Sofia Manzano, pré-candidata à Presidência da República pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), esteve em Porto Alegre entre os dias 27 de março e 1 de abril. Economista, doutora em História Econômica pela USP e militante do PCB desde os 17 anos, Sofia Manzano é professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) e tem longa trajetória nas lutas da juventude e do movimento sindical.
Ela veio a Porto Alegre para participar do 40º Congresso do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (ANDES -SN). Na noite do dia 31, esteve numa atividade do partido no Auditório do Simpa, para debater os desafios para a classe trabalhadora no Brasil e o centenário do PCB. Também participaram do diálogo Priscila Voigt (UP) e Pedro Ruas (PSOL) com mediação da Mari Rodrigues.
Nesta entrevista exclusiva ao Brasil de Fato RS, Sofia fala de sua trajetória, educação, os 100 anos do partido e o desafio de ser candidata à Presidência da República.
Confira a entrevista
Brasil de Fato RS - O tema do Congresso do ANDES foi a “Vida acima do Lucro”. O que este assunto tem a ver com a Educação?
Sofia Manzano - O ANDES é um sindicato que tem um empenho muito grande na luta da classe trabalhadora como um todo. Com relação especificamente a questão da educação, é a luta contra a mercantilização da educação, quer dizer, o processo, o capital que avança sobre o setor educacional assim como o da saúde. E que coloca o lucro acima da vida. Então é um tema que remete também à necessidade da derrota de Bolsonaro, o quanto antes possível, sem necessariamente esperar a eleição. Nós compomos este sindicato junto com outras forças, e temos este lema justamente pelo momento que nós passamos. Em que todas as estruturas públicas sociais estão sendo destruídas em nome do lucro.
BdFRS - Entre as resoluções do Congresso está lutar por um retorno seguro às aulas nas universidades. O que isso significa?
Sofia - Então, há um grande debate que se abre, depois de dois anos de pandemia e ensino remoto, que é a tentativa de evitar a precarização do ensino. E que muitos gestores das universidades, mesmo pública, veem como mais vantajoso, digamos assim, avançar para restringir o retorno presencial. Colocar esta forma remota como um padrão. E nós somos contrários a isso, porque nós achamos que isso degrada o processo educacional, a presença é muito importante, a interação do estudante no ambiente universitário é importante, a interação do estudante com os demais estudantes, com outros cursos. Isso que significa uma universidade. Não é simplesmente a transferência de conteúdo, que isso pode se dar de diversas formas.
No entanto, a gente tem que considerar que a pandemia não acabou. Então este retorno tem que ser integral, sem a degradação que a educação pode sofrer com o avanço dos próprios gestores das universidades públicas para imposição de algum tipo de ensino remoto, que vai transformar o processo educacional num processo mais tecnicista ainda. Mas ao mesmo tempo ainda preservando a segurança, a saúde dos estudantes. Então várias resoluções foram tomadas, no sentido de que os protocolos de segurança sejam debatidos em conjunto com a comunidade acadêmica como um todo. Não só as reitorias e seus gestores, mas também os docentes, os discentes e os técnicos. Este é o sentido que o ANDES encaminha para suas sessões sindicais.
BdFRS - Outra proposta aprovada foi lutar contra o projeto de tornar o ensino remoto híbrido permanente...
Sofia - Veja, são diversas questões. Tanto em nível federal quanto nos estados, os governos têm restringido os recursos necessários para a educação. Por conta de ajuste fiscal, por conta de todo processo de retirada de recursos da educação como um todo. E aí o que acontece: chega lá na universidade com uma restrição de recurso, os reitores, os administradores das universidades, ficam procurando, ao invés de enfrentar o governo, junto conosco, professores, estudantes e técnicos para que os recursos sejam ampliados, eles ficam tentando adequar a universidade a esta restrição de recurso. Isso é um erro. Porque você está cada vez mais cedendo espaço para a política neoliberal de desmonte da educação pública.
