Os 30 anos da Lei Gaúcha da Reforma Psiquiátrica foram celebrados, nesta terça-feira, no Grande Expediente da Assembleia Legislativa do RS. A iniciativa foi do deputado Zé Nunes (PT), que disse que a ideia não é apenas “celebrar a conquista de direitos de uma parte da população historicamente marginalizada, e muitas vezes tolhida de liberdade”, como também refletir “sobre o sofrimento na contemporaneidade e a maneira como o Estado se posiciona diante deste mal-estar, que não é apenas do indivíduo, mas da sociedade”.
A Lei 9.716, de 7 de agosto de 1992, é de autoria do ex-deputado Marcos Rolim, que esteve presente na sessão, e foi aprovada por unanimidade na Assembleia Legislativa. “É uma lei construída a muitas mãos, em intensas movimentações e discussões da sociedade civil, da academia, de nós parlamentares e de nossa aguerrida militância do cuidado em liberdade, nossos 'mentaleiros' e tecelões desta imprescindível iniciativa que viabilizou nossas redes de atenção psicossocial pelo estado”, lembrou o deputado.
Zé Nunes falou de avanços e desafios, chamando a atenção para a necessidade de garantir o fortalecimento da rede de atenção psicossocial e o financiamento adequado do Sistema Único de Saúde. Disse ainda que a lei não apenas propõe uma revolução sistemática nos equipamentos e dispositivos da rede de atenção em saúde mental, como determina a substituição progressiva dos leitos nos hospitais psiquiátricos por uma rede de atenção integral em saúde mental.
O deputado reforçou seu compromisso com a pauta da saúde mental e luta antimanicomial e citou iniciativas de referência no estadocomo o evento anual nacionalmente conhecido “mental tchê”, em 2005. Atualmente, o “mental tchê” faz parte do Calendário Oficial de Eventos do Estado (Lei 15.215 – a partir de PL de autoria de Nunes). Em junho de 2021 foi reativada a Frente Parlamentar em Defesa da Reforma Psiquiátrica, em conjunto com o deputado Valdeci Oliveira (PT), atual presidente do Parlamento gaúcho.
O parlamentar manifestou sua defesa pelo financiamento dos Centros de Atenção Psicossociais (CAPS), unidades de acolhimento em saúde mental, centros de convivência, equipes de saúde mental na atenção básica, leitos de saúde mental em hospital geral e outros equipamentos para a promoção da saúde e bem-viver.
Também se manifestaram durante a homenagem os deputados Pepe Vargas (PT), Luciana Genro (PSol), Dr. Thiago (União), Zilá Breitenbach (PSDB), e Tiago Simon (MDB). Participaram, além de Marcos Rolim, a vice-presidente do Conselho Estadual da Saúde, Inara Beatriz Ruas; a vice-presidente do Conselho Estadual de Psicologia, conselheira Maynar Vorga; o representante dos usuários da Rede de Atenção Psicossocial e do Coletivo Geração POA, Dirceu Rohr Júnior; a vice-coordenadora do Conselho Municipal de Saúde e coordenadora da Comissão de Saúde Mental do Conselho Municipal de Saúde de Porto Alegre, Ana Paula de Lima e Paulo Afonso Bregollin de Azevedo, professor universitário e especialista em neurociência. No final, houve apresentação do grupo de teatro Nau da Liberdade.
Resgate histórico
A história que envolve a institucionalização da loucura no Brasil é recente, datada no século 19, quando surgiram as primeiras instituições destinadas a tratar os alienados mentais, recordou o deputado. “Para além do tratamento, que definitivamente não era o objetivo dos manicômios, a demanda pela institucionalização da loucura relacionou-se com o processo de urbanização do país. O objetivo era retirar das ruas, resguardar a população dos insanos, improdutivos e desordeiros. O manicômio, portanto, foi uma resposta a um projeto de Nação”, disse.
Mencionou que no RS (então Província de São Pedro) esta realidade não foi diferente. Em 1884 houve a inauguração do Hospício São Pedro, um dos primeiros do país, atendendo também a uma necessidade de separar os doentes mentais, que até aquele momento eram encaminhados à Santa Casa. Acrescentou que, cerca de uma década após sua inauguração, as fragilidades estruturais colocavam em cheque o modelo dessa instituição que comportava a psiquiatria nascente.
Citou que no ano de 1889, com a proclamação da República, o hospício deixou de ser gerido pela Santa Casa e passou a ser administrado por médicos, com o custeio do governo do estado. “Mas as reivindicações médicas, redigidas em relatórios pelos diretores do hospício, mostravam que o projeto de hospício concebido por este saber, estava longe de ser praticado”, acrescentou, citando aspectos que marcaram essa realidade do período.
“Com o avanço da psiquiatria, velhas práticas e novos recursos passaram a ser utilizados, como as fortes medicações, a vigilância ininterrupta, os choques elétricos e camisas de força. A superlotação impedia que houvesse acompanhamento individualizado dos casos. Um verdadeiro depósito de gente, que transbordava violações de direitos humanos”, recordou.
O deputado lembrou ainda que, nos anos 60, o psiquiatra italiano Franco Basaglia revolucionou as abordagens e terapias no tratamento de pessoas com transtornos mentais. “Basaglia foi um crítico ao modelo hospitalar psiquiátrico e teceu ideias contrárias ao conhecimento tradicional, que claramente deixava as pessoas à margem do tratamento. Mudanças institucionais e relacionais passaram a ser feitas”. Foi então que surgiu a necessidade e a obrigatoriedade de se colocar a pessoa e sua vida no centro dos debates, das pesquisas e dos tratamentos, e não mais a doença, que estigmatizava e prejudicava a recuperação das pessoas em sofrimento psíquico, prosseguiu o deputado. Abordagem que priorizou a reinserção territorial e cultural dos internos e inspirou movimentos pelo mundo .
Apenas em 2001 foi assegurado o fim dos manicômios no Brasil, com a Lei 10.216. E no Rio Grande do Sul, em março de 1991, foi formado o Fórum Gaúcho de Saúde Mental. Zé Nunes ainda citou dados de documento do Ministério da Saúde apresentado na Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental, em 2005, que apresentava um conjunto de transformações de práticas, saberes, valores culturais e sociais.
Já ao finalizar, Nunes disse que atualmente novas roupagens de uma história arcaica são observadas: “É preciso seguir vigilantes com as instituições que operam sob a lógica do isolamento e afastam do contato com a sociedade indivíduos considerados perigosos ou desviantes da ordem, como como se a cura passasse pela retirada da circulação do sujeito da sociedade. Essa cristalização no imaginário social é perigosa. A problemática em torno do abuso do crack tem reatualizado a exclusão como salvaguarda da sociedade. É um passado-presente”, finalizou.
* Com informações da Agência de Notícias da ALRS
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Edição: Marcelo Ferreira