Rio Grande do Sul

Quilombos Urbanos

“Não sabia que morava em um Quilombo, agora me declaro uma quilombola com orgulho”

A afirmação é de Natália Dutra Padilha, moradora do Quilombo Kédi, numa das áreas mais nobres da Capital, há 20 anos

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Arte sendo feita em um dos acessos do Quilombo Kédi - Foto: Júlia Costa da Silva/Arquivo Pessoal

“É tempo de formar novos quilombos, em qualquer lugar que estejamos, e que venham os dias futuros. A mística quilombola persiste afirmando: ‘a liberdade é uma luta constante’”. Conceição Evaristo. 

Há 120 anos o senhor José Dutra Pacheco, vindo de Taquara, região Metropolitana de Porto Alegre, trouxe os seus sete irmãos fugidos de uma colônia de escravizados, para uma parte até então periférica de Porto Alegre, denominada colônia africana. Nascia ali, o local onde anos mais tarde seria conhecido como Quilombo Kédi, remanescentes do Quilombo Silva, que foram separados pela avenida Dr. Nilo Peçanha. 

A família Dutra chegou à capital gaúcha quando esta completava 130 anos. Instalaram-se no bairro Boa Vista, zona Norte de Porto Alegre. Ali plantavam flores para vender, confeccionavam piaçava para fazer vassoura, criavam porcos e cavalo de raça, lavavam as roupas numa fonte de água na beira da Nilo Peçanha, de onde tiravam a água. Foram as mãos dessa família que construíram o clube inglês, conhecido atualmente como Country Club, posteriormente vendido à companhia Zaffari. 

Com o tempo a região foi ficando cada vez mais valorizada, tornando-se uma das áreas mais nobres da capital gaúcha, e com alto custo aquisitivo. A região possui IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) de 0,958 e IDH de renda de 1,000. A Capital tem em média 0,805 e 0,867. 

A especulação imobiliária fez com que o território da comunidade fosse perdendo espaço, encontrando-se atualmente esmagado entre prédios comerciais e residenciais, e o Country Club. Uma única rua dá acesso ao local. A comunidade está a poucos metros de dois grandes shoppings, Iguatemi e Bourbon. 

Desde 2014, por conta de uma decisão judicial, a comunidade autodeclarada, trava uma luta para se manter no local, já que há uma ordem de remoção dos remanescentes da área. 

Entre as pessoas que lutam por permanecer no Quilombo estão Tânia Rosane Jesus Dutra, 52 anos, e sua filha Natália Dutra Padilha, 30 anos. Mãe e filha descobriram estar residindo em um Quilombo após uma equipe da Universidade Federal do Rio Grande do Sul fazer o levantamento e as informá-las. 

O nome do Quilombo tem origem no período em que os negros serviam aos ricos no Country Club e ficaram morando numa das áreas mais nobres de Porto Alegre. “A gente trabalhou para muitos empreendimentos da região. Aqui no clube eu trabalhei, nesses prédios debaixo eu trabalhei, para o lado de cima”, conta Tânia. 


Quando criança haviam diversas ruas e bequinhos na comunidade / Foto: Fabiana Reinholz

“Agora me declaro uma quilombola com certeza”

Descendente da família Dutra, Tânia mora há muitos anos na comunidade. Ela conta que quando a família dela foi para o local não tinha água. “Tinha uma vertente que corria nas pedras, buscávamos água de galão. Tínhamos bares que vendiam produtos a quilo. Era tudo mato. Quando minha mãe veio para cá só tinha três, quatro casas, os primeiros que vieram para cá desmataram e assim foi crescendo a comunidade”, relembra Tânia, que antes da mudança vivia no chácara do avô, no Quilombo Silva, primeiro quilombo urbano reconhecido no país. 

Ela ainda conta que quando criança haviam diversas ruas e bequinhos na comunidade. Atualmente, devido a expansão, e a especulação imobiliária na região, a comunidade fica espremida, tendo apenas uma via principal de acesso, tão estreita que só tem espaço para um carro em mão única. “Ficamos espremidos aqui, as casas não têm mais pátio para as crianças brincarem”, conta Tânia. Apesar disso, a dona de casa, que em frente a sua casa tem uma árvore frondosa, afirma que o local é seguro para deixar as crianças brincarem até tarde. “Aqui somos quase todos parentes. Criei meus sete filhos, tenho sete netos, todos criados aqui. As pessoas que saíram daqui não sabiam que era um Quilombo”, pontua. 