Nós temos um movimento pela universidade popular, que envolve inclusive uma questão mais ampla de pensar a universidade como um espaço de construção do conhecimento para a classe trabalhadora
Nós já temos propostas das administrações de diversas universidades em transformar este modelo híbrido, do ensino remoto, de ensino à distância, que já existia inclusive antes da pandemia, num padrão. Isso pra nós é um completo desmonte do que nós propomos como um processo educacional que seja integral. E aí eu estou dizendo em nome da nossa corrente, e não em nome do sindicato como um todo. Nós temos um movimento pela universidade popular, que envolve inclusive uma questão mais ampla de pensar a universidade como um espaço de construção do conhecimento para a classe trabalhadora. Agora como é que você vai fazer isso tendo propostas que vêm das administrações de restringir cada vez mais o processo de ensino, pesquisa e aprendizagem num ambiente individualista do ensino remoto?
Isso sem contar que o ensino remoto sobrecarregou de forma acentuada o trabalho docente. Nós tivemos neste período de pandemia que lidar não só com o processo de ensino que já fazia parte das nossas obrigações, de pesquisa e extensão, mas também com um conjunto de procedimentos burocráticos que nos toma um tempo absurdo que poderia estar sendo utilizado para o ensino, pesquisa e extensão. Então esta tentativa de configurar para sempre este modelo híbrido é mais uma precarização da universidade pública no nosso país.
BdFRS - Tu és pré-candidata à Presidência da República pelo PCB. O que representa uma professora assumir este papel neste momento do país?
Sofia - Bom, primeiro assim, o nosso partido toma as decisões de forma muito coletiva. Nós acabamos de sair do 16º Congresso e fizemos um debate muito importante sobre a estratégia e a tática do PCB em todas as esferas de lutas, não somente na eleitoral. E logo em seguida, o comitê central, que é a direção máxima do partido, avaliou diante da conjuntura que se apresenta a necessidade da continuidade da luta para derrotar Bolsonaro. Também a necessidade de promover um movimento de revogação das contrarreformas que foram implementadas e apresentar um projeto para o país, que tenha a classe trabalhadora como protagonista.
Nós avaliamos que era importante ter uma pré-candidatura à Presidência da República. Diante dos quadros que nós temos, eu fui então a escolhida. Eu já participei do processo eleitoral como candidata a vice-presidente na chapa de Mauro Iasi em 2014, mas não sou, como digamos, em outros partidos, uma figura que esteja na carreira eleitoral que muitas vezes a gente vê nas organizações partidárias, pessoas que se tornam políticos profissionais, neste sentido, porque políticos todos nós somos. Pessoalmente é uma honra estar ocupando este espaço principalmente no Centenário do PCB, mas também é uma tarefa bastante árdua inclusive pelas condições materiais que são muito exíguas para nós comunistas.
BdFRS - E neste mesmo sentido, qual seria o papel da educação universitária no desenvolvimento do país?
Sofia - É fundamental. Porque no projeto mais geral que nós temos a apresentar para a classe trabalhadora brasileira, não só neste período eleitoral, mas numa forma mais abrangente, pra que a classe trabalhadora tome em suas mãos as rédeas da condução do país, nós pensamos que temos que construir um projeto de desenvolvimento em que a classe trabalhadora tenha autonomia. É o que nós chamamos da construção do poder popular. Isso nos mais diversos setores da vida e das atividades produtivas que a gente tem que ter uma reconfiguração.
O país passa por um processo de desindustrialização, nós temos que fazer um projeto de reindustrialização do país, mas não mais contando com uma classe dominante, uma burguesia que não está interessada nisso. Então a classe trabalhadora tem que assumir este processo. Nisso a universidade pública, os quadros científicos das universidades têm um papel fundamental. Se nós pegarmos, por exemplo, a questão alimentar e de produção agrícola no país, temos hoje a reprodução ou a continuidade do latifúndio, que sempre foi um problema grave no nosso país. A diferença é que agora é um latifúndio de produção de commodities para exportação e não para a produção de alimentos. Claro que nós temos alguns setores do país que a Reforma Agrária minimamente ocorreu e que os pequenos produtores, agricultores familiares produzem alimentos, mas ainda não é suficiente para uma soberania alimentar da população brasileira. E a universidade tem muito ainda a contribuir com isso, ao contrário muitas vezes do que a universidade tem feito.
A universidade tem muito a contribuir dentro do nosso projeto de apresentar para a sociedade neste período eleitoral uma alternativa de esquerda que a classe trabalhadora esteja no comando
Os grandes polos de desenvolvimento da ciência e tecnologia para o setor agrícola dentro da universidade pública está muito mais vinculado aos interesses do capital do que aos interesses da classe trabalhadora. Então partindo da universidade um projeto do movimento da universidade popular, por exemplo, em que a pesquisa científica esteja vinculada aos interesses da classe trabalhadora, também significa que na pesquisa vinculada a produção agrícola esteja em primeiro lugar a pequena propriedade, a produção de gêneros alimentícios, a soberania alimentar.
Aí a gente pode passar para outro ponto: o processo de distribuição disso tudo, num país tão grande como o Brasil. Reorganizar o processo de armazenagem e distribuição de alimentos. Isso vincula também com a questão macroeconômica que estamos passando de escalada inflacionária. A universidade tem muito a contribuir dentro do nosso projeto de apresentar para a sociedade neste período eleitoral uma alternativa de esquerda que a classe trabalhadora esteja no comando, pegando tudo que nós temos de potencial crítico, de potencial científico do interior da universidade.
BdFRS - Como estás vendo estas denúncias envolvendo casos de corrupção no Ministério da Educação?
Sofia - Esta é uma questão que é permanente no Brasil que foi acentuada agora no governo Bolsonaro e que deve ser denunciada muito fortemente durante esta pré-campanha eleitoral e depois na campanha eleitoral. Porque o Bolsonaro se elegeu dizendo que era a nova política. A gente sabe muito bem que uma pessoa que está há mais de 30 anos compondo o baixo clero do centrão, não está isento de participar de toda corrupção que envolve o aparato político institucional, principalmente na Câmara dos Deputados e das relações que se têm ali com o orçamento público e as estruturas mais básicas do Estado, lá nos municípios.
Essa é uma prática que a gente tem que combater, tem que denunciar e ficar atenta para que isso possa ser diminuído no processo histórico brasileiro. Então a primeira questão que a gente tem que ressaltar é que o governo Bolsonaro nunca foi um governo de combate à corrupção e nunca deixou de ter nos seus meandros esta corrupção atuando de forma bastante acentuada. Hoje nós temos esta denúncia da Educação, mas já esquecemos da questão da vacina? Da possibilidade da compra de vacina superfaturada? Vacinas que nem existiam, e se for investigar nas demais áreas este processo certamente deve estar acontecendo. A diferença é que neste governo não se tem investigação. Tudo é sigilo de 100 anos, a Polícia Federal aparelhada, enfim todo o processo que nós vemos de transformação do Estado num aparato de defesa de uma família vinculadas as coisas mais escusas que nós temos na política brasileira.
A diferença é que neste governo não se tem investigação, tudo é sigilo de 100 anos, a Polícia Federal está aparelhada
No entanto, a gente entende que para superar qualquer processo que envolva corrupção, tem que se construir o fortalecimento das organizações populares. Mais do que o aparato judicial, de investigação, que é importante também, mas se a população estiver organizada, bem-informada, ela própria, a partir das suas organizações, tem poder de descobrir, de denunciar e de combater a corrupção. Porque a corrupção é geneticamente vinculada ao capitalismo. Capitalismo e corrupção são duas coisas que sempre andam juntas em qualquer país do mundo. A diferença é que em alguns países existem estruturas que combatem de certa forma uma corrupção mais abrangente. E em outros países, com alguns governos esta corrupção é muito mais disseminada.
Como a gente pode construir então um modelo, uma esperança de uma estrutura política em que a corrupção não seja um elemento tão pernicioso, tão maléfico para o país? Com a construção de estruturas de poder da população, da classe trabalhadora, nos seus sindicatos, nos locais de moradia, nos seus locais de trabalho. Entendo que os recursos públicos e os benefícios destes recursos públicos têm que ser destinados à população, tem que ser de forma pública, de forma transparente, e não através de políticos regionais que vão desviar recursos, inclusive de empresários, porque não existe corrupção só do setor público. A corrupção sempre envolve o setor privado também.
BdFRS - Este ano está sendo comemorado o centenário do PCB. Qual a importância desta data e os desafios do partido tendo em vista a campanha anticomunista da extrema direita?
