Rio Grande do Sul

POANCESTRAL

Artigo | Reconstruir a cidade, com o boca no coração!

"A Porto Alegre que queremos e precisamos construir" deve garantir direitos; tema será debatido nesta segunda-feira (11)

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Em cartaz na Casa de Cultura Mario Quintana, filme que conta a história do jornal Boca de Rua faz pensar na necessidade de uma cidade que assegure direitos a seu povo - Foto: Divulgação/ De Olhos Abertos

Haverá uma melhor forma de contar uma história, senão aquela que apresenta lógica na narrativa, revela uma humanidade distante, nos emociona e, de forma inteligente, coloca em questão nossa zona de conforto, a clamar por justiça? É possível que sim, já que são muitas as linguagens e propósitos. Mas certamente poucas vezes a história recente de uma cidade tenha sido contada de maneira tão original e contundente, por aqueles e aquelas que em geral são tão invisibilizados/as e criminalizados/as, como dos integrantes do belíssimo projeto em torno do Jornal Boca de Rua, em Porto Alegre.

Lá se vão 21 anos do início da iniciativa, que é uma referência não apenas pela sua longevidade, mas pelo papel articulador, organizador e formador do povo de rua, com protagonismo e horizontalidade rara, na qual ativistas e intelectuais muitas vezes tendem a colonizar aqueles que pretendem apoiar. O jornal, de periodicidade trimestral, com até 16 páginas, tem suas pautas definidas, escritas, imagens captadas e composição da diagramação debatidas em assembleias regulares entre seus participantes. E tem sido, desde seu nascedouro, uma ferramenta de denúncia e de organização das pessoas em situação de rua. É também fonte de renda aos participantes, já que seus exemplares são vendidos ao valor simbólico de R$ 2,00. Mas ele é também fonte da qual brota água límpida e abundante. Fonte de vida, de subsistência que gera o moinho da dignidade, dos sonhos e de projetos coletivos de transformação.

Como educadores acompanhamos desde há muito, com o prestígio e a solidariedade na aquisição de exemplares diretamente com os integrantes do Boca nas ruas e feiras da cidade, com a utilização de reportagens em sala de aula, com a divulgação a conhecidos. O frio, a dependência, as mortes, as crianças, a fome, a doença, a escola, o lar, o preconceito, as mulheres, as lutas, a higienização, as ocupações, os juízes, os direitos. Assim a edição de n.70 (do primeiro trimestre de 2019) tematiza momentos significativos de sua trajetória, o que dá uma ideia para quem não conhece o significado dessas experiências e as muitas lutas travadas. Há apoiadores/as, voluntários, financiadores, que ajudam essa experiência a manter-se de pé.

Clique aqui para conhecer e apoiar o Boca de Rua

Uma dica? Depois de fazer seu apoio acessando o link acima, se não foi ainda, vá ao cinema. Na Cinemateca Paulo Amorim (Casa de Cultura Mário Quintana) De olhos abertos estará em cartaz até o final do mês de abril. Assista com toda a atenção possível o documentário que conta um pouco dessa história. Mais adiante ele entrará no circuito de exibição do SESC e ainda há a opção de organizar uma sessão, em qualquer lugar do Brasil, virtual ou presencial em escola, cineclube, espaço cultural ou outra instituição. Saiba mais no site oficial: www.deolhosabertos.com

De olhos abertos


Documentário conta a história do Boca de Rua e da vida de seus integrantes / Foto: Divulgação/ De Olhos Abertos

O belíssimo longa-metragem, dirigido por Charlotte Dafol, é arrebatador! Conta a história do Boca de Rua e da vida de seus integrantes. E vale cada um dos seus 112 minutos. Filmado em 2019, com a pandemia sua estreia se deu em janeiro de 2022, apesar de ter sido apresentado em sessões especiais e alguns festivais, nos quais já obteve reconhecimento e premiações.

A história de sua produção é condizente com a situação geral que se alastra no pais, com o abandono das políticas de fomento à cultura. Aprovado pela Ancine, mas sem financiamento público ou privado foi viabilizado através de uma vaquinha eletrônica, que possibilitou a compra de uma câmera usada e ajuda de custo para transporte e alimentação. A Agência Livre para Informação, Cidadania e Educação (Alice) auxiliou na produção em 2020. A diretora, de origem francesa, e há 10 anos no Brasil, é também escritora e musicista, além de ter formação em História. Foi ela quem produziu o roteiro do filme, e teve a sensibilidade de deixar-se guiar pelas entrevistas, em uma sábia escolha no qual o olhar como fotógrafa fez toda a diferença na composição.

Com o Boca no coração

Não há um narrador, ou narradora, tão comum em documentários. Tampouco entrevistas com autoridades públicas, técnicos ou pesquisadoras no tema. No primeiro plano, rostos, num plano que nos conduz a um encontro com a alteridade e a humanidade de cada depoente. A polifonia de vozes, alternando momentos coletivos em torno das pautas, produção e distribuição do Boca, é uma das grandes qualidades do filme, revelando as vivências e a percepção social e política de cada um, cada uma. Muito vivamente, cada gesto, cada brilho na retina, cada voz embargada e riso nervoso nos leva para dentro do coração da família do Boca de Rua, uma comunidade tão horizontal quanto possível, captados em um raro grau de intimidade de uma humanidade que a maioria dos transeuntes no filme parece, infelizmente, não perceber, preocupados em fazer compras e deslocar-se tão-somente.

