse desmonte da capacidade governamental ficou patente com as mudanças na Secretaria de Planejamento Municipal (SPM), até a sua extinção e transformação em “Secretaria de Urbanismo (SMURB)”, na gestão de Marchezan (PSDB). E prosseguiu com a reforma administrativa do governo Melo que dividiu o corpo técnico do setor entre a Secretaria de Desenvolvimento Econômico e a recém-criada de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (SMAMUS).
Nesse contexto de fragilização da capacidade governamental, a revisão do Plano Diretor, que deve se dar com a participação obrigatória da sociedade, passou a ocorrer de forma açodada durante a pandemia, em 2020, com oficinas esvaziadas nas regiões e a escolha seletiva de entidades. A reação ao atropelo, que se valia da pandemia, veio com a ação de entidades e movimentos do Coletivo AtuaPoA junto ao Ministério Público5, quando o Executivo foi obrigado a paralisar o processo e adiá-lo para 2022 até seu fim em 2023.
Cabe por fim evidenciar o retrocesso democrático extensivo a área ambiental. Uma vez frustrada a tentativa de extinguir a Secretaria Municipal do Meio Ambiente (a primeira criada no Brasil em 1976), a gestão de Melo adotou a estratégia de subordinar o tema ambiental à lógica da expansão predatória e extrativista do modelo urbano. Para isso, a pasta ambiental foi incorporada pela nova Secretaria de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (SMAMUS). A incorporação pela estrutura de urbanismo buscou minimizar as áreas de pressão sobre o meio ambiente e, ao mesmo tempo, racionalizar os procedimentos internos necessários à implementação do modelo urbano pró-mercado.
A subordinação do meio ambiente ao crescimento urbano a todo custo vem facilitando as políticas de desregulamentação, concessões privadas de parques e áreas verdes, facilitações para o licenciamento de construções e projetos (autolicenciamento), terceirizações de serviços, tudo concorrendo para o déficit de controle e regulação necessários à política de sustentabilidade ambiental diante das mudanças climáticas, algo cada vez mais exigido no mundo conforme previsão dos ODS/ONU ratificados pelo Brasil6.
Essas transformações institucionais se dão mediante o confronto com movimentos ambientalistas e esvaziamento das funções do Conselho Municipal do Meio Ambiente, órgão competente de participação da sociedade civil nas decisões públicas desse tema. Não é à toa que a nova secretaria, fortalecida pela centralização das funções urbanas e ambientais, é a única que permaneceu sendo dirigida pelo mesmo secretário da gestão anterior, em que pese as duas administrações terem sido de coalizões partidárias rivais nas eleições em 2020. Essa continuidade, inusitada nos momentos eleitorais do país, sugere alto grau de consenso ideológico e de confiança política-administrativa entre os principais atores das elites que comandam a cidade para a implementação do projeto pró-mercado e de city marketing.
1 - O Fórum Municipal dos Conselhos da Cidade vem realizando ações de resistência às tentativas de enfraquecer essas instâncias. Ver ZENKER, Mirtha da Rosa et al. Conselhos Municipais de Porto Alegre: histórico e os desafios na gestão democrática da cidade. Porto Alegre: Editora Rede Unida, 2021.E-book: PDF. E também Fórum dos Conselhos de Porto Alegre aprova Carta de Compromisso para 2021 – 2023. (https://sul21.com.br/noticias/geral/2021/08/forum-dos-conselhos-de-porto-alegre-aprova-carta-de-compromisso-para-2021-2023/#.YQwC4tCq2gw.facebook). (acessado 01/09/2021)
2 - Cf. Lei Complementar Nº 869, de 27 de dezembro de 2019 e decreto nº 20.465, de 3 de fevereiro de 2020.
3 - “De acordo com o chefe do Executivo, os órgãos de controle social estariam inviabilizando decisões do governo por “ideologia” – palavra bastante usada por ele na entrevista. In Melo defende redução da participação de conselhos. Jornal Matinal, 23 março, 2022. (https://www.matinaljornalismo.com.br/matinal/reportagem-matinal/melo-governo-federal-leite-dinheiro-reajuste-tarifa-onibus-porto-alegre/ )
4 - Sobre as conexões entre o OP e o planejamento urbano na desdemocratização ver a Tese de Doutorado de Lucimar Fátima Siqueira “Democracia e cidade: da democracia participativa à desdemocratização na experiência de Porto Alegre”. PROPUR/UFRGS, 2019.
5 - Cf. Coletivo AtuaPoA em documento dirigido À Promotoria de Justiça de habitação e defesa da ordem urbanística em Porto Alegre, pág. 11-12)
6 - Objetivos do Desenvolvimento Sustentável aprovados pela ONU
* Luciano Fedozzi é professor titular do Departamento de Sociologia da UFRGS e pesquisador do Observatório das Metrópoles ([email protected]).
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira