É no momento de intolerância que a face do racismo transborda
“É tudo muito comovente para mim porque eu vejo europeus, com olhos azuis e cabelos louros, sendo mortos pelos mísseis e foguetes de Putin”. Esta declaração de David Sulakvelidze, ex-procurador-geral da Ucrânia, à rede de televisão britânica BBC, bem como as declarações da imprensa em relação à guerra entre Rússia e Ucrânia, expõe as hierarquias raciais nas Relações Internacionais. Relatos realizados por imigrantes negros, moradores de cidades ucranianas, também apontam racismo de autoridades de países da Europa ao dificultar suas entradas nos países vizinhos. Esta dificuldade tem ocorrido tanto por resistência internamente na Ucrânia, quanto dentro de países vizinhos como a Polônia e a Hungria.
Mas por quais raízes o racismo se introduziu tão fortemente na Ucrânia?
A Ucrânia pertencia à União Soviética e, apenas, conquistou sua independência após o fim desta. Historicamente, a parte Oeste da Ucrânia sempre se identificou mais pela cultura germânica do que eslava. Consequentemente, esta parte acaba se unificando com o nazismo da Alemanha, principalmente, para buscar sua independência política e identitária da União Soviética. Contudo, com a derrota da Alemanha nazista na Segunda Guerra Mundial, esta parcela de ucranianos descontentes retorna à Ucrânia e, consequentemente, à União Soviética. Mais tarde, com o colapso da União Soviética, a Ucrânia projeta que aqueles que colaboraram com o nazismo eram os “heróis da nação” ao lutarem pela nacionalidade ucraniana e, assim, buscando diminuir a influência Rússia.
Deste modo, esta busca por uma identidade ucraniana leva à um processo de limpeza étnica da Ucrânia, através da exclusão dos povos ciganos, calcas, muçulmanos, negros, entre outros grupos racializados que moram neste território. Grupos neonazistas e de extrema-direita têm se fortalecido com este discurso, além de contar com um alinhamento político de governos de extrema-direita como Polônia e Hungria.
Estes países, inclusive, têm aberto as portas para imigrantes ucranianos, o que normalmente não ocorre com imigrações racializadas. Por sua vez, esta solidariedade branca seletiva marca as hierarquias raciais existentes na Europa. Charles Mills, no livro “Contrato da Dominação”, já apontava a supremacia branca como sistema político, em um contrato racial, nos quais os Estados ocidentais se reconhecem como superiores e estabelecem ajuda mútua entre si.
A emergência da extrema-direita na Europa está relacionada diretamente ao ódio de imigrantes do Sul Global, a partir de discursos de que imigrantes estariam sobrecarregando os serviços públicos e utilizando as oportunidades de empregos. No entanto, massacres aos imigrantes negros no Brasil e no mundo não entram na ordem do dia da mídia, tampouco tal tema ocupa tamanha relevância nas Relações Internacionais quanto o tema da “Guerra e paz”.
É no momento de intolerância que a face do racismo transborda. Este ódio também está presente quando situações bárbaras e de guerras acontecem o tempo todo contra povos não-brancos, mas que, infelizmente, a mídia colonial e ocidental não tem interesse, tampouco os países europeus em abrir suas fronteiras como refúgio.
Desta forma, entre levantar bandeira em prol de um país ou outro (como se fosse um jogo tradicional), eu prefiro me manifestar contra a violência cotidiana presente em ambos países com ou sem guerra, onde mulheres russas estão entre as que mais sofrem com violência doméstica no mundo, onde mulheres ucranianas sofrem com a emergência do neonazismo e onde imigrantes africanos e do Oriente médio são desumanizados e sofrem racismo sem qualquer tipo de piedade.
Que este infeliz conflito pelo menos sirva para repensarmos com qual tipo de Relações Internacionais estaremos comprometidos.
* Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato
Edição: Marcelo Ferreira