Esse poderia ser classificado como um filme de estrada. Os ambientes nos quais são captadas as imagens são ruas, praças, parques, sinaleiras, na EPA (Escola Municipal Porto Alegre). Neles percebemos, na produção, uma confiança admirável, como em uma conversa franca com quem partilhamos afeto e cumplicidade, no qual as risadas soltas das horas boas também encontraram o ombro amigo nas horas difíceis, entre soluços de desespero. Certamente mérito da diretora, mediadores e da equipe parceira: Charlotte Dalfol e Annekatrin Fahlke, assistente de direção, em belo trabalho de montagem de Alfredo Barros, desenho de som com várias músicas dos participantes do Boca, em situação de rua, por Juan Quintáns e finalização de imagens de Raoni Ceccim.

De olhos abertos é expressão que revela uma regra absolutamente necessária para sobrevivência nas ruas. Mas, para além de uma expectativa rasa, você vai se surpreender com a beleza esperançosa de Alessandra, com a humanidade de Aline e de Kelly, com a eloquência, agudeza de raciocínio e a inteligência de Anderson. Com a articulação de Kimba, com a solidariedade de Leandro, a dignidade e serenidade não resignada de Paulinho, desde os 9 anos na rua, e já com mais de 50, com o apoio recebido de Zóio. Com os duros aprendizados de Josi e sua autossuperação, vai rir com o sonho político de Paulo, admirar-se da liderança de Jorge e com a persistência (e o papel central) de Rosina Duarte no projeto, com a cumplicidade de Cristina, e tantas, tantos outros outros, que passaram ou continuam por lá. E que fazem assim não só um Jornal, mas das mais extraordinárias experiências de Educação Popular que conhecemos.

É fundamentalmente disso que precisamos em uma cidade para que seja melhor do que é. Uma cidade na qual o povo tenha direitos a ter direitos, e que eles sejam assegurados.

Outra cidade possível

O projeto político que hoje vigora, sob uma coalizão conservadora e que dirige a capital gaúcha, na condução de Sebastião Melo (MDB) e Ricardo Gomes (DEM), prioriza investimentos que favorecem as grandes corporações, sobretudo da burguesia associada ao ramo imobiliário, mercado financeiro e as grandes redes comerciais. Na lógica do capital, Porto Alegre está cada vez melhor, privatizada, com desmonte do Estado e dos serviços públicos, celeremente vê decair a qualidade de vida de sua população, ano a ano.

Nesse espectro, pouco ou nada aparece de potencialização e melhoria das condições de vida da Porto Alegre que existe na Restinga, em Belém Novo, no Sarandi, na Bom Jesus, no Rubem Berta, na Cruzeiro, na Lomba do Pinheiro, no Partenon, nas Ilhas. E mesmo a na Porto Alegre de um Centro Histórico, como nos dizem os integrantes do Boca de Rua, que não é composto apenas de silhuetas de prédios históricos, trecho de orla embelezados e pôr do sol.

Para debater a cidade que queremos precisamos construir, uma cidade que tenha como princípio assegurar condições e o direito à vida digna de seus habitantes, valorize e respeite suas características socioambientais, seu patrimônio cultural imaterial, que assegure formas de planejamento efetivamente democráticas de gestão e controle do orçamento, deixamos um convite para um encontro.

A Porto Alegre que queremos e precisamos construir


Card de divulgação da live / Reprodução

Trata-se da sexta e última live, de uma primeira série de encontros de formação, que tematiza justamente a problemática apontada e integra calendário alternativo de reflexão em torno dos 250 anos da cidade de Porto Alegre. O Projeto PoAncestral – Muito além de 250 é iniciativa em co-promoção da ATEMPA (Associação dos Trabalhadores/as em Educação do Município de Porto Alegre) e CPHIS (Coletivo de Professoras e Professores de História da RME PoA) em parceria com o Canal LUDE Comunicação no Youtube (Programa Professores Diáries).

Teremos o privilégio de ver e ouvir Anderson Ferreira: Dr. em Educação pela Faced/UFRGS por "notório saber", graduando em Políticas Públicas na UFRGS, fundador do MNPR-RS (Mov. Nac. da População de Rua), integrado do Jornal Boca de Rua há 10 anos; Rualdo Menegat: prof. Instituto de Geociências da UFRGS, deólogo, Dr. em Ecologia de Paisagem, Dr. Honoris Causa (UPAB, Peru), vice-presidente científico Foro Latino-Americano de Ciências Ambientais/Cátedra Unesco-Unitwin para o Desenvolvimento Sustentável; Jacqueline Custódio: advogada especialista em Direito Público pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul (FMP), coordenadora do Fórum Estadual RS de Entidades em Defesa do Patrimônio Cultural Brasileiro; Magali Menezes: profa. de Filosofia na Faced-UFRGS, coordenadora da Ação Saberes Indígenas na Escola, diretoria da Seção Sindical do Andes na UFRGS; e Luciano Fedozzi: Prof. de Sociologia da UFRGS, pesquisador do Observatório das Metrópoles. Na mediação, Rodrigo Souza de Santos (prof. de História na RME de Porto Alegre, do Coletivo de Profs de História, e da coordenação do PoAncestral) juntamente com André Pares (prof. de Filosofia na RME de Porto Alegre e jornalista).

Live: A Porto Alegre que queremos e precisamos construir

Quando : Hoje, 11 de abril, segunda-feira, 19h

Onde asssitir: www.youtube.com/c/LudeComunicacao

Conheça a página no Facebook e perfil no Instragram do PoAncestral - Muito além de 250

* Anália Martins e Marco Mello são professores na Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre, integrantes do Coletivo de Professoras/es de História PoAa (CPHIS) e Projeto PoAncestral – muito além de 250

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Marcelo Ferreira