“Ficamos sabendo a pouco tempo que onde a gente mora é um Quilombo. Saber disso foi para mim de extrema importância porque estamos sofrendo uma pressão muito grande para nos remover daqui”, relata Natália.


Vista do Country Club de uma das casas / Foto: Júlia Costa da Silva/Arquivo Pessoal

Com uma forte ligação com o local, a professora da comunidade Júlia da Costa Silva destaca que esse desconhecimento é consequência da colonização. “Por conta da colonização que temos, infelizmente as pessoas não enxergam a Kédi como Quilombo. Entendem que eles são separados dos Silva, o primeiro Quilombo urbano do Brasil. Porém o Quilombo Kédi resiste, são todos parentes da família Silva, cuidam uns dos outros, ambos os quilombos vivem em comunidade”, expõe.

No meio virtual o reconhecimento existe. Se digitar Quilombo Kédi nos aplicativos de transporte pessoal, como Uber e 99, assim como no google maps, ele aparece. 

À espera do reconhecimento oficial e a luta pela permanência 

Autodeclarado em maio do ano passado, quando foi enviada a carta à Fundação Palmares, a comunidade aguarda o reconhecimento oficial em meio a uma luta contra a ação de remoção ajuizada pelo Ministério Público Estadual. 

De acordo com o mestrando em Antropologia Adilson Silva da Silva, que vem acompanhando e trabalhando na elaboração da documentação da comunidade desde novembro de 2021, a autodeclaração parte da própria comunidade, conforme uma norma que vem desde a Constituição de 1988. “Ela foi instituída para que esses grupos que são comunidades tradicionais, tenham reconhecimento daquele território que habitam, e que tem essa ligação com o território.” 

A estimativa é que haja no país mais de quatro mil comunidades pedindo reconhecimento. No RS, aponta o mestrando, seriam mais de 100 comunidades. Segundo explica, o reconhecimento é baseado em práticas das características de uma africanidade, de características dos negros que vieram da África, e que foram passando através da oralidade, através das práticas também, para suas futuras gerações. “Pelo que se percebe, a comunidade Kédi tem essas características, eles têm uma ligação forte com o território, têm características de parentesco, a questão da cultura, dos ritos da religião de matriz africana”, pontua. 
 
Segundo as moradoras, um dos intentos da remoção é expandir a rua Frei Caneca. A ação trouxe turbulência à vida de Natália, que diz que começou a sofrer de ansiedade. 

“Eu não dormia, não conseguia comer, eu emagreci, tive episódios de crise de ansiedade porque era muita pressão. Veio o DEMHAB (Departamento Municipal de Habitação), achamos que iam nos ajudar e ficamos sabendo que eles estão fazendo um cadastro de remoção da vila. Eu consegui construir minha casa esse ano e fiquei pensando, ‘nossa agora que eu consegui sair da casa da minha mãe’”, relata. “Aqui é geração para geração, se eu tiver filho onde eu vou criá-lo, qual educação vou dar para ele em outro lugar porque a gente vê muita tragédia, muitas coisas acontecendo em outras vilas que ali nunca acontece”, complementa Natália, pontuando que morando no Quilombo Kédi consegue ir e voltar a pé do trabalho. 


Pintura de murais desenvolvida pela ONG LAPPUS / Foto: Júlia Costa da Silva/Arquivo Pessoal

O levantamento da história da cominidade começou pelo trabalho do instituto Akanni, foi dali que a comunidade começou a se perceber como um quilombo. Esse reconhecimento como Quilombo, trouxe uma certa tranquilidade, pontua Natália. “Eu sei que quem mora em um Quilombo é uma área muito respeitada e não é bem assim para mexer. Isso me tranquilizou um pouco, mas claro que o processo ainda continua. Não sei ainda se mudo, se termino a casa, claro que isso mexe com meu psicológico, mas saber que ali é um Quilombo foi a melhor coisa”, afirma. 

A moradora tem participado ativamente das reuniões que envolvem a permanência da comunidade e diz que a pressão é intensa. “Em alguns momentos queriam que disséssemos que não somos Quilombo, sendo que nós somos, nos declaramos quilombos. Mas estamos confiante da nossa luta de permanecer no Quilombo.” 