Sofia - Desde o dia 25, que é a data do aniversário do Partido Comunista Brasileiro, estamos comemorando o centenário em diversos locais do país e é muito importante trazermos para a cena política brasileira, a história deste partido. Cem anos é um tempo significativo. O PCB surgiu lá em 1922 a partir da necessidade da classe trabalhadora que vinha de um anarco sindicalismo para organizar esta classe nos moldes do que a revolução Russa apresentava em 1917. Tem uma história de luta nas mais diversas áreas da sociedade brasileira, desde a luta institucional, eleitoral, mas também a luta pela terra, a luta sindical, a luta das mulheres, o combate ao racismo. Neste momento crucial para o nosso país de enfrentamento da extrema direita, de um governo de corte fascista, em que precisamos apresentar para a sociedade brasileira um projeto que possa levar à emancipação da classe trabalhadora, resgatar a história do PCB é muito importante. Então eu estou muito contente em participar de todos estes debates que estão sendo feitos.
A história dos comunistas e das comunistas no Brasil, é uma história muito rica e que gerou diversas outras correntes, inclusive, na esquerda brasileira que está aí na luta até hoje para a transformação social. Então, resgatar esta história é muito importante. Acima de tudo, combater a demonização do comunismo é muito importante. Porque o comunismo é a proposta mais generosa que a humanidade já produziu para ela própria. Mas como o comunismo sempre é o responsável pelo enfrentamento do que há de mais terrível no capitalismo, é muito demonizado. Somos como um dique de contenção, digamos assim, da barbárie capitalista, seja sua forma mais drástica que é o fascismo, até as formas menos terríveis, mas que também são exploradoras da classe trabalhadora.
A história dos comunistas e das comunistas no Brasil, é uma história muito rica e que gerou diversas outras correntes, inclusive, na esquerda brasileira que está aí na luta até hoje para a transformação social
A sociedade tem pouco conhecimento do que é a proposta comunista, do que é a construção do comunismo. Então é muito importante neste momento resgatar esta história, colocar na ordem do dia um debate honesto sobre o que os comunistas pensam, o que os comunistas querem, qual é esta proposta generosa. Imagine uma sociedade em que você não é super explorado. Imagine uma sociedade em que se muito mais gente trabalha a jornada de trabalho pode ser muito menor para cada um dos indivíduos, porque você não tem a super exploração do lucro capitalista. Então todas estas questões são importantes e é muito bom poder resgatar tudo isso neste momento histórico.
BdFRS - Para finalizar, eu não podia deixar de te perguntar, porque tu teve uma atuação muito forte no movimento estudantil, como tu enxergas a atuação dos jovens nas universidades hoje.
Sofia - Minha atuação no Movimento Estudantil foi quando eu estava na universidade, na graduação nos anos 1990. Eu entrei no PCB em 1989 e logo depois ingressei na Universidade e fui para o Movimento Estudantil. Foi um momento tanto da reconstrução do PCB, como da União da Juventude Comunista. O ME é muito importante para a formação do jovem e até hoje ele é importante. Mas o grande formador mesmo do carácter revolucionário, do militante consciente, do militante que vai entender qual é o seu papel na luta de classes, é no Movimento Sindical ou no Movimento Popular, vinculado às condições de existência.
O ME é importante enquanto formação do jovem e também para você ter garra, jovem tem energia, tem força, tem alegria e isso é muito importante. Mas você só se vai dar conta da luta de classe real quando você estiver inserido no mercado de trabalho, ou não, quando você estiver desempregado, tentando se colocar no mercado de trabalho. Neste momento você vai entender como é importante a organização da população enquanto trabalhadora, muito além do estudante. Porque o estudante pode ser tanto da classe trabalhadora, e esperamos que seja cada vez mais, como pode ser da classe dominante. E ali ele pode estar na sua luta imediata, lutando pelo mesmo objetivo que é de repente uma melhor organização da universidade, das questões imediatas da universidade, mas isso não é necessariamente uma luta de classes.
O grande formador mesmo do carácter revolucionário, do militante consciente, do militante que vai entender qual é o seu papel na luta de classes, é no Movimento Sindical ou no Movimento Popular, vinculado às condições de existência
A luta de classe se dá mesmo quando você está inserido no mercado de trabalho de alguma forma. E esta que é a experiência que os jovens que estão hoje no ME devem buscar, como trabalhadoras e trabalhadores, enxergar o seu papel como classe. E aproveitar todo este aprendizado do ME e toda esta garra da juventude, para que lá na sua base, agora quanto trabalhadoras e trabalhadores posso dedicar sua energia a esta organização.
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Edição: Katia Marko