Em junho do ano passado, o Conselho Estadual de Direitos Humanos do Rio Grande do Sul (CEDH-RS) emitiu uma recomendação para que fosse feita uma apuração sobre as ameaças de despejo dada a existência de ocupação tradicional em reconhecimento como Quilombo Kédi. Conforme aponta o documento, a comunidade possui relações de pertencimento e territorialidade associadas ao primeiro quilombo urbano formalmente reconhecido no país, o Quilombo da família Silva. Diante das ações de remoção o Conselho recomenda, por exemplo, que a prefeitura e Câmara de Vereadores tenham atuação sinérgica, no sentido de imediata interrupção de toda e qualquer ameaça em vista da abertura do processo de reconhecimento da comunidade como remanescente de quilombo, bem como alteração do zoneamento municipal para recepcionar essa comunidade, entre outros. (Aqui a recomendação completa)


Tânia Rosane Jesus Dutra mora no Quilombo desde criança / Foto: Fabiana Reinholz

Além da especulação, o preconceito 

Além da especulação imobiliária, pesa sobre a comunidade o preconceito. “A presença da comunidade é vista como uma coisa ruim ali dentro daquele bairro que é chamado de nobre. Ele é perto do shopping Iguatemi, ao lado do Country Club, perto do colégio Anchieta, que é onde vive e circula a burguesia da cidade. Aquele local para outros olhos é visto como um local feio, um local de arruaças e beberagem. Para além dessa ideia de especulação imobiliária, a ideia é de retirada dessas pessoas, porque nas palavras populares aquilo ali é uma vila. Então eles não querem que exista uma vila naquele bairro que é considerado bairro nobre”, destaca Adilson.

Júlia complementa destacando o forte interesse imobiliário. “O entorno é racista e por vezes nos xingam: 'Quando essa negrada vai sair daí? Esses pretos têm que ir embora'", comenta.

A história do Quilombo Kédi, contextualiza Adilson, também é resultado da abolição. “Grande parte dos negros que vieram para trabalhar, vieram como escravizados, trabalhavam em lavouras, fazendas no interior do estado. Então muitos desses negros, após a abolição, acabaram se dirigindo pra Porto Alegre. E essas famílias eram acolhidas por outras famílias que já residiam na Capital. E ao se agruparem nessas regiões, eles acabam desenvolvendo também características ligadas a ancestralidade, a africanidade”, complementa. 

Conforme destaca o mestrando desde o final do século XIX e início do século XX existe uma forte estigmatização das comunidades negras, e principalmente a força policial muito atuante nessas comunidades que acabam para contribuir no não reconhecimento das comunidades como sendo quilombolas. “Eles não se reconhecem, porque é uma coisa que não tem essa divulgação. Até pela própria mídia, que poderia fazer esse trabalho, e não faz. Muito pelo contrário, a mídia diz que ali é área de vagabundos, de drogados, área de violência, que a polícia deve entrar ali”, afirma, reforçando que isso cria um estigma pra comunidade. “Fica difícil pra uma pessoa se entender, se reconhecer como Quilombo, a partir de toda essa carga de informações que se passam das comunidades negras”, complementa. 

Atualmente está em andamento a construção de um relatório a ser enviado ao Incra, onde consta o levamento antropológico, levantamento geográfico. 

“A nossa ideia é de acelerar o processo e tentar pegar o certificado em busca desse reconhecimento. Nós temos um procurador do Ministério Público Federal que está no caso, a Fundação Palmares também está junto, então passou para um âmbito federal, enquanto estava somente nas mãos do DEMHAB, do Ministério Público Estadual, havia essa possibilidade de ser feita a remoção”, aponta Adilson. 

Contudo, ele chama atenção para a imprevisibilidade do contexto atual. “Assim como a comunidade está ali, está em pleno funcionamento, existem muitas forças, inclusive a força do poder econômico, do poder público, muitas vezes trabalhando junto, para remover a comunidade. Nós estamos fazendo tudo que podemos para que a comunidade permaneça, para que ela seja reconhecida, e tenha o seu território titulado. A partir da titulação do território, do reconhecimento no Incra, essa questão da remoção não será mais possível”, finaliza. 

Em 2021 a Câmara Municipal de Porto Alegre promoveu debates sobre a situação do Quilombo Kédi


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Edição: Katia